Estreia na advocacia

Bierrenbach se despede do Superior Tribunal Militar

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16 de outubro de 2009, 11h23

A partir da próxima semana, São Paulo terá mais um escritório de advocacia e a viação civil terá de volta um de seus mais ilustres representantes. Após 10 anos no Superior Tribunal Militar (STM), o ministro Flávio Flores da Cunha Bierrenbach se aposenta nesta sexta-feira (16/10), deixa Brasília e volta para São Paulo. “Já comprei um pequeno escritório e lá vou colocar uma placa de advogado”, disse o ministro, que agora quer levar uma vida mais tranquila. Exigente para exercer o jus postulandi, ele firma o pé e diz que não pretende procurar clientes, não vai examinar processos em cartório e nem participar de audiências. “Tem outros lados da advocacia que eu me disponho a fazer e hoje tenho um conhecimento especializado que posso usar.”

Trabalhando menos, sobrará tempo para exercer o seu maior hobby: pilotar seu próprio avião, um tecoteco de 1946 que ficou esses anos todos praticamente parado em São Paulo. “Agora eu quero ver se volto a fazer a minha aeroterapia”, brinca o ministro, lembrando dos seus feitos nos cockpit dos aviões. “Sou aviador desde moço. Na época de fazer o serviço militar, eu tirei o brevê de piloto civil, depois fui instrutor de aeroclube. Minha mulher tinha tanta confiança nas minhas habilidades que eu saía para voar com as três filhinhas e ela ficava em casa. Eu levava as três menininhas para Ourinhos, na casa dos avós”, conta, saudoso.

Bierrenbach lembra que houve uma fase da vida que ele voou muito. “Pilotar é a minha grande paixão, meu grande passatempo e, enquanto ministro, eu tive muito pouco tempo de fazer.” A falta de tempo, no entanto, não o privou totalmente do seu passeio preferido. Orgulhoso, conta que as Forças Armadas lhe deram oportunidade de voar em todos os aviões moderníssimos que tem no país. “Já voei em Mirage, F5, MX, Luger, Tucano e recebi um convite para voar o A4 da Marinha, mas esse eu não tenho habilidade para pilotar e só vou na janela, como passageiro.”

O “sonho de Ícaro” do ministro não é um simples passatempo. Livre das pilhas de processos e das sessões de julgamento, ele quer aproveitar suas habilidades e colocar em prática um antigo projeto. Pretende reerguer uma organização da qual era presidente, a Aeronaves Destinadas à Localização de Focos de Incêndio (Adelfin), que tinha como conselheiro o ex-governador paulista Franco Montoro. Para Bierrenbach, a organização é a melhor maneira de o país combater a grande quantidade de incêndios intencionais ou acidentais que sofre anualmente, provocando uma devastação da vegetação em época de seca.

O ministro fica indignado com as cenas que vê na televisão e nas fotos dos jornais, soldados e bombeiros com balde de água e vassoura tentando apagar incêndio florestal. “Não é assim que se faz. O Brasil precisa de uma instituição destinada ao combate de incêndio florestal. Eu tenho alguma experiência nessa área, uma vasta literatura a respeito e só não montei isso até agora porque o tribunal não me deu tempo. Agora eu vou passar a ter tempo e vou insistir para que se implante uma instituição destinada ao eficaz combate a incêndio florestal. Hoje há recursos técnicos e disponibilidade de recursos financeiros. Isso é uma preocupação que tenho há muito tempo e agora vou poder me dedicar a ela.”

Todos os poderes
O ministro Bierrenbach completou no STM uma folha de serviços públicos tão extensa quanto rara. Foi funcionário do Executivo, Legislativo e Judiciário da União, do estado e do município. Na vida política, Bierrenbach teve uma participação importante. A sua atuação no Congresso Nacional como deputado federal é classificada por muitos de incrível e essencial. Como deputado pelo PMDB de São Paulo, foi o primeiro relator da proposta de convocação da Constituinte enviada ao Congresso Nacional por José Sarney, em 1985. Bierrenbach defendia a realização de um plebiscito para que a população decidisse se transformava o Congresso em Assembleia Constituinte ou se elegia uma Assembleia Constituinte exclusiva. Sua proposta foi rejeitada e o novo relator propôs dar poderes constituintes ao Congresso. O mandato de Bierrenbach na Câmara acabou em 1986 e ele não se reelegeu. Assim, não foi deputado constituinte. Escreveu artigos semanais para a revista Senhor, nos quais comentava e criticava os trabalhos da Constituinte.

Apesar do perfil discreto, Flávio Bierrenbach sempre trabalhou muito nos bastidores pelo estabelecimento do Estado de Direito. Foi ele, por exemplo, um dos principais arquitetos da célebre Carta aos Brasileiros, lida em 1977 pelo professor Goffredo da Silva Telles Jr. O ministro também ajudou a impulsionar a carreira de nomes como Celso de Mello, que hoje é um dos ministros mais garantistas do Supremo Tribunal Federal; Luiz Antonio Guimarães Marrey, atual secretário de Justiça de São Paulo; e Pedro Dallari, reconhecido advogado e professor. Os três trabalharam no gabinete de Bierrenbach quando ele foi deputado estadual em São Paulo, pelo então MBD, a partir de 1978.

“É uma coisa rara. Eu trabalhei nos três níveis da administração pública nos três poderes”, frisa o ministro, que considera que, no Estado Democrático de Direito, existem só três instituições que têm compromisso com a verdade: a universidade, a imprensa e o Judiciário. “Estudei em três faculdades em períodos diferentes, mas não fiz carreira acadêmica. Na imprensa, de vez em quando, sou um colaborador, faço um artigo aqui, outro ali. O Poder Judiciário foi a última etapa funcional da minha vida”, disse o ministro, lamentando que o tempo passou e sobraram projetos. Para ele, o compromisso com a verdade aproxima o Judiciário com a imprensa. “Se eu tivesse mais tempo no STM, gostaria de organizar um seminário para tratar disso.”

Bierrenbach cita um grande nome da advocacia brasileira como um de seus mentores intelectuais: Goffredo da Silva Telle Júnior, que morreu em junho. “Meu professor, meu paraninfo, meu preceptor enquanto foi vivo foi o professor Goffredo da Silva Telles Júnior. Tivemos grande convivência, mas ele morreu este ano, aos 94 anos de idade. Eu dizia a ele que lamentava não estar com um gravador em todas as nossas conversas porque tudo que ele dizia era digno de ser ouvido, pensado, refletido e aproveitado.” Além do professor Goffredo, o ministro lembra que teve “a honra de trabalhar com um excepcional profissional” chamado Antonio Costa Correia. “Quando me formei, ele já tinha 20 anos de profissão e eu fui trabalhar no escritório dele, que era um grande escritório de advocacia, já tinha cerca de 40 advogados e um movimento intenso. Foi um dos maiores advogados que conheci.”

Além dos grandes mentores, o ministro faz questão de citar um antigo local de trabalho. “Além da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, a outra instituição que dá referência para minha vida é a Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo. Prestei concurso, fui nomeado pelo governo de São Paulo e trabalhei por 29 anos, só sai quando vim para o STM. Dotada de advogados com imenso espírito público, colegas maravilhosos de todas as idades, ainda hoje jovens me procuram e me chamam de colega. Tenho grande orgulho de ter sido procurador do Estado de São Paulo.”

Voltas da vida
Em relação às Forças Armadas e à Justiça Militar, o tempo fez de Flávio Bierrenbach um homem completamente diferente do que se poderia imaginar em sua juventude. Depois de 10 anos como ministro do STM, não esconde que já esteve do outro lado da tribuna. Em 1964, quando era estudante de Direito, foi indiciado num inquérito policial na USP, em companhia de outros jovens que mais tarde se destacaram como grandes intelectuais e professores brasileiros, entre eles Florestan Fernandes, Mário Schenberg e Fernando Henrique Cardoso. Por meio de um Habeas Corpus, seu nome acabou excluído do inquérito. “Naquela época, pelo menos em São Paulo, não havia notícia de tortura, de maus tratos a presos políticos. Isso aconteceu depois”, lembra o ministro. “O nosso medo em 1964 era não conseguir se formar, ficar preso e não conseguir fazer as provas finais na faculdade”.

O tempo se encarregou de aproximar Flávio Bierrenbach dos militares e hoje ele conta que tem grandes amigos nas Forças Armadas. Admirado, narra fases da bicentenária Justiça Militar e defende seus feitos, lamentando o pouco conhecimento que os brasileiros têm do setor. É comum as pessoas imaginarem que o STM faz parte das Forças Armadas e não do Judiciário. E nem podia ser diferente, porque antes não era assim. O Brasil é um raro exemplo de país que destaca um tribunal somente para crimes de interesse militar. “É a corte mais antiga do Brasil e sofreu um longo processo de evolução em 200 anos”, explica Bierrenbach. A mudança aconteceu em 1934, quando a Justiça Militar brasileira saiu do âmbito do Poder Executivo e passou a integrar a esfera do Judiciário, um caso raro no mundo.

Em 1964, o Brasil passou por grande turbulência política. Com a intervenção dos militares no governo, a atribuição de julgamento dos crimes contra a segurança nacional ficou por conta da Justiça Militar. O número de processos cresceu, o número de ministros aumentou e a Justiça Militar virou assunto no noticiário. Bem ao contrário do que se previa, “durante o regime militar, o STM foi o tribunal mais independente do Brasil, mais até do que o STF”, assegura Bierrenbach.

O ministro garante que a Justiça Militar, que sempre mesclou juízes civis e militares, “não desempenhou o papel de braço legal do regime como muitos esperavam”. Para ele, as estatísticas comprovam. “O Brasil tem cerca de 300 mortos ou desaparecidos da época do regime militar. Milhares de brasileiros foram processados no STM. Compare com o que aconteceu no Uruguai, na Argentina e no Chile. A Argentina teve 30 mil mortos ou desaparecidos. Então, o regime militar brasileiro fez um esforço de racionalização jurídica. Mandaram para a Justiça Militar todos aqueles acusados de delitos contra a segurança nacional, inclusive eu.”

Bierrenbach entende que a Justiça Militar cumpriu o papel garantidor do que estava escrito na Constituição e “jamais deixou de assegurar aos advogados o acesso aos presos políticos, jamais deixou de quebrar a incomunicabilidade de qualquer preso”. Segundo ele, na época mais dura do regime militar, os advogados corriam para fazer com que os presos passassem da mão das chamadas forças de segurança para o STM, porque no tribunal os presos tinham garantias, acesso a advogado, o direito de defesa era respeitado. “Condenava-se a penas duras, mas absolvia-se muito também”, lembra.

Flávio Bierrenbach se orgulha ao lembrar que foi a Justiça Militar, em pleno regime ditatorial, que instituiu no Brasil as liminares em Habeas Corpus. “O HC é um instituto antigo, vem desde os tempos da República, mas foi preciso um almirante de esquadra, aqui no STM, para dar uma liminar em Habeas Corpus. Aí o STF passou a adotar essa técnica jurídica que é uma garantia individual importante”, conta o ministro, garantindo que o STM está muito estabilizado. “Não se julga mais crimes contra a segurança nacional.” Ele ressalta que a curva dos crimes cresce nas Forças Armadas na mesma proporção do que ocorre na sociedade. O STM julga hoje praticamente o dobro do número de feitos que julgava há 10 anos, diz.

Ignorância ou preconceito
Aberração é a palavra que o ministro usa para tentar explicar o motivo de a Justiça Militar não ter sido inserida no Conselho Nacional de Justiça, já que o STM faz parte do Judiciário. “Não sei atribuir a quê, se foi algum tipo de preconceito, ignorância ou mero esquecimento”, diz, lamentando que o CNJ pretende ser um órgão fiscalizador do conjunto do Judiciário, mas exclui um dos cinco tribunais superiores do país. Segundo ele, o prestígio do CNJ dentro do STM é muito baixo. A lamentação não pára por aí. “Vejo que na sociedade a ignorância sobre a Justiça Militar é quase total. Até mesmo nos meios jurídicos brasileiros, é enorme. É frequente em seminários e congressos jurídicos encontrarmos juízes que não têm a menor ideia do que seja Justiça Militar. Eles nunca ouviram falar e quando veem na Constituição o termo Justiça Militar, se perguntam: o que será isso? Lembram-se apenas do período do regime militar. Não sabem que é um órgão do Poder Judiciário.”

Em contrapartida, Bierrenbach celebra o que chama de sabedoria do constituinte de 1934, mantida em todas as outras Constituições. Para integrar a Justiça Militar, o oficial precisa ocupar o último posto da Força, seja almirante de esquadra, general de exército ou tenente brigadeiro. Todos são oficiais generais de quatro estrelas, os mais antigos quando chegam ao tribunal. “Significa que não tem cadeia de comando, não há ninguém que lhes possa dar ordem”, explica o ministro. Segundo ele, todos os oficiais generais, por lei, são obrigados a prestar continência aos ministros do STM, tanto civis como militares, e assim eles fazem.

O ministro costuma dizer que o caso mais importante é aquele que está sendo apreciado. Ele não se preocupa com que foi julgado há meia hora nem com o que vai ser julgado amanhã. Considera que os casos mais difíceis de julgar são os que envolvem erro médico. “Os casos de suposto erro cometido por um oficial médico das Forças Armadas são raros, mas eu confesso que tenho bastante dificuldade para lidar com isso.”

A dificuldade está em separar a razão da emoção. “Nenhum de nós pode dizer que julga só com o cérebro porque tudo isso envolve valores humanos. Há também a dificuldade de se definir uma linha divisória entre o que seja cerebral e o que seja afetivo.” Para Bierrenbach, a melhor saída é se orientar pela Constituição. “O que está na Constituição me obriga da primeira até a última linha. Se não fosse assim, eu não aceitaria ser ministro. Então, direitos e garantias individuais consagrados na Constituição, aquilo que é incito à natureza do processo penal, que é o devido processo legal, a amplitude do direito de defesa e o estabelecimento do contraditório. Sou extremamente atento em relação a isso.”

Historinhas do STM
O ministro conta que a convivência com os colegas militares foi muito boa, ao contrário do que previam seus amigos à época em que aceitou o convite para o STM. “Me disseram para tomar cuidado, pois iria me aborrecer muito, mas eu decidi não provocar ninguém, não ser descortês e expor as minhas ideias com o máximo de educação e urbanidade. Foi isso que fiz. Nesses 10 anos, tenho a dizer que entre os colegas militares com quem eu atuei aqui, hoje eu tenho alguns dos meus maiores amigos, que vão ficar para o resto da vida. Pessoas que são diferentes de mim, mas que compartilham valores que para mim são importantes. Aqui eu fiz grandes amigos.”

A aproximação com os militares não foi facilitada somente pelos valores que compartilham. As habilidades semelhantes ajudaram muito. Além de pilotar aviões, Flávio Bierrenbach desempenha como ninguém uma atividade típica dos militares. É um campeão de tiro. Recentemente, o ministro brilhou num campeonato de tiro no Clube do Exército e ficou em primeiro lugar por equipe na categoria de tiro com arma curta, silhueta 25 metros, empunhadura livre, 10 tiros. Individualmente, só perdeu para dois exímios atiradores. “Entre 34 competidores, fiquei em terceiro lugar, mas minha especialidade é arma longa. Sou bom em fuzil”, gaba-se o ministro.

Houve também os momentos em que o ministro e oficiais de alta patente se encontraram em lados opostos. O Superior Tribunal Militar tem a competência originária para julgar oficiais generais. Todos os oficiais das Forças Armadas, até a patente de coronel, são julgados na primeira instância e em grau de recurso no STM, mas quando há uma acusação contra o oficial general, ele é julgado no STM em instância única. O ministro explica que é raro ter que julgar um general no STM porque são oficiais com 35 anos de carreira, que só chegaram a general exatamente por ter uma carreira sem manchas. Mas acontece de um general cometer um deslize que o Ministério Público considera como delito e, nesse caso, o processo corre no STM.

“Para mim, não há dificuldade alguma em julgar um general. Eu julgo com os mesmos critérios que tenho para julgar um soldado ou um sargento”, afirma Bierrenbach. “Nenhum juiz se livra de imprimir aos seus votos uma carga ideológica — nesse caso, ideologia significando o conjunto de crenças que temos, o conjunto de concepções através das quais se enxerga o mundo. Esse meu contexto que condensam as minhas ideias. É com elas e com a Constituição que eu julgo.”

Em seus 10 anos no STM, Flávio Bierrenbach escreveu e colecionou algumas historias que ele considera “muito pitorescas e muito engraçadas”. “Quem sabe, quando eu ficar velho, eu faça um livrinho de memórias e conto algumas”, brinca. Um desses casos envolveu um sargento de marinha que tinha um desafeto antigo, um suboficial. Os dois eram notoriamente inimigos. Um dia, os dois atravessaram um rio com uma balsa, num local que o ministro preferiu não citar, e quando a balsa voltou estava nela somente o sargento. O suboficial ficou do outro lado com sua bicicleta, mas não foi mais visto. Depois de 40 dias, apareceu um corpo boiando, bastante deformado e naquela época não havia exame de DNA. O fato é que o sargento foi processado e condenado por homicídio.

Depois de ter cumprido nove anos de prisão, o sargento mudou-se para o interior do nordeste. Passados mais 17 anos, alguém diz a ele que o suboficial na verdade estava vivo e tinha uma borracharia no Rio Grande do Sul. O sargento tomou vários ônibus até o Rio Grande do Sul e quando chegou à borracharia deu dois tiros de revólver no peito do suboficial. Depois foi até a Capitania dos Portos, confessou o crime e a arma. Foi preso, processado e condenado. Mas, quando o caso foi julgado no STM, o ministro Bierrenbach inocentou o sargento. “Eu disse não, esse crime ele já pagou, já cumpriu a pena.”

Decepção e entusiasmo
Nem tudo foram flores na sua história de amor com a Justiça Militar. A maior decepção veio justamente no momento de coroar os 10 anos de tribunal. Bierrenbach foi presidente da Comissão das Comemorações do Bicentenário da Justiça Militar e esperava muito desse trabalho. Ao contrário, conta que saiu bastante frustrado da comissão. Entre várias iniciativas, foram editados dois livros, sendo um de doutrina e um álbum de fotografias históricas. A Fundação Getúlio Vargas foi contratada para fazer um livro sobre a história dos 200 anos. “Só que esse livro não foi publicado, contra meu voto”, reclama Bierrenbach. Ele conta que alguns ministros entenderam que o livro abordava questões que para eles não ficariam bem num livro histórico.

“Fui voto vencido e me demiti da comissão”, lamenta o ministro. Ele se entusiasma com a solenidade do bicentenário. “Foi muito bonita. Foi uma das raras oportunidades de emprego conjunto das três Forças Armadas. Fizemos um desfile no Comando Militar do Planalto com militares, aviões e helicópteros das três Forças. A banda marcial dos fuzileiros navais, que é a mais reputada banda do Brasil, executou o hino acadêmico composto por Carlos Gomes na Faculdade de Direito da USP, que é a mais antiga faculdade do Brasil e foi onde eu estudei. A cerimônia foi plena de significados simbólicos, mas faltou um grande livro histórico. Quem sabe no terceiro centenário…”

O entusiasmo volta a tomar conta do ministro quando ele narra a sua participação no Programa de Cooperação Judicial do Brasil com o Timor Leste, gerenciado pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), do Ministério das Relações Exteriores. Nos primeiros anos desse Programa, Bierrenbach foi uma espécie de supervisor, indicou juízes da Justiça Militar e dos tribunais de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e da Justiça do Trabalho. No programa, atuam quatro juízes, quatro membros do Ministério Público e quatro defensores públicos, além de servidores do Judiciário que foram trabalhar no Timor Leste. Um antigo diretor do STM está licenciado e mora naquele país há cinco anos.

“É um programa de cooperação com a mais nova nação do século XXI, um povo extremamente carente. Eu sempre entendi que, para o timorense, o Brasil é uma grande potência que fica do outro lado do mundo e cumpre dar uma resposta adequada a esse tipo de expectativa que eles têm”, analisa o ministro. O Timor Leste faz parte da comunidade dos países de língua portuguesa e está fazendo um monumental esforço para a implantação do português como língua oficial. Durante 25 anos da brutal ocupação por parte da Indonésia, os timorenses sofreram uma lavagem cultural, transmigrações forçadas, proibição do uso do português. A nova geração, entre 15 e 25 anos, não aprendeu a falar português porque era proibido. Falam o bahasa da Indonésia, que é o país invasor, ou o inglês da Austrália, que é a potência regional.

“Esse esforço de implantação do português implica a manutenção dos padrões jurídicos do Direito romano”, explica Bierrenbach, que foi consultado pelo presidente timorense Ramos Horta sobre a possibilidade do Brasil fornecer o arcabouço jurídico para a Justiça Militar do Timor Leste. “A Justiça Militar entrou na Constituição deles em 2001 porque eu estava lá, acompanhei a Assembleia Constituinte e eles incluíram um artigo implantando da Justiça Militar para julgar crimes militares à feição da Constituição brasileira. Agora, para ter uma Justiça Militar, hoje eles estão aplicando a legislação da Indonésia porque ainda não têm lei própria.”

Com a ajuda do Brasil, o Timor Leste começou a fazer o projeto de Código Penal Militar e um projeto de Código de Processo Penal. Com a escassez de quadros e de recursos, o resultado será bem mais simples do que o desejado. Será elaborado um Código Judiciário Militar, envolvendo direito substantivo e direito objetivo numa mesma lei, simples, pequena e autoaplicável. “Temos um grupo grande de brasileiros, sob a minha coordenação, que está fazendo esse trabalho”, conta Bierrenbach.

De acordo com ele, a parte geral já foi entregue à ministra da Justiça e a previsão é que até o final do ano o Código esteja no ponto de debate. “Espero poder concluir esse trabalho. Eu fui sete vezes no Timor Leste, acho que poucos brasileiros já foram tanto naquele país como eu.” O ministro conta que tem bons amigos timorenses e acredita que tudo que o Brasil puder fazer por aquele país vai dar dividendos. “É o único aliado, o único parceiro possível que o Brasil tem daquele lado do mundo. Todos os demais são nossos concorrentes e competidores.”

Visão de mundo
Quando se fala de questões internacionais, o ministro Flávio Bierrenbach tem posições firmes. Faz questão de dizer que considera a visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, uma ofensa às Forças Armadas. Deixando claro que falava como ministro do STM, Bierrenbach considerou Ahmadinejad um “delinquente internacional” e disse que “o convite feito pelo Brasil é uma bofetada na memória da Força Expedicionária Brasileira, que foi para a Europa lutar contra o Nazismo. Esse homem tinha de ser proibido de atravessar sequer o espaço aéreo brasileiro e se atravessasse, teria de se autorizar o emprego da lei do abate”.

Sobre a participação do Brasil no caso de Honduras, Bierrenbach considera “um fiasco”. Para ele, a política externa brasileira, desde o Barão do Rio Branco, vem obedecendo, numa linha praticamente reta, a três princípios: independência, autodeterminação e paz. “Esse episódio arranhou esses três princípios. Um país que pretende ter uma projeção internacional tem de tratar um episódio internacional com a seriedade que a tradição impõe e com aquilo que a necessidade exige.” Lembrando que o presidente deposto, Manuel Zelaya, não era exilado político no Brasil, o ministro critica: “Criou-se uma nova categoria no Direito Internacional que é a de hóspede e hóspede para mim é coisa de hotel”.

Celeridade comprometida
Quando Bierrenbach chegou ao STM, alguns setores, que o ministro chama de “desinformados e pouco afeitos à reflexão”, consideravam que a Justiça Militar julgava escassos processos. Embora tenha de concordar que em números absolutos a carga de processos do STM é bem menor do que de outros tribunais, o ministro prefere analisar por outro prisma e aponta outros significados.

“Significa que a taxa de criminalidade dentro das Forças Armadas é baixa. Além disso, ter uma carga baixa de processos significa poder julgar cada processo como todos os tribunais deveriam fazer, com atenção”, rebate. Mostrando que em sua última semana de trabalho havia poucos processos em sua mesa, Bierrenbach se orgulha: “Todos foram lidos da primeira até a última página. Todos os tribunais deveriam julgar assim. Aqui no STM, por enquanto, isso ainda é possível. Mas, nós também estamos com uma estrutura sobrecarregada. Eu tenho um único assessor, enquanto no STF deve ser uns 15 por ministro. No STJ, são mais de 10 e isso facilita. O processo vem para o julgador facilitado. A nossa estrutura aqui é a mesma que o STM tinha há 20 anos. E nesses 20 anos, a carga de processos aumentou 200%.”

Mesmo com a disciplina e o ritmo militar, Bierrenbach não conseguiu concluir todos os processos e lamentou não ter mais uma semana para julgar os 10 casos que ficaram para trás. Justifica que o tribunal está desfalcado, tem um ministro de licença para tratamento de saúde e, com a redistribuição, houve uma sobrecarga.

Há 10 anos, era raro prescrever um processo na Justiça Militar. Hoje, não é mais tão raro assim. “A Justiça Militar enfrenta uma dificuldade peculiar. Ela é dependente dos outros órgãos do Judiciário para a realização de muitas diligências. Na Amazônia, por exemplo, só existe uma auditoria para atender um território maior do que a soma dos estados de São Paulo, Paraná, Santa Cataria e Rio Grande do Sul. As precatórias são cumpridas de canoa porque não tem outro meio de transporte. Leva até sete dias para chegar. para ouvir uma testemunha, é muito difícil”, afirma. Segundo Bierrenbach, um crime cometido em Cruzeiro do Sul, no Acre, é julgado em Manaus. É difícil fazer perícia e transportar testemunhas, diz. Na Amazônia, devido às distâncias, os processos caminham devagar. “Já está mais do que na hora de se implantar mais uma auditoria na Amazônia”, adverte Bierrenbach. Ele esclarece, no entanto, que, de um modo geral, a prestação jurisdicional é rápida e as prescrições são poucas. “A pena aplicada no ambiente das Forças Armadas tem um efeito extra penal, que é o efeito pedagógico.”

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