Força normativa

A abstrativização do controle de constitucionalidade

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23 de outubro de 2009, 11h13

O controle de constitucionalidade, ao lado da Teoria da Constituição e da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, constitui um dos temas mais polêmicos da Ciência do direito constitucional.

Atualmente, da análise da jurisprudência do Eg. STF, tem se verificado, ainda que de forma tímida e em casos isolados, a presença do que se convencionou chamar de tendência de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade.

O presente estudo tem por objeto a análise da legitimidade desse fenômeno perante a ordem constitucional vigente.

O controle de constitucionalidade consiste na verificação de compatibilidade entre uma Lei ou um ato normativo e o Texto constitucional, tendo por fundamento a supremacia e a rigidez constitucional. Constitui-se, portanto, num instrumento de defesa da Constituição.

A inconstitucionalidade pode derivar de vícios de ordem material, formal ou circunstancial. A inconstitucionalidade material se dá quando verificada ofensa a normas que conferem direitos e obrigações. A inconstitucionalidade formal compreende vícios de ordem subjetiva – relativamente à iniciativa —, e objetiva — seja de ordem procedimental ou relativo à competência do órgão para a edição do ato. A inconstitucionalidade pode derivar, também da inobservância de uma limitação de ordem circunstancial, e. g., uma Emenda Constitucional editada durante a constância de intervenção federal, em total desconformidade com o preconizado pelo art. 60, parágrafo 1° da Carta Magna.[1]

Os sistemas de controle de constitucionalidade mais conhecidos são o alemão, modelo cunhado por Hans Kelsen, baseado na concentração competência em um só Tribunal Constitucional – usualmente denominada de controle concentrado —, em oposição ao sistema norte americano, cuja origem remonta ao caso Marbury vs. Madison, julgado em fevereiro de 1803, em que o poder de declarar a constitucionalidade de leis e atos normativos é conferido a todos os membros do poder judiciário – controle difuso.

O Estado Brasileiro adota um sistema de controle misto ou eclético, resultante da combinação dos dois sistemas retro mencionados.

As formas de controle podem classificar-se[2]: a) quanto à finalidade (abstrato ou concreto); b) quanto ao tipo de pretensão deduzida em juízo (controle constitucional objetivo ou subjetivo). c) quanto à competência (difuso ou concentrado); d) quanto ao momento (preventivo ou repressivo); e e) quanto à natureza do órgão (político, jurisdicional ou misto); O presente estudo tem seu foco limitado às duas primeiras hipóteses.

De acordo com a pretensão deduzida, a verificação de compatibilidade de uma lei ou de um ato normativo pode ter por objeto a tutela da ordem constitucional como um todo ou a tutela de um direito subjetivo. Daí distinguir-se o processo constitucional objetivo, sem partes e proposto perante um Tribunal Constitucional, quando o controle de constitucionalidade será exercido contra um ato normativo em abstrato, do processo constitucional subjetivo, quando o tema da constitucionalidade de um determinado ato normativo será analisada incidentalmente no curso de um processo, de regra, perante o juízo singular, enquanto questão prejudicial à solução de um caso concreto.

No Estado Brasileiro, o disciplinamento constitucional da matéria reserva ao Supremo Tribunal Federal — STF, na condição de “guardião da Constituição”, a competência para processar e julgar, originariamente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF),[3] vias pelas quais é exercido o controle de constitucionalidade em abstrato.[4]

Relativamente aos efeitos da decisão, tem-se que a decisão proferida em sede de controle abstrato de constitucionalidade possui eficácia erga omnes, é dizer, beneficia ou mesmo prejudica terceiros, e efeito vinculante em relação aos demais órgãos integrantes do Poder Judiciário e da Administração Pública direita e indireta, excetuando-se, tão somente, o Plenário no STF e o Poder Legislativo, este último quando no exercício da Função Legislativa típica.


É de se destacar que este efeito vinculante a que alude o Texto Constitucional decorre da adoção da chamada teoria da transcendência dos motivos determinantes da decisão. É dizer, não apenas o comando emanado no dispositivo da decisão, mas, também, as suas razões determinantes, ou seja, a sua ratio decidendi, se projetam para fora do processo em que a mesma foi proferida, alcançando casos semelhantes ao submetido à apreciação do STF,[5] ensejando a propositura de Reclamação Constitucional perante o STF, em caso de descumprimento, nos moldes do preconizado no artigo 102, I, l, da CF-88.[6]

Diferentemente, quando a decisão é proferida em sede de controle concentrado, de regra, a mesma ostenta eficácia inter partes, isto é, restringindo-se às partes que figuram nos pólos do processo, havendo a possibilidade de apreciação da matéria pelo Eg. STF, via Recurso Extraordinário (RE), nos termos do preconizado pelo artigo 102, III, b, da CF-88. [7]

Em tais casos, a única possibilidade de ampliação dos efeitos da decisão proferida em sede de controle difuso, para fins de atribuir-lhe eficácia erga omnes, seria mediante o expediente contemplado no artigo 52, X da CF-88, quando, mediante atuação política e discricionária [8] do Senado Federal, no entender da doutrina mais tradicional.

Em recente julgados, por diversas ocasiões, o Supremo Tribunal Federal tem-se manifestado pela possibilidade de estender os efeitos de uma decisão proferida em sede de controle difuso-concreto, atribuindo-lhe eficácia orga omnes, tal qual se deu nos julgamentos do RE 197.917/SP[9], da relatoria do eminente Ministro Maurício Correia, onde restou declarada a constitucionalidade da Resolução do TSE que fixou o número de vereadores, e do HC 82.959/SP, relatado pelo Min. Marco Aurélio de Mello, onde houve a declaração incidental de inconstitucionalidade da norma que estabelecia a vedação da progressão do regime de cumprimento da pena nos crimes hediondos[10].

É de se destacar atribuição destes efeitos, pelo STF, deu-se independentemente do expediente previsto no artigo 52, X, do Texto Constitucional. [11] Sustenta-se, no particular, com base na distinção entre “texto” e “norma”, que o referido dispositivo teria sido objeto de mutação constitucional, ou seja, um processo não formal de modificação da Constituição, que se opera mediante a alteração do sentido atribuído a um mandamento constante na Lei Maior, com a manutenção do seu Texto[12]. Esta posição é sustentada pelo Min. Gilmar Mendes[13].

Nestes termos, a chamada “tendência de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade” pode ser entendida enquanto um mecanismo por meio do qual se busca atribuir a máxima eficácia aos julgados da Corte Constitucional, reconhecendo-lhes efeito vinculante, manifestando-se, pois, no âmbito da motivação de suas decisões, da sua ratio decidendi.

Com tal expediente, confere-se maior robustez à força normativa da Constituição, enaltecida por Konrad Hesse[14], a Supremacia do Texto Maior e da consequente necessidade de aplicação uniforme do mesmo, da mesma forma quanto à consolidação do STF enquanto seu guardião e intérprete máximo.

De tudo o quanto exposto, é de se constatar que a tendência de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade consiste em emprestar às decisões proferidas pelo STF, em sede de controle concentrado, o efeito vinculante e eficácia erga omnes, próprios das decisões no controle abstrato, sendo certo que a despeito da ausência de previsão legal ou constitucional neste sentido, tem-se por legitimada a aplicação da Teoria dos efeitos determinantes em tal caso, pelo reconhecimento da força normativa da Constituição, enaltecida por Konrad Hesse[15], da Supremacia do Texto Maior e da conseqüente necessidade de aplicação uniforme do mesmo, da mesma forma quanto à consolidação do STF enquanto seu intérprete máximo e guardião.


Bibliografia:
BARROSO, Luis Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo; os fundamentos constitucionais e a Constituição do novo modelo. São Paulo: Saraiva. 2009.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Malheiros. 2004.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3ª ed. Salvador: JusPodivm. 2009.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 1991.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva. 2009.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocência Mártires. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva. 2009.

NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Método. 2008.

TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 21ª ed. São Paulo: Malheiros. 2006.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 05 out. 88.

BRASIL. HC n° 82.959/SP. Rel. Min. Marco Aurélio. Pleno. j. 23/02/2006. DJ. 01/09/2006. p. 18.

BRASIL. RE n° 197.917/SP Rel. Min. Maurício Correia. Pleno. j. 06/06/2002. DJ. 07/05/2004. p. 08.


[1] CF-88: “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: […] § 1º – A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio”.

[2] Segue-se a classificação contida na obra de Marcelo Novelino (Direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Método. 2008. pp. 105-115).

[3] CF-88: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)”.

[4] Na Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva (ADI Interventiva), inobstante se trate de hipótese de controle concentrado de constitucionalidade, essa verificação se dá à luz de um caso em concreto, pelo que com razão Dirley da Cunha Júnior ao promover uma diferenciação entre os conceitos de controle difuso e concreto, do mesmo o fazendo entre os termos controle abstrato e controle concentrado. (Curso de direito constitucional. 3ª ed. Salvador: JusPodivm. 2009.pp. 302 -304)

[5] Sobre o assunto, reveste-se de extrema importância a distinção entre a ratio decidendi e as denominadas questões obter dicta (ou obter dictum, no singular), tantas vezes enfatizadas pelo Prof. Dr. Gilmar Ferreira Mendes (em aula ministrada no curso telepresencial de especialização em Direito Público, da Rede LFG/Prima em parceria com a UNISUL, em 13/06/2008)

[6] Inserir jurisprudência.

[7] CF-88: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: […] III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: […] b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.

[8] Pedro LENZA. Direito constitucional esquematizado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva. 2009. p. 207. No mesmo sentido, Michel TEMER. Elementos de direito constitucional. 21ª ed. São Paulo: Malheiros. 2006. pp. 48-49.

[9] “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂMARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À POPULAÇÃO. CF, ARTIGO 29, IV. APLICAÇÃO DE CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A POPULAÇÃO E O NÚMERO DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE, INCIDENTER TANTUM, DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. 1. O artigo 29, inciso IV da Constituição Federal, exige que o número de Vereadores seja proporcional à população dos Municípios, observados os limites mínimos e máximos fixados pelas alíneas a, b e c. 2. Deixar a critério do legislador municipal o estabelecimento da composição das Câmaras Municipais, com observância apenas dos limites máximos e mínimos do preceito (CF, artigo 29) é tornar sem sentido a previsão constitucional expressa da proporcionalidade. 3. Situação real e contemporânea em que Municípios menos populosos têm mais Vereadores do que outros com um número de habitantes várias vezes maior. Casos em que a falta de um parâmetro matemático rígido que delimite a ação dos legislativos Municipais implica evidente afronta ao postulado da isonomia. 4. Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente. 5. Parâmetro aritmético que atende ao comando expresso na Constituição Federal, sem que a proporcionalidade reclamada traduza qualquer afronta aos demais princípios constitucionais e nem resulte formas estranhas e distantes da realidade dos Municípios brasileiros. Atendimento aos postulados da moralidade, impessoalidade e economicidade dos atos administrativos (CF, artigo 37). 6. Fronteiras da autonomia municipal impostas pela própria Carta da República, que admite a proporcionalidade da representação política em face do número de habitantes. Orientação que se confirma e se reitera segundo o modelo de composição da Câmara dos Deputados e das Assembléias Legislativas (CF, artigos 27 e 45, § 1º). 7. Inconstitucionalidade, incidenter tantun, da Lei local que fixou em 11 (onze) o número de Vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2600 habitantes somente comporta 09 representantes. 8. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. Recurso extraordinário conhecido e em parte provido”. (RE 197917, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 06/06/2002, DJ 07-05-2004 PP-00008 EMENT VOL-02150-03 PP-00368)

[10] “PENA – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA – CRIMES HEDIONDOS – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – ÓBICE – ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 – INCONSTITUCIONALIDADE – EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena – artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal – a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90”. (HC 82959, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006, DJ 01-09-2006 PP-00018 EMENT VOL-02245-03 PP-00510 RTJ VOL-00200-02 PP-00795)

[11] CF-88: “Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: […] X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.

[12] Sobre o tema, ver Luis Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo; os fundamentos constitucionais e a constituição do novo modelo. São Paulo: Saraiva. 2009. p. 122.

[13] Gilmar Ferreira MENDES; Paulo Gustavo Gonet BRANCO e Inocência Mártires COELHO. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva. 2009. pp. 1333-1340. Esta postura é criticada, sob o argumento de que implicaria ofensa ao Princípio da conformidade funcional.

[14] Konrad HESSE. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 1991.

[15] Konrad HESSE. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 1991.

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