Direitos virtuais

Democracia e Direitos Fundamentais na era digital

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7 de outubro de 2009, 11h39

Há diversos desafios para a construção do governo e democracia eletrônicos no país, dentre eles, um dos mais significativos é a necessidade de assegurar a participação dos excluídos neste processo, pois é justamente esta participação que confere legitimidade ao governo, fazendo com que este seja um Estado Democrático de Direito.

Entretanto, este é apenas um dos obstáculos pelos quais o governo eletrônico terá de enfrentar. Há vários outros desafios que também devem ser observados visando uma reflexão aprofundada sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação (TICs) pelos cidadãos e sua relação com o governo.

O fenômeno do governo eletrônico traz consigo muitas perspectivas que podem ter reflexo positivo tanto na redução da burocracia das instituições públicas com uma maior eficiência na prestação de serviços e atendimento ao cidadão, quanto no próprio fortalecimento da cidadania, incentivando a sua participação na tomada de decisões políticas, tornando, assim, o governo mais legítimo e democrático.

Por outro lado, não se pode olvidar que a sociedade da informação é também a sociedade do risco na qual o ideal de governo eletrônico e o discurso da inclusão digital podem ser utilizados dentro de uma abordagem descontextualizada que privilegia interesses de determinados grupos em detrimento da coletividade.

Desta forma, este trabalho pretende discutir o governo eletrônico no país e os seus desafios a partir de uma ótica jurídica levando em consideração, simultaneamente, a defesa do sistema democrático e a supremacia dos direitos fundamentais.

O governo eletrônico pode ser estudado a partir de três dimensões conforme o seu envolvimento com os demais atores sociais, ou seja, a partir da relação do governo com o cidadão; sua relação com demais entidades públicas e órgãos governamentais; e, por fim, relacionando-se o governo também com o setor privado.

Para fins de conceituá-lo, pode-se descrevê-lo como sendo "uma infraestrutura única de comunicação compartilhada por diferentes órgãos públicos a partir da qual a tecnologia da informação e da comunicação é usada de forma intensiva para melhorar a gestão pública e o atendimento ao cidadão. Assim, o seu objetivo é colocar o governo ao alcance de todos, ampliando a transparência das suas ações e incrementando a participação cidadã" (Rover, 2005, página 55).

Além da transparência e da publicidade, há o princípio da eficiência administrativa que foi inserido no caput do artigo 37 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 19/98 e que serve de argumento para justificar a informatização e modernização da Administração Pública e o desenvolvimento do governo eletrônico.

Neste sentido, o princípio da eficiência permite adequar a Administração Pública à realidade social brasileira, com a finalidade de "revigorar o movimento de atualização do direito público, para mantê-lo dominante no Estado Democrático e Social, exigindo que este último cumpra efetivamente a tarefa de oferecer utilidades concretas ao cidadão, conjugando equidade e eficiência" (Modesto, 2000, página 75).

Observa-se que um dos desafios preliminares para o governo eletrônico é o de reduzir a burocracia na Administração Pública o que pode ser atingido a partir da prestação de serviços com maior eficiência e qualidade como, por exemplo, através do acesso a portais governamentais de fácil acesso e compreensão por parte do cidadão.

Sobre este assunto, é pertinente a observação de Christianne Coelho de Souza Reinisch Coelho (2007), em palestra por ela proferida no Primeiro Encontro Ibero Latino Americano de Governo Eletrônico e Inclusão Digital, no dia 28 de junho de 2007, ao salientar que embora o governo em rede seja complexo em sua organização e estrutura, não pode ser complexo para o cidadão nem para a própria Administração Pública quanto ao conhecimento da organização e treinamento do uso das TICs.


Para Luiz Fernando Martins Castro, "os governos devem conhecer a si próprios. Curiosamente, isso não ocorre hoje em dia, principalmente quando diferentes setores de uma mesma estrutura administrativa se dão ao luxo ou, se permitem, desperdiçar tempo e recursos humanos realizando tarefas em duplicidade de maneira redundante e o que é mais grave, muitas vezes contraditórias" (CASTRO, 2006, p. 332).

Entretanto, estes problemas podem ser solucionados através da implementação de uma adequada política de gestão de conhecimento nas organizações governamentais.

Aponta-se aqui, como exemplo, o procedimento adotado pela Coordenadoria de Recursos Humanos do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), onde durante muito tempo houve diversas críticas quanto ao mau gerenciamento desta coordenadoria, seja em relação à duplicidade de informações ou quanto ao excesso de setores detentores de dados contendo informações desatualizadas. Esta situação, no entanto, começou a mudar a partir do momento em que se reconheceu que as atividades desenvolvidas pela área de Recursos Humanos poderiam ser facilmente realizadas através do uso das tecnologias da informação, percebendo a importância de se criar um sistema integrado de informações que permitisse a consulta dos dados funcionais em tempo hábil e com maior segurança acerca da alimentação do sistema. Assim, "a solução proposta foi a implementação de um programa integrado, que desenvolvido pelos próprios funcionários do Ministério Público, asseguraria as peculiaridades administrativas da organização, a baixo custo" (Pacheco, 2002, página 68).

Neste aspecto, o uso das tecnologias da informação, na medida em que contribui para a construção de sistemas integrados de informações, pode facilitar significativamente a gestão do conhecimento, contribuindo para maior eficiência na administração pública.

Retornando aos demais desafios do governo eletrônico na sociedade da informação, cumpre fazer referências a Fernando Galindo (2007) que aponta para a existência de obstáculos sociais e legais para a implementação do governo eletrônico. Quanto aos obstáculos sociais, ele destaca os seguintes: problemas de liderança, restrições financeiras, exclusão digital, participação, falta de confiança, escassa flexibilidade na organização do trabalho e defeituoso desenvolvimento técnico. Já em relação aos obstáculos legais, a própria existência do direito administrativo já seria um problema dentre outros, tais como: a regulação da autenticação e identificação, direito de propriedade intelectual, privacidade e proteção de dados, transparência e reutilização da informação do setor público.

De fato, há questões culturais que certamente deverão ser enfrentadas pelo governo eletrônico, principalmente tendo em vista a realidade da sociedade brasileira na qual há uma desconfiança quanto ao uso das TICs e uma certa resistência quanto ao uso da tecnologia de forma impositiva, evidentemente mais nítida entre a parcela da população excluída da sociedade da informação.

Há um novo paradigma nesta sociedade da informação o qual estamos vivendo, que é evidenciado por Alain Touraine ao trazer a visão de que o conceito de modernidade se opõe à ideia de uma sociedade que seria seu próprio fundamento, sua própria legitimidade. Para o autor, "ela [a modernidade] afirma, ao contrário, que a sociedade não existe senão porque reconhece e defende a existência de fundamentos não sociais da ordem social" (Touraine, 2006, página 60).

Em outras palavras, a concepção de sociedade na Europa Ocidental era vista não como um meio, mas como um fim em si mesma. É por isso mesmo que o modelo europeu de sociedade se decompõe de forma acelerada e, na atualidade, percebe-se uma crise de representação das forças políticas em relação aos atores sociais.

Destacam-se, assim, dois princípios da modernidade que são de natureza não social: 1) a crença na razão e na ação social; 2) e o reconhecimento dos direitos do indivíduo, ou seja, a afirmação de um universalismo que concede a todos os indivíduos os mesmos direitos, sejam quais forem seus atributos econômicos, sociais ou políticos.


Esse paradigma estaria consubstanciado no fato de que "a ideia de modernidade, pelo contrário, traz em si uma tensão insuperável entre, por um lado, a razão e os direitos dos indivíduos e, por outro, o interesse coletivo" (Touraine, 2006, página 89). É justamente dentro deste conflito de interesses que está inserido o governo eletrônico.

Segundo Antonio Carlos Wolkmer, "é a partir da modernidade ocidental que se deve configurar a criação do sujeito individual, capaz de, ao estabelecer livremente um contrato gerador da sociedade política, legitimar racionalmente direitos subjetivos de liberdade e igualdade" (Wolkmer, 2005, página 12). Este autor defendeu a necessidade da humanização das tecnologias ao comentar, na qualidade de mediador, sobre o uso das TICs na sociedade da informação durante o Primeiro Encontro Ibero Latino Americano de Governo Eletrônico e Inclusão Digital que aconteceu nos dias 27 e 28 de junho de 2007, no auditório do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC.

De um lado, há o interesse da coletividade, representado pelos "nós", tanto pelos "nós" da rede quanto pelos "nós" como sujeitos deste processo, como atores sociais defensores do governo eletrônico como uma ideologia política para a modernização da administração pública e prestação de serviços públicos de forma mais eficiente e principalmente no tocante ao atendimento das necessidades dos administrados e de toda a coletividade, mas a inclusão digital muitas vezes fica apenas no discurso político e muito pouco na prática, deixando-se de lado os problemas sociais do país como se isto não tivesse nada a ver com o governo eletrônico.

Por outro lado, há os interesses individuais de cada cidadão cujos direitos sociais e fundamentais devem ser assegurados para que a Constituição Federal não vire letra morta, salienta-se que estes sujeitos são representados não apenas pelos excluídos da sociedade e que estão à margem do governo eletrônico, mas também pelo individualismo de cada um, eis que o interesse particular pode se opor ao interesse coletivo, sendo difícil renunciar a tais direitos em prol da coletividade e submeter-se a aceitar decisões políticas, por exemplo, que impliquem em prejuízo a nosso próprio interesse, mas que sejam em benefício do bem comum.

José Carlos Vaz define muito bem um dos principais objetivos do governo eletrônico ao mencionar que "o que se pretende é uma modernização da administração pública que transforme as relações entre Estado e sociedade e vincule a eficácia e a eficiência da ação das ações de governo à afirmação de direitos coletivos de cidadania". (Vaz, 2003, página 2).

Evidentemente, é preciso conciliar o interesse da coletividade com o interesse de cada indivíduo, sendo este talvez o papel do chamado mínimo ético e, conseqüentemente, também se apresenta como um desafio para o governo eletrônico na sociedade da informação.

Nos dias hodiernos, a inclusão digital que envolve o direito de acesso à Internet se apresenta como fundamental na sociedade da informação, pois a inclusão digital se configura como um requisito necessário para o exercício pleno da cidadania. Assim, pode-se dizer que o acesso à Internet constitui um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal, conforme interpreta Hartmann (2007):

O direito ao acesso à internet representa uma garantia do indivíduo de respeito de sua esfera particular, na medida em que viabiliza a identificação dos dados pessoais que sobre ele circulam e são armazenados, decorrência do direito fundamental a proteção de dados pessoais ou direito a liberdade informática. Na mesma linha, caracteriza direito contra o Estado e particulares, pois efetiva o direito a liberdade de expressão. Ainda, representa uma garantia contra o Estado ao permitir o controle da atuação do mesmo, através da realização daquilo que é postulado pelo princípio da publicidade.

Neste sentido, Luiz Carlos Cancellier de Olivo já tinha observado que "o exercício do controle social sobre a atuação dos agentes públicos em uma Sociedade da Informação será mais eficaz quanto maior for o número de pessoas conectadas à rede de computadores" (Olivo, 2004, página 179).


Há projetos que estão sendo desenvolvidos com o objetivo de fomentar a inclusão digital direcionados para atender os alunos da rede pública de ensino, alguns destes consistem em reciclar máquinas caça-níqueis, que ao invés de serem destruídas, podem ter uma destinação social adequada.

No Estado de Santa Catarina, destaca-se, por exemplo, a iniciativa do Projeto de Reciclagem de Microcomputadores que tem como principais objetivos: contribuir para educação da comunidade em torno das novas tecnologias; reciclar e/ou recondicionar e transferir equipamentos computacionais; contribuir para a geração de espaços para a informação, formação, capacitação e difusão da cidadania em torno das novas tecnologias; e a difusão do software livre (Silva, 2007).

Uma vez que a finalidade de destruir as máquinas caça-níqueis é tão somente para evitar que elas voltem a operar, deve-se buscar atender a este objetivo de forma eficiente, dando a estas uma destinação social ao invés de determinar a sua simples destruição, já que seus componentes (monitor, driver e inclusive o teclado da máquina) podem ser aproveitados para fins sociais relevantes.

Por uma questão de bom senso e compromisso social, antes de determinar a destruição de máquinas caça-níqueis, deve o juiz verificar a possibilidade de tais máquinas serem encaminhadas para organizações confiáveis que desenvolvam projetos voluntários de reciclagem de microcomputadores com o compromisso de doarem os mesmos em perfeitas condições de uso e inclusive com softwares educativos para auxiliar na educação e inclusão digital dos alunos de instituições de ensino da rede pública.

As máquinas caça-níqueis podem ter uma destinação mais apropriada na medida em que forem utilizadas para reciclagens de microcomputadores a serem doados para escolas públicas, promovendo, assim, a inclusão digital. No entanto, para que esta realidade seja viável, é preciso divulgar tais iniciativas, sendo importante também firmar parcerias que contribuam para a implementação de projetos desta natureza.

Desta forma, há uma grande iniciativa de inclusão digital que está sendo desenvolvida em Santa Catarina, trata-se do projeto Rede Piá (Projeto Reciclagem Digital Educativa Pró-Infância e Adolescência) que visa justamente à conversão de máquinas caça-níqueis em computadores com a inclusão de programas educativos para ajudar na formação de crianças e adolescentes da rede pública escolar.

Trata-se de um projeto que conta com a parceria do Ministério Público de Santa Catarina, por intermédio do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (CIJ) e do Centro de Apoio Operacional Criminal (CCR), do Governo do Estado, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Associação Catarinense das Fundações Educacionais (ACAFE), composta por 16 instituições, e da Associação de Mantenedoras Particulares de Educação Superior de Santa Catarina (AMPESC) que abrange 49 instituições; caracterizando-se certamente como uma das maiores iniciativas de inclusão digital no Estado de Santa Catarina.

O governo eletrônico surge com a promessa de fortalecer a democracia. Fala-se então em democracia eletrônica. Entretanto, muito se questiona se esta democracia deveria continuar sendo representativa ou permitir uma participação mais efetiva do cidadão através de uma democracia direta como idealiza Paulo Bonavides (2004, p. 31).

Na realidade, percebe-se que os atuais discursos sobre inclusão digital e governo eletrônico estão em sua grande maioria preocupados tão somente em inserir os cidadãos neste sistema apenas para obter a pretendida legitimação social, não obstante é importante lembrar que não se pode falar em democracia em um país onde não estão sequer garantidos os direitos sociais fundamentais estabelecidos constitucionalmente.

Há pela frente um longo debate que apenas está no seu início, trata-se de discutir qual seria a melhor forma de governo na era da informação: a democracia em Aristóteles ou a aristocracia dos sábios defendida por Platão? Talvez nenhuma das duas! Esta é uma discussão que não se pretende aprofundar neste momento, mas que se comenta apenas para evidenciar o renascimento desta questão a partir do fenômeno do governo eletrônico e para enfatizar a necessidade de consolidar os direitos do cidadão.


De fato, é importante analisar as formas de governo na sociedade da informação, mas não a partir da busca pela forma de governo mais interessante para manter a ordem e garantir o progresso da nação, mas principalmente visando identificar a forma de governo que melhor assegure a supremacia dos direitos fundamentais do cidadão, a qual, salvo melhor juízo, continua sendo a democracia.

Mas qual democracia? Em um país como o Brasil, percebe-se que não há como sustentar uma democracia elitista ou representativa, porque a primeira não é sequer democrática e a segunda, por sua vez, encontra-se em crise atualmente, portanto a única alternativa viável é promover uma democracia eletrônica que seja realmente participativa e democrática.

Não há democracia quando se pretende que o exercício da cidadania seja exercido efetivamente apenas por uma parcela da população, pois ainda que a população seja formada em sua predominância por pessoas de pouca escolaridade, a ignorância do povo não pode servir como justificativa nem como pretexto para impedi-los de participar do processo democrático e de exercer a sua cidadania de forma plena, sendo abominável qualquer pretensão no sentido de limitar esta participação.

Nas sábias palavras do jurista José Afonso da Silva, "a democracia não precisa de pressupostos especiais. Basta a existência de uma sociedade. Se seu governo emana do povo, é democrática; se não, não o é. A sociedade primitiva fora democrática. A sociedade política – estatal – passara a não ser. Por isso, nesta a democracia pressupõe luta incessante pela justiça social. Não pressupõe que todos sejam instruídos, cultos, educados, perfeitos, mas há de buscar distribuir a todos instrução, cultura, educação, aperfeiçoamento, nível de vida digno" (SILVA, 2003, p. 128).

Portanto, depreende-se que a democracia eletrônica somente se justifica se forem garantidos os direitos fundamentais, tais como a inclusão digital, para que seja possível construir uma sociedade da informação que seja livre, justa e igualitária, atendendo a este que é um dos nobres objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e para que isto aconteça, o governo eletrônico deve ser direcionado para o cidadão e para o bem comum de toda a coletividade, assegurando os direitos básicos para que esta democracia eletrônica seja possível.

Há diversos desafios para o governo eletrônico na sociedade da informação, mas, certamente, um dos mais importantes será manter-se firme aos seus ideais, promovendo a inclusão digital e fortalecendo o processo democrático, ampliando a participação do cidadão neste processo e não reduzindo ou limitando a sua influência nas tomadas de decisões políticas.

O governo eletrônico somente poderá salvar a democracia mediante o uso das tecnologias da informação e da comunicação se for capaz de promover a inclusão digital para permitir a todos, ou a grande maioria, participar deste processo para que este realmente seja democrático, caso contrário, a democracia estará apenas no discurso.

Por último, insta salientar que a democracia mantém forte vínculo com a garantia dos direitos fundamentais, pois todo o poder emana do povo e a finalidade de outorga deste poder aos representantes políticos é justamente para que sejam concretizados os objetivos constitucionalmente estabelecidos na Carta Magna que passam pela garantia de tais direitos, pois a inclusão digital pressupõe a inclusão social, assegurando a todos um mínimo ético, ou seja, condições essenciais para que o indivíduo possa se desenvolver plenamente na sociedade da informação como um ator social importante por meio do exercício da sua cidadania.

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