Petróleo no pré-sal

"Modelo previsto faz país regredir duas décadas"

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19 de outubro de 2009, 12h32

Spacca
Gustavo Binenbojm - Spacca

O Congresso Nacional está analisando os quatro projetos de lei encaminhados pelo governo para criar o novo marco regulatório da exploração e produção de petróleo e gás na área do pré-sal. As emendas apresentadas já passam de 300. Do modo como foram propostos pelo governo, os textos podem acabar sendo discutidos no Judiciário. É o que pensa o advogado Gustavo Binenbojm, que vê nos projetos inconstitucionalidades. Um deles é a definição da Petrobras como operadora única, sendo assegurada a participação de, no mínimo, 30% em todos os blocos a serem licitados na área do pré-sal, sob o modelo de contrato de partilha.

Para ele, um dos argumentos que podem vir a ser utilizados para questionar tal definição é a violação dos princípios constitucionais da isonomia, impessoalidade e moralidade administrativa. “Embora a Petrobras seja uma S.A. sob controle acionário da União, a maior parte do seu capital social pertence a particulares”, disse em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Binenbojm vai além. “Entendo que os projetos de lei subvertem a sistemática de exploração e produção instituída pela Emenda Constitucional 9/95, que pressupunha algum nível de pluralização dos operadores e a existência, por isso mesmo, de um órgão regulador. Para uma alteração tão radical no modelo, entendo que seria necessária uma emenda constitucional.”

De acordo com os projetos do governo, nas áreas ainda não licitadas pelo modelo atual de concessão, os blocos serão licitados sob o modelo de contrato de partilha. Neste, a União passa a ser dona de parte do petróleo produzido. Ainda de acordo com os projetos, a Petrobras terá participação de, no mínimo, 30% no negócio, podendo disputar ou mesmo formar um consórcio com outras empresas para explorar determinada área.

Binenbojm é professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito Público pela mesma universidade e mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Yale, nos Estados Unidos.

Leia a entrevista.

ConJur — Qual a principal justificativa dos projetos de lei que pretendem estabelecer o marco regulatório para a exploração de petróleo na área do pré-sal?
Gustavo Binenbojm — O principal argumento do governo é o de que os campos do pré-sal apresentam grandes reservas e baixo risco exploratório. Alega-se que o modelo atual, de concessão dos blocos por meio de leilões, é mais adequado para áreas de alto risco exploratório. Em tal modelo, as empresas assumem todo o risco do empreendimento, já tendo desembolsado um bônus de assinatura pela aquisição do bloco na licitação. Em contrapartida, a propriedade do óleo é transferida para a concessionária, após a sua extração, cabendo-lhe pagar ao Estado royalties, participações especiais e tributos incidentes sobre a sua atividade.

ConJur — Já no projeto do governo, o modelo passa a ser o contrato de partilha. É isso?
Gustavo Binenbojm — Sim. O modelo passa a ser o contrato de partilha de produção, no qual a empresa operadora do bloco entrega um percentual do óleo extraído ao Estado. Esse percentual será o critério de julgamento das licitações, nos blocos que forem licitados. Nos casos em que a Petrobras for a operadora única, o Conselho Nacional de Política Energética definirá o percentual do rateio da produção. A ideia da mudança do modelo é a de permitir maior apropriação da riqueza pela sociedade brasileira, apostando-se no baixo risco exploratório e no aumento do preço do petróleo devido à sua progressiva escassez.

ConJur — E qual será o papel da Petrobras?
Gustavo Binenbojm — Segundo o projeto de lei, a Petrobras será a operadora de todos os blocos do pré-sal, cabendo-lhe, no mínimo, 30% daqueles em que não tiver exclusividade. Mais para frente, será criada uma empresa pública — a Petro-Sal — detentora dos direitos de exploração de todos os blocos. Caberá a ela fazer licitações, quando for o caso, e exercer papel decisivo, incluindo poder de veto, na gestão das operações.

ConJur — Quais as principais críticas ao novo modelo proposto pelo governo?
Gustavo Binenbojm — Em primeiro lugar, a assunção excessiva do risco exploratório pelo Estado brasileiro, considerando o montante extraordinário dos investimentos necessários, a circunstância de tratar-se de uma fronteira tecnológica e o custo alto da extração do óleo de blocos situado a cerca de sete quilômetros abaixo do nível do mar. Em segundo lugar, o risco de desestímulo a investimentos privados, em um quadro de vulnerabilidade regulatória gerado pelo esvaziamento da ANP e pela posição de supremacia conferida à Petro-Sal e à Petrobras. Por fim, a redução da eficiência do setor, decorrente da redução do grau de concorrência e da criação de uma nova empresa estatal.

ConJur — De que modo pode acontecer o esvaziamento da ANP, caso os projetos sejam aprovados tais como foram apresentados pelo governo?
Gustavo Binenbojm — Embora a ANP continue a existir formalmente, seu papel institucional será reduzido, em termos de relevância, com a criação da Petro-Sal. Na prática, as decisões mais importantes relativas à seleção de empresas, definição de blocos e gestão da execução dos contratos ficarão a cargo da Petro-Sal, e não da ANP. A diferença importante entre uma e outra é que a ANP foi concebida como um ente regulador autônomo em relação ao governo, enquanto a Petro-Sal é um braço do próprio governo, sujeita às determinações políticas do governo. O país regride duas décadas, em termos institucionais, com essa mudança.

ConJur — Quais os principais obstáculos jurídicos que terão de ser enfrentados pelos projetos de lei do pré-sal?
Gustavo Binenbojm — A definição da Petrobras como operadora única ou obrigatória (assegurado um percentual mínimo de 30%) dos campos do pré-sal poderá enfrentar o argumento de violação dos princípios constitucionais da isonomia, impessoalidade e moralidade administrativa. Embora a Petrobras seja uma S.A. sob controle acionário da União, a maior parte do seu capital social pertence a particulares — como pessoas físicas, fundos de pensão e empresas privadas —que foram aquinhoados pelo privilégio odioso concedido pelo projeto de lei. A Constituição veda a concessão de privilégios a sociedades de economia mista não extensivos ao setor privado. A abertura de capital de uma empresa estatal é justificável como forma de capitalização da sociedade, mediante chamada aberta a todos os interessados, em igualdade de condições. No caso do pré-sal, os recursos resultantes da exploração dos hidrocarbonetos — de propriedade da União — serão carreados em benefício da Petrobras, cuja maioria dos acionistas são particulares.

ConJur — A quantidade de barris de petróleo a ser ofertada à Petrobras pela União não prejudica os demais acionistas?
Gustavo Binenbojm — Sim. De um lado, a União institui um enorme privilégio para a Petrobras, que é a condição de operadora exclusiva (na maior parte dos casos) dos campos do pré-sal. Então, em relação às demais empresas privadas, está-se a criar um privilégio odioso. De outro lado, tem-se o problema em relação aos demais acionistas, que podem ter sua posição ameaçada pelo aumento de capital, com o aporte feito pelo governo sob a forma de 5 bilhões de barris de óleo. São dois problemas jurídicos distintos: o primeiro, o privilégio em favor da Petrobrás, em detrimento das demais empresas; o segundo, o privilégio em favor do governo, em detrimento dos demais acionistas da Petrobrás.

ConJur — Os projetos afrontam a Emenda Constitucional 9/95?
Gustavo Binenbojm — O modelo de exploração e produção do petróleo instituído pela Emenda Constitucional 9/95, que deu a redação atual do artigo 177 da Constituição Federal, pressupunha a contratação de empresas estatais ou privadas para tais atividades, em um ambiente progressivamente concorrencial. Daí a previsão da criação de um órgão regulador, que viria ser a Agência Nacional do Petróleo. Não faria sentido prever a existência de um ente regulador para um mercado de operadora única. Daí que o restabelecimento da posição monopolista da Petrobras confronta a EC 9/95, em sua letra e espírito.

ConJur — O senhor acha que para mudar o modelo de exploração e produção é necessária uma emenda constitucional?
Gustavo Binenbojm — Alguns ministros do STF chegaram a manifestar esse entendimento quando do julgamento da ADI da Lei do Petróleo. Não chego a afirmar que o modelo de concessão, previsto no artigo 176 da Constituição para os recursos minerais, seja obrigatório para o petróleo. Todavia, entendo que os projetos de lei subvertem a sistemática de exploração e produção instituída pela EC 9/95, que pressupunha algum nível de pluralização dos operadores e a existência, por isso mesmo, de um órgão regulador. Para uma alteração tão radical no modelo, entendo que seria necessária uma emenda constitucional.

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