Genocídio e diáspora

Será que a condenação moral da Turquia é suficiente?

Autor

  • Hoanes Koutoudjian

    É advogado brasileiro de origem armênia. Participou da reunião convocada para discussão do reatamento de relações entre Armênia e Turquia nos Estados Unidos.

19 de outubro de 2009, 13h24

Impressões a respeito da reunião entre o presidente da Armênia, com os membros da Diáspora dos Estados Unidos (Costa Oeste) e da América da Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e Chile), ocorrida em 4 de outubro de 2009

O presidente da Armênia, Serge Sarkissian, em visita aos Estados Unidos, convocou as comunidades armênias das Américas, para prestar esclarecimentos, a propósito do reatamento de relações com a Turquia, por meio da assinatura de dois protocolos denominados: “O Estabelecimento de relações diplomáticas”e “Desenvolvimento de relações bilaterais”.

Como participante da reunião ocorrida em Los Angeles, convidado pelo Consulado da Armênia em São Paulo em nome do presidente Sarkissian, procurarei de forma sucinta, relatar, sob a minha perspectiva, o que presenciei, tecendo algumas considerações a respeito.

A delegação oficial, liderada pelo presidente da República, era composta pelo presidente da Corte Constitucional, Gaghik Harutunian, a ministra para a Diáspora, Hranush Hakobayan, o chefe da equipe do presidente, Vighen Sarsyan, o ex-presidente de Nagorno Karabach, Arkadi Ghukassian, bem como pelos Embaixadores Armênios na Argentina e EUA e os Cônsules de Los Angeles e São Paulo. A Igreja estava representada pelos dois arcebispos de Los Angeles. A Diáspora estava representada por aproximadamente 50 membros.

Abertos os trabalhos, o presidente informou que a iniciativa para a normalização dos laços bilaterais com a Turquia, partiu da Armênia e que as negociações serão conduzidas no sentido de atender as necessidades e os anseios do nosso povo, sem condições previamente ajustadas, com mediação de países estrangeiros, sem nenhuma pressão ou instrução de qualquer nação. Aduziu que a negociação entre a Armênia e a Turquia se desenvolvem há muito tempo, porém, somente o seu governo tornou-as públicas.

Salientou ainda, neste intróito, que após a assinatura dos protocolos, duas medidas legais precisam ser tomadas, quais sejam a ratificação dos protocolos pelos parlamentos dos dois países e a chancela de legalidade pelas respectivas Cortes Constitucionais.

Entendo necessário um pequeno comentário sobre o tema, para afastar quaisquer dúvidas. Os protocolos entre nações decorrem dos esforços diplomáticos, no sentido de determinar intenções futuras a serem pactuadas, devem ser respeitados, mas não tem força de lei. É o primeiro passo de um longo caminho, para a formalização de tratados, estes sim, devem ser cumpridos pelos países signatários e transformados em lei, que obriga todos os cidadãos. É assim, que se regem os direitos humanos.

A nação Armênia deverá ficar atenta no desenvolvimento das negociações dos protocolos, para que não tenhamos tratados, se algum dia tivermos, que ofendam a dignidade, a soberania e a independência do país. Não tenho dúvidas que o diálogo entre povos vizinhos é salutar para ambos, por mais difíceis que sejam as tratativas, por mais inimigos que os nossos interlocutores podem ser considerados. Precisamos conhecê-los com profundidade, sem temor de dizer, sim, quando possível e não, quando necessário.

Feita esta pequena digressão, volto à reunião. O presidente Sarkissian, alterando a forma das reuniões feitas anteriormente, em Paris e Nova Iorque, onde fez algumas explanações antes das perguntas, de plano passou a palavra aos participantes, para que livremente expusessem as suas opiniões e formulassem as perguntas, que entendessem necessárias. Por mais de três horas e meia, de forma respeitosa, foram feitas indagações, sempre respondidas pelo próprio Presidente.

As perguntas abrangiam três temas: o genocídio, a questão territorial e Nagorno Karabach.

No que diz respeito ao genocídio, o presidente, de forma peremptória afirmou que este assunto não será discutido com os turcos, em termos de declaração que envolva a sua não ocorrência. Em outras palavras, afirmou que a Armênia, nunca firmará um documento que negue a existência do genocídio. O que ocorrerá, segundo o presidente, será uma discussão a respeito de eliminar as consequências do genocídio, por meio de subcomissões governamentais, com supervisão externa.

Confesso que num primeiro momento não consegui entender bem o alcance desta posição, exposta pelo nosso presidente. Mas tomando conhecimento, posteriormente, de uma declaração do presidente Obama, feita antes das reuniões nos EUA, dizendo que os armênios teriam sido vítimas de atrocidades no começo do século passado, em vez de usar o termo genocídio, como já tinha usado anteriormente, ocorreu-me, com a devida licença dos mais capacitados, a saída “honrosa”, a sutileza diplomática, para a questão que entendo ser a seguinte:

A partir do instante que o genocídio não for questionado, mas sim as suas consequências, fica óbvio que o genocídio existiu, todos saberão oficialmente que é um fato incontestável, é real e assim, tacitamente haverá o reconhecimento mundial. A Turquia não irá reconhecê-lo expressamente, o reconhecimento expresso, impõe julgamento, porque é um crime imprescritível, com condenação dos autores e indenização. Mas será que os turcos fechariam os olhos para a condenação moral do reconhecimento tácito, não expresso? Talvez sim. A entrada no mercado comum europeu compensaria este reconhecimento.

Só o tempo dirá se esta interpretação está correta.

Mas se for isto, surge uma questão crucial e delicada:

Será que a condenação moral da Turquia seria suficiente para os armênios da Armênia e da Diáspora?

Este é um tema penoso e dolorido para que eu discorra, pelo simples fato de que sou testemunha dos relatos de minha querida avó, sobrevivente da tragédia de Der El Erzor. A Diáspora, incluindo somente os descendentes dos sobreviventes, tem vínculos fortíssimos com a tragédia. O genocídio está enraizado nas nossas almas, nenhum documento irá tirá-lo das nossas mentes, nenhum protocolo ou tratado, nenhuma declaração de turcos ou não turcos, será capaz de acender uma centelha de dúvida a respeito do que ocorreu.

Pelo meu confessado vínculo com as agruras do genocídio, que pode ser aferido no discurso por mim proferido na Assembleia Legislativa de São Paulo, neste ano de 2009, por ocasião das homenagens aos Mártires Armênios, onde afirmei que somente perdoaríamos o que fizeram com os nossos antepassados, se nos pedissem perdão expressamente, eu respondo que eventual condenação moral, lamentavelmente ou não, poderia ser considerada suficiente para o povo que vive na Armênia, mas para nós da Diáspora, não. Este é o grande dilema.

Há de se considerar, no entanto, as necessidades de uma nação e de um povo, que convive com graves problemas estruturais, de saneamento básico, de saúde, de energia, de abastecimento e porque não dizer, um povo privado do mínimo possível. Este povo merece viver melhor, trata-se acima de tudo da necessidade do renascimento de uma nação e de sua reconstrução, após séculos sem independência. Nós da Diáspora não podemos, salvo melhor juízo, privar a nação Armênia de um futuro mais feliz, condenando estes protocolos de forma peremptória, sem que ao menos as discussões sobre os mesmos se iniciassem, vamos discuti-los à exaustão, com os turcos ou não turcos e especialmente entre nós.

Com muito diálogo e paciência, iremos encontrar uma solução que não nos leve ao rompimento dos laços de sangue com os nossos compatriotas. É a minha modesta opinião.

No tocante as fronteiras, o presidente Sarkissian, mencionou que os assuntos territoriais estão ligados intimamente a dois contextos. O primeiro é a questão do genocídio, como acima narrado e o segundo, será decidido pelas cortes internacionais. Não tenho comentários a fazer sobre o tema.

A terceira questão referente a Nagorno-Karabach, que me pareceu a mais importante para os armênios da Armênia, o presidente Sarkissian, referiu que os protocolos não guardam a menor conexão ou dependência com a normalização dos laços com a Turquia, citando como referência o Grupo Minsk(organização em segurança e cooperação na Europa, formado pela França,EUA e Rússia), que reiteradamente tem afirmado que a questão de Nagorno, não é condição prévia para a assinatura dos protocolos.

Ao que tudo indica, esta afirmação era verdadeira, mas no último momento, antes das assinaturas, a Turquia pressionada pelos Azeris, que a acusam de traição, tentou impor a inclusão desta questão no documento, o que foi rechaçado pelos armênios. Parece que somente a intervenção da representante dos EUA, Hillary Clinton, possibilitou a assinatura dos protocolos após três horas de atraso, sem a inclusão do tema e sem os discursos programados.

O presidente Sarkissian demonstrou ser uma pessoa segura, apesar de sua extrema preocupação com o que ocorrerá. Tem consciência plena de seus atos, convicto que o entendimento é a melhor forma de solução para estas questões cruciais, não se incomodando de ser questionado duramente pelos participantes da reunião, demonstrando, a primeira vista, alto espírito democrático e coragem, apesar de que sob a minha ótica estes esclarecimentos deveriam ter sido feitos há mais tempo.

Finalizando, entendo que há pressão dos EUA para o restabelecimento das relações. Esperamos que o presidente Obama, a quem pessoalmente admiro, agraciado com o Nobel da Paz, dignifique a honraria e não prejudique a Armênia, ao longo das negociações.

A sorte está lançada, iniciamos uma nova era, que Deus ilumine a todos.

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  • É advogado brasileiro de origem armênia. Participou da reunião convocada para discussão do reatamento de relações entre Armênia e Turquia, nos Estados Unidos.

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