Respeito ao Judiciário

Solução para os precatórios deve considerar decisões

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8 de outubro de 2009, 7h35

Imagine-se que um determinado imóvel venha a ser declarado bem de utilidade pública e seja ajuizada ação de desapropriação do bem. Realizada a citação, o processo segue o rito ordinário, com todos os prazos contados em dobro ou em quádruplo para o Estado.

Depois de longo trâmite processual por todas as instâncias o Estado é finalmente condenado ao pagamento do valor da justa indenização e aquele que teve o seu bem expropriado passa a deter um título, o precatório, que tem prazo para pagamento de até um ano e seis meses após a sua expedição.

Entretanto, alegadamente por insuficiência de recursos, o Estado não inclui tal despesa no orçamento e o pagamento não ocorre, fato que se repete ano após ano, governo após governo, haja vista que os governantes preferem utilizar a receita para fazer grandes obras e não para pagar precatórios originários de grandes desapropriações realizadas pelo governante antecessor.

E assim o credor que já fora privado do seu direito de propriedade terá como alternativa seguir esperando durante vários anos que o próximo governo venha satisfazer o pagamento do seu precatório ou ingressar com pedido de intervenção federal perante o Supremo Tribunal Federal.

Se optar pelo caminho da intervenção, descobrirá que são dezenas os pedidos de intervenção que são indeferidos sob o fundamento de que a satisfação do crédito importaria em prejuízo da continuidade da prestação dos serviços públicos[1]. Somente na hipótese de preterição no direito de precedência é que o Supremo Tribunal Federal autoriza o sequestro de recursos públicos.

Esse é apenas um exemplo[2] do que é de conhecimento geral: há muito os estados e os municípios vêm descumprindo reiteradamente as sentenças proferidas pelo Poder Judiciário, deixando de honrar o pagamento dos precatórios, e, assim, comprometendo a credibilidade das instituições públicas.

O cenário é desalentador. Conforme levantamento realizado em 2004 pelo Supremo Tribunal Federal a dívida dos governos estaduais e municipais com precatórios girava em torno de R$ 70 bilhões. Estima-se que atualmente esse valor deve chegar a R$ 100 bilhões.

Diante desse contexto foram apresentadas na Câmara dos Deputados várias Propostas de Emenda à Constituição (PEC) ao longo dos últimos anos com vistas a modificar o sistema de pagamento dos precatórios. Mas o que se verifica, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, é tão apenas um histórico de postergações do pagamento.

Com efeito, o legislador constitucional inseriu no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias disposição que possibilitava o pagamento de precatórios por parte da Fazenda Pública em até oito anos. Todavia, ante o desinteresse político dos governantes em honrar tais pagamentos, o que se constatou foi o aumento das dívidas com precatórios.

Para sanar esse problema foi promulgada a Emenda Constitucional 30/2000, acrescentando ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o artigo 78, o qual determinava que os precatórios fossem liquidados em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos.

Todavia, a questão dos precatórios não foi solucionada, muito ao contrário, a facilidade de rolagem da dívida[3] e a quase ausência de sanção pelo inadimplemento estimularam a grave situação atual de inadimplência dos estados e municípios brasileiros.

Diante desse cenário, várias PECs foram apresentadas tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. Dentre essas proposições, a de maior relevo foi a PEC 12/2006 apresentada no Senado Federal.

Pretendeu-se com a referida PEC encontrar alternativa ao modelo existente (e que já não encontra solução na intervenção) de forma a simultaneamente conferir melhor proteção econômico-financeira dos entes da Fazenda Pública e garantir um fluxo mínimo de recursos para o pagamento dos precatórios.


Por meio dessa PEC pretendeu-se, sobretudo, criar um regime de pagamento especial aos entes da Fazenda Pública que poderão optar entre duas modalidades de depósito. A primeira com vigência enquanto o valor dos precatórios devidos seja superior ao valor dos recursos vinculados, devendo ser realizado depósito anual em conta especial do valor calculado percentualmente (variando, conforme o caso, entre 0,6% a 1,5%) sobre as respectivas receitas correntes líquidas. A segunda com vigência de até quinze anos, devendo ser realizado depósito anual em conta especial do valor correspondente ao saldo dos precatórios devidos, em seu valor real, em moeda corrente, acrescido pelo índice oficial de correção e percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, excluída a incidência de juros compensatórios, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento.

Tais recursos seriam destinados ao pagamento dos precatórios por meio de dois sistemas distintos, 60% dos recursos para pagamento via leilão e os outros 40% dos recursos para pagamento em ordem crescente de valor.

A aludida PEC estabelece, ainda, dentre outras disposições, que no momento do pagamento efetivo dos créditos em precatórios deverá ser abatido, a título de compensação, valor correspondente aos débitos inscritos em divida ativa contra o credor original pela Fazenda Pública devedora.

Essa PEC 12/2006 foi então encaminhada à apreciação da Câmara dos Deputados e tramitou sob o 351/09, tendo sido apensadas a ela 14 propostas de emenda à proposição principal. As Propostas de Emenda à Constituição foram submetidas à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados para a análise de sua admissibilidade, tendo essa Comissão opinado, por maioria de votos, pela admissibilidade, com 3 emendas, de todas as demais Propostas de Emenda à Constituição, nos termos do parecer do relator.

Em continuação, a Presidência da Câmara dos Deputados decidiu criar uma Comissão Especial destinada a elaborar parecer sobre a PEC 351/09.

O texto que havia sido aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados conjuga a alteração ao artigo 100 da Constituição Federal pela PEC 351/09 e o acréscimo do artigo 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pela PEC 395/2009. Esse texto aprovado pela CCJC possui algumas diferenças em relação ao texto da PEC 12/2006, podendo-se destacar, dentre outras, (i) o aumento dos índices de pagamento e sua fixação conforme a região do país em que se localizar o Estado ou Município e (ii) a mudança da utilização dos recursos da conta especial destinados ao pagamento dos precatórios, sendo certo que 50% dos recursos serão utilizados para o pagamento dos precatórios por ordem cronológica e os demais 50% poderão ser aplicados para pagamento de precatórios ou por meio de leilão ou por ordem crescente de valor.

Entretanto, o que se pode inferir é que tanto a PEC 12/2006 como as PECs 351/2009 e 395/2009 não refletem a melhor solução para a questão, pois limitam o pagamento — quiçá fomentam o calote —, institucionalizam o mercado de compra de precatórios com deságio, desviam recursos do pagamento dos precatórios pela ordem cronológica para outras modalidades e colocam a Fazenda Pública como credor privilegiado. Senão vejamos.

A modalidade de regime especial prevê que para saldar os precatórios a Fazenda Pública efetuará depósitos mensais, em conta especial criada para tal fim, de 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas apuradas no segundo mês anterior ao mês de pagamento, sendo que esse percentual poderá variar, para os Estados, entre 1,5% (um e meio por cento) a 2% (dois por cento), e para os Municípios, entre 1% (um por cento) e 1,5% (um e meio por cento).

Essa ‘solução criativa’ do legislador pela qual os entes da Fazenda Pública passam a vincular um percentual extremamente modesto da receita líquida para o pagamento de seus débitos acaba por transferir ao Poder Executivo a decisão da forma e modo que efetuará o pagamento dos precatórios. E, o que é mais grave, além de estabelecer um ínfimo percentual destinado ao pagamento dos precatórios, permite que o título judicial somente seja integralmente pago depois de vários anos.


Parece que o legislador perdeu de vista a origem desse crédito: o precatório é expedido em razão da condenação havida por sentença judicial transitada em julgado após anos de litígio judicial, em regra demorado, e esgotados todos os recursos em todas as instâncias. Após a expedição do precatório, o credor tem o direito adquirido ao pagamento até o final do exercício seguinte ao da apresentação do precatório.

Nesse diapasão, impende ressaltar que os direitos adquiridos se inscrevem entre os direitos e garantias individuais, figurando no artigo 5°, inciso XXXVI, da Constituição Federal: ‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’. Portanto, o direito ao pagamento do precatório na forma da sentença transitada em julgado não pode ser excluído ou alterado por lei superveniente. Impor ao credor o diferimento do pagamento por quinze anos ou mais, isso após anos e anos de trâmite processual, não é apenas imoral: É inconstitucional.

E isso porque essa modalidade de regime especial imaginada pelo legislador, além de desconsiderar os institutos da justa indenização (art. 5.º, XXIV, da Constituição Federal) e do pagamento dos precatórios judiciários (art. 100 da Constituição Federal), viola de uma só vez também a coisa julgada e o direito adquirido (art. 5.º, XXXVI, da Constituição Federal). É decisivo consignar que a ‘flexibilização’ dessas garantias por meio da promulgação de Proposta de Emenda à Constituição resulta em verdadeira abolição da segurança jurídica.

Ainda no que se refere à questão da vinculação de percentual da receita líquida para o pagamento de precatórios, cumpre destacar que o legislador criou diversos tipos de credores ao estabelecer percentuais regionalizados sem observar a exigência constitucional de tratamento isonômico dos credores do Estado. Conclui-se, portanto, que tal diferença de tratamento aos titulares de precatórios importa em contrariedade ao princípio da isonomia.

Outra inovação trazida na PEC em questão reside na criação de outras modalidades de pagamento dos precatórios para além da ordem cronológica. Considerando que foi suprimido da PEC 351/2009 todo o seu artigo 2º, a metodologia de utilização dos recursos da aludida conta especial admitida na CCJC da Câmara dos Deputados será aquela referida na PEC 395/2009. Desse modo, dos recursos que serão utilizados para o pagamento dos precatórios, 50% (cinquenta por cento) serão destinados ao pagamento pela ordem cronológica e os 50% (cinquenta por cento) dos recursos restantes poderão, segundo opção a ser exercida pelo Poder Executivo, ser destinados ao pagamento dos precatórios por meio de leilão ou por ordem crescente de valor.

Essa metodologia esculpida na PEC 351/2009 embora tenha inspiração social, na medida em que poderia promover, em tese, o destrancamento[4] dos precatórios de menor valor, não se revela a melhor solução jurídica. É de extrema obviedade que destinar metade dos recursos para pagamento de precatórios sem a observância integral da ordem cronológica implica em contrariedade ao princípio da ordem cronológica de apresentação dos precatórios, sendo certo afirmar que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido de a igualação dos credores na sistemática dos precatórios não admitir ordem diferenciada para a satisfação do total do débito.[5]

Impende ressaltar que a ordem cronológica de pagamento dos precatórios confere efetividade ao princípio da isonomia, assegurando a igualdade entre os credores, e está expressamente consagrada no artigo 100 da Constituição Federal. Portanto, a não observância integral ou parcial da ordem cronológica viola de modo incontroverso os princípios constitucionais da ordem cronológica de apresentação dos precatórios e da isonomia.

A primeira das novas modalidades de pagamento — o leilão dos precatórios — institucionaliza o mercado de compra de precatórios. Ainda mais grave e preocupante é o fato do Poder Público passar a participar desse mercado, ou seja, a PEC ao invés de resolver o problema, propõe que o próprio Estado substitua o mercado negro e inescrupuloso de compra de precatórios, para ele mesmo comprar através de leilão[6].


Por esse sistema de leilão, os credores que aguardam há anos o pagamento de seus precatórios serão forçados a aceitar receber valor significativamente menor do que o devido (podendo até ser considerado preço vil), renunciando a parte de seus legítimos direitos. Em outras palavras, o credor que não desejar renunciar a parte de seu crédito será penalizado pela redução dos recursos disponíveis para o pagamento dos precatórios.

Releva assinalar, ainda, que o leilão na modalidade de deságio importará, em termos práticos, na devolução à Fazenda Pública da apreciação do quantum que havia sido judicialmente fixado por sentença já transitada em julgado, flexibilizando-se, deste modo, o seu cumprimento. Conclui-se, portanto, que conferir ao Poder Executivo a possibilidade de dispor sobre o conteúdo de uma decisão judicial ofende a coisa julgada, o direito adquirido, a isonomia e a moralidade pública.

A segunda das novas modalidades de pagamento — ordem crescente de valor —, conquanto de louvável inspiração por pretender que credores teoricamente mais necessitados possam receber primeiro, ofende o princípio da ordem cronológica dos precatórios.

Como se já não bastasse pretender submeter os credores a tal sistema de pagamento, a PEC 351/2009 coloca a Fazenda Pública como credora privilegiada, ao dispor que no momento da expedição dos créditos em precatórios deverá ser abatido, a título de compensação, valor correspondente aos débitos inscritos em divida ativa contra o credor original pela Fazenda Pública devedora. Tal medida viola frontalmente os princípios da justa indenização, da coisa julgada e do direito adquirido.

Como se constata, as PECs 351/2009 e 395/2009 pretendem instituir procedimentos de duvidosa moralidade e violadores dos princípios constitucionais da coisa julgada, do direito adquirido e da isonomia, e, bem por isso, tais PECs contrariam o disposto no inciso IV, do parágrafo 4º, do artigo 60 da Constituição Federal.

Com efeito, a Constituição Federal dispõe, no artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (ou a restringir) os direitos e garantias individuais. Tem-se nesse dispositivo constitucional um limite a restringir a faculdade do poder constituinte derivado de reformar a Constituição Federal por meio de emenda constitucional[7].

A esse propósito, vale lembrar que o artigo 5º, inciso XXXVI, está inserido no Capítulo “Dos Direitos Individuais e Coletivos” do Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” da Constituição Federal, e determina que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.[8]

Nem se diga que a PEC 395/2009 teria corrigido essa inconstitucionalidade ao dispor que cinquenta por cento dos recursos depositados na conta especial seria destinado ao pagamento de precatórios em ordem cronológica. Ora, embora tal PEC não extinga totalmente os direitos e garantias individuais, é certo que os restringe em grande parte.

Nesse aspecto, consigne-se que a vedação do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Constituição Federal não se refere somente a hipóteses de propostas de emenda que efetivamente extingam direitos e garantias individuais, mas também àquelas hipóteses em que se verifique que a PEC seja “tendente a” abolir. Portanto, a vedação também se aplica quando eventuais reformas provoquem a restrição ou enfraquecimento de direitos e garantias individuais, justamente o que ocorre também em relação à PEC 395/2009.

Conclui-se que qualquer solução que se imagine para o problema do pagamento dos precatórios não deve importar em flexibilização do cumprimento das decisões judiciais ou em desrespeito ao ordenamento constitucional.


[1] Nesse sentido, colhe-se o v. acórdão proferido nos autos da Intervenção Federal nº 164, julgada em 13/12/2003, pelo Tribunal Pleno do E. Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do Ministro GILMAR MENDES:


1. Intervenção Federal. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada relação de precedência condicionada entre princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido

[2] Poderia citar inúmeros. Nesse aspecto, transcrevo apenas mais um exemplo, este trazido à baila pelo Senador Marcelo Crivella na 1ª audiência pública da CCJC que discutia a PEC 12/2006: “… numa das comunidades carentes do Rio de Janeiro uma bala perdida atingiu um jovem. Ele recebeu um precatório de quatro mil reais porque ele precisa de uma cama de plástico. Ele precisa de fraldas descartáveis e ficou tetraplégico. E ele não consegue… Ao mesmo tempo, o Governo do Estado gasta milhões e milhões com propagandas desnecessárias. Por exemplo, as dez mil obras que nunca houveram...”

[3] Até a estabilidade econômica alcançada em 1994, a Fazenda Pública valia-se da alta inflação para diminuir o impacto da sua dívida, haja vista o longo período de 18 meses entre o cálculo do valor do precatório e seu efetivo pagamento o que resultava em um valor simbólico para pagamento.

[4] É sabido que os precatórios de vultosa cifra não são pagos pelo Governo (por exemplo, o caso do precatório “Serra do Mar” no Estado de São Paulo, originário de desapropriação de extensa área), o que paralisa o pagamento dos demais precatórios, haja vista que a desobediência à ordem cronológica dá azo à intervenção enquanto a inadimplência não gera conseqüências.

[5] RTJ 161-03/796

[6] Nesse sentido confira-se o pronunciamento do Dr. Cezar Britto perante a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania quando da 4ª audiência pública, realizada em 3 de junho de 2008.

[7] “Em síntese, a norma constitucional veiculadora da intocabilidade do direito adquirido é norma de bloqueio de toda função legislativa pós-Constituição. Impõe-se a qualquer dos atos estatais que se integram no ‘processo legislativo’, sem exclusão das emendas.” (Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho, "Direito adquirido contra as emendas constitucionais", RDA 202/75)

[8] “Lembremo-nos, ainda, que a grande novidade do referido art. 60 está na inclusão, entre as limitações ao poder de reforma da Constituição, dos direitos inerentes ao exercício da democracia representativa e dos direitos e garantias individuais” (Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 13. ed., São Paulo: Atlas, 2003)

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