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JUSTIÇA NA HISTÓRIA

Origem fidalga das profissões jurídicas (3)

Autor

20 de outubro de 2009, 12h55

Reprodução - Carlos Fabra
Convocação popular para um ato público, na então Vila de São Vicente - Reprodução - Carlos FabraImplantado o Governo-Geral na colônia, fruto da necessidade de unificação administrativa e territorial, com vistas à maior eficácia no combate a ameaças de invasão estrangeira e proteção dos bens reais, começa a estruturar-se, efetivamente, a burocracia fidalga judiciária em âmbito geral na colônia, com a criação da figura do ouvidor-geral.

É bem verdade que, antes disso, já temos rudimentos de estrutura judiciária colonial, com a figura do ouvidor de capitania, nomeado pelo donatário ou pelo rei, conhecendo de causas cíveis e criminais, ainda na década de 1530. Arquiteta-se, também, uma Justiça municipal, a partir de 1532, ano de fundação de São Vicente, que passa a contar com os chamados juízes ordinários e juízes de vintena (na ilustração, reprodução de quadro do pintor Carlos Fabra que retrata a vila de São Vicente).

Os juízes ordinários tinham, entre suas atribuições, dar audiências nos conselhos, vilas e lugares de sua jurisdição municipal, conhecer de certos tipos de pequenos feitos criminais etc.

Os juízes de vintena, por sua vez, decidiam, verbalmente, questões entre moradores do município e prendiam os praticantes de delitos em sua jurisdição, entregando-os ao juiz ordinário.

Também já se instituíam figuras como o tabelião do judicial e o tabelião de notas, todos com atuação local. Além dos solicitadores, que representam os primórdios da atividade advocatícia na colônia, com atuação bastante limitada, restrita a questões testamentárias.

É, insista-se neste ponto, com a criação do Governo-Geral, no entanto, que a Justiça ganha corpo na colônia, efetivando-se nas capitanias e, embrionariamente, no Estado do Brasil.

Reprodução
Mapa do Brasil no século XVI - ReproduçãoEstrutura judiciária
O primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, é nomeado pelo rei, por meio do regimento de 17 de dezembro de 1548. Logo em seguida, na cúpula da estrutura judiciária da colônia, passa a existir o cargo de ouvidor-geral, também provido diretamente pelo monarca português, cuja criação data de 17 de janeiro de 1549. Porém, lamentavelmente, o regimento que cuida da instituição deste cargo se perdeu, e não restaram maiores informações sobre as atribuições específicas do chefe máximo do Judiciário colonial nessa fase (na ilustração, reprodução de mapa do Brasil do Século XVI).

A nova estrutura centralizadora mantém, contudo, a figura do ouvidor das capitanias, nomeado pelo rei ou pelos donatários, com as mesmas atribuições mencionadas anteriormente (conhecer de causas cíveis e criminais até determinado valor). Também presidiam as eleições de juízes ordinários e oficiais de Justiça. Outras atribuições dos ouvidores de capitania, decorrentes do regimento de 1549, que instituiu o cargo de ouvidor-geral, ficam ignoradas, pelo extravio daquele documento legal e histórico.

Não resta dúvida, no entanto, que a presença do ouvidor-geral, acompanhado dos ouvidores de capitanias, representou um importante movimento no sentido de limitar o excessivo poder dos donatários, que, até então, tinham jurisdição agigantada nas respectivas capitanias.

A nova estrutura judiciária, advinda da instituição do Governo-Geral, irá perdurar até 1580, quando ocorre a União Ibérica, ficando Portugal sob o jugo espanhol durante sessenta anos, até 1640. A partir desta fase, ocorrerão importantes inovações na organização da Justiça na colônia, com a criação de novos e importantes cargos fidalgos, que terão longa vida no Brasil colonial, bem como com a instituição do Tribunal da Relação do Estado do Brasil, em 1609, há exatos quatrocentos anos, portanto.

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    é formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, editor e historiador, é autor, entre outras obras, de "Advocacia Pública - Apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo".

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Justiça na História

Origem fidalga das profissões jurídicas (2)

Autor

9 de outubro de 2009, 5h05

Spacca
Coluna Cassio Schubsky - Spacca

Nos primeiros 30 anos da colonização portuguesa, não funcionou Justiça organizada no Brasil. E, como assinala o historiador Capistrano de Abreu, com a implantação do regime de capitanias hereditárias, os donatários passaram a ter jurisdição civil e criminal sobre fatos ocorridos em suas terras, sem agravo ou apelação para as cortes portuguesas, salvo em caso de pena capital (Capítulos de história colonial, São Paulo, Ed. Itatiaia e Ed. da Universidade de São Paulo, 7ª edição, 1988, p. 80).

Capistrano bate na tecla do poder absoluto do rei, que valia para Portugal e passou a vigorar também para o Brasil colônia. “Como o papa, cabeça da sociedade religiosa, o rei tornara-se o sujeito jurídico da sociedade civil: na qualidade de senhor absoluto, seus poderes não admitiam fronteiras definíveis (…), juízes e tribunais eram delegações do trono” (Op. cit., p. 56 e 57). Vale observar que instância superior da Justiça na colônia é instituída apenas com a implantação do Tribunal da Relação do Estado do Brasil, em 1609, na Bahia, como veremos oportunamente.

Primórdios da organização jurídica
Em 1548, é instituído o Governo Geral da colônia, uma vez que a descentralização imposta pelo regime das capitanias ameaçava a integridade da nova possessão de Portugal na América e, portanto, organizar a administração e a Justiça locais tornara-se imperativo. O primeiro regimento da organização administrativa e judiciária, de 17 de dezembro, é dirigido ao provedor-mor da Fazenda do Brasil, Antonio Cardoso de Barros. É de se notar que a Justiça, assim como a administração fazendária, estruturava-se com vistas à proteção e ampliação dos bens reais.

Os poderes do grupo de funcionários da Justiça indicados pelo rei iam, paulatinamente, crescendo. “A montagem de uma estrutura judicial na Colônia teve como tendência a constante ampliação dos poderes concedidos aos funcionários mais diretamente ligados à Coroa”, conforme registra o livro Fiscais e meirinhos – a Administração no Brasil Colonial (Graça Salgado coord., Rio de Janeiro, Arquivo Nacional e Editora Nova Fronteira, 2ª edição, 1985, p. 73).

Eis aí, já em fase de montagem, aquilo que autores como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro chamam de estamento, um agrupamento fidalgo que vai se constituindo gradativamente e amealhando poder e prestígio, ao longo de todo o período colonial, atravessando o Império, até chegar à fase republicana. Haverá quem diga que, ainda hoje, uma casta incrustada no aparelho de Estado constitui o estamento, com poderes irrefreáveis. Exemplos não faltam, a começar do poder de mando de certos personagens políticos no âmbito regional (os coronéis) ou mesmo no Congresso Nacional.

Naturalmente, àquela altura dos acontecimentos, no primeiro século da dominação portuguesa, não havia distinção clara entre atribuições administrativas, legislativas e judiciárias. Afinal, a separação de poderes — Legislativo, Executivo e Judiciário — é uma formulação de Montesquieu, que remonta ao século XVIII. O historiador Caio Prado Júnior afirma, também, que, no período colonial, havia uma falta de clareza nas instâncias judiciárias e administrativas, com superposição de jurisdição e circunscrição, o que gerava permanentes conflitos de competência (Formação do Brasil Contemporâneo, São Paulo, Publifolha e Editora Brasiliense, 2000, p. 314). Temos, assim, outro aspecto em que nossa tradição é antiga, como se pode observar, já que o Executivo, desde então, detinha poderes demasiados, em detrimento dos outros poderes. Herança avoenga!

Feita essa ressalva, pode-se compreender os rudimentos da estrutura inicial da Justiça colonial brasileira, a partir da implantação do governo geral, em que despontam as seguintes figuras: o ouvidor-mor, que era a autoridade máxima da Justiça, que se subordinava administrativamente apenas ao governador geral; os juízes ordinários; os meirinhos; os juízes de vintena; e os solicitadores, entre outros.

Nosso próximo texto irá mostrar quais as atribuições de cada funcionário real na primeira fase da administração da Justiça colonial.

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    é formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, editor e historiador, é autor, entre outras obras, de "Advocacia Pública - Apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo".

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JUSTIÇA NA HISTÓRIA

Origem fidalga das profissões jurídicas (1)

Autor

2 de outubro de 2009, 8h40

Spacca
Coluna Cassio Schubsky - SpaccaEm quatro dos cinco séculos de sua existência após a chegada dos colonizadores portugueses, o Brasil viveu sob a égide do regime monárquico. É natural, como assinalam alguns dos mais destacados historiadores e intérpretes da história brasileira (Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, entre outros), que essa origem tenha marcado (e continue marcando) a mentalidade, os hábitos, as práticas, enfim, o nosso modo de ser e de agir.

Como acontece na Administração Pública, de modo geral, também no universo jurídico, na prática profissional dos operadores do direito, os ranços da realeza e do séquito fidalgo se fazem presentes, como um legado imorredouro. Para ter um testemunho cabal dessa afirmativa, basta adentrar em vetustos fóruns e tribunais, com seu mobiliário avoengo, suas vestes antiquadas e rituais de tempos imemoriais.

Portugal e os juristas
De fato, nossa origem portuguesa explica, em boa medida o que fomos, o que somos e provavelmente o que continuaremos a ser durante muito tempo ainda.

A Revolução de Avis (1383-1385) significou mais do que a ascensão da burguesia ao poder em Portugal: representa a consolidação do moderno Estado português. Ao ascender ao trono, após seguidas brigas intestinas, Dom João I, o Mestre de Avis, cerca-se de um grupo de asseclas, de fiéis escudeiros, que lhe amparam na organização da burocracia estatal e da máquina judiciária.

Reprodução
Quadro de Acácio Luna - ReproduçãoHá um jurista que encarna essa função organizadora, com o emblemático nome de João das Regras (ao lado, em retrato do pintor Nicácio Luna), uma espécie de consultor jurídico da realeza no período da consolidação do Estado moderno português. Dono de toda a propriedade pública, mandatário absoluto da nação portuguesa, o rei é a lei. Mas para formulá-la e editá-la, precisa, desde logo, cercar-se de saber jurídico.

Como ensina Raymundo Faoro, em seu clássico Os donos do poder, “o Estado se aparelha, grau a grau, sempre que a necessidade sugere, com a organização político-administrativa, juridicamente pensada e escrita, racionalizada e sistematizada pelos juristas” (vol. 1, São Paulo, Publifolha e Editora Globo, 10ª edição, p. 48).

A realeza se consolida com a formação de um corpo de colaboradores, um conselho, um corpo ministerial, justamente para cuidar da organização político-administrativa a que se refere Faoro. Entre esses ministros reais, destaca-se já a figura do comus notoriorum, que se assemelhava a um procurador geral da Coroa.

O Estado patrimonial, fique claro, existe para garantir a proteção dos interesses reais, sendo o rei o proprietário de todos os bens e confundindo os bens privados seus com os bens públicos. A serviço do Estado patrimonial, constitui-se o estamento, formado pelo grupo de fidalgos que concentra o poder político e administrativo. Entre eles, por exemplo, os ouvidores, os desembargadores, os juízes e os procuradores dos Feitos da Coroa.

Em 1446, as Ordenações Afonsinas são editadas, representando a primeira consolidação de leis do reino português. Posteriormente, as Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603) dão sequência à prática das consolidações reais da legislação portuguesa.

A estrutura fidalga da burocracia político-jurídico-adminstrativa é, em boa medida, “exportada” para as colônias, Brasil incluído. E o mesmo sentido patrimonialista e estamental que regia a corte portuguesa irá vigorar na seara tupiniquim. Assim, regimentos, alvarás e cartas régias passarão a dar suporte à Administração Pública e da Justiça no Brasil, com amparo, sempre, nas Ordenações.

O modo de funcionamento do Judiciário na colônia, com a formação do estamento fidalgo judiciário, é o tema de nosso próximo artigo.

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    é formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, editor e historiador, é autor, entre outras obras, de "Advocacia Pública - Apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo".

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