Deve-se dar uma família a uma criança e não o contrário
6 de outubro de 2009, 6h44
O filósofo Martin Heidegger cita uma fábula: quando o Cuidado atravessou um rio, viu ele terra em forma de barro: meditando, tomou parte dela e começou a dar-lhe forma. Enquanto medita sobre o que havia criado, aproxima-se Júpiter. O Cuidado lhe pede que dê espírito a esta figura esculpida com barro. Isto Júpiter lhe concede com prazer. Quando, no entanto, o Cuidado quis dar seu nome a sua figura, Júpiter o proibiu e exigiu que lhe fosse dado o seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam sobre os nomes, levantou-se também a Terra e desejou que à figura fosse dado o seu nome já que ela tinha-lhe oferecido uma parte de seu corpo. Os conflitantes tomaram Saturno para Juiz. Saturno pronunciou-lhes a seguinte sentença: Tu, Júpiter, porque deste o espírito, receberás na sua morte o espírito; tu, Terra, porque lhe presenteaste o corpo, receberás o corpo. Mas porque o Cuidado por primeiro formou esta criatura, irá o Cuidado possuí-la enquanto ela viver. Como, porém, há discordância sobre o nome, irá chamar-se “homo” já que é feita de “húmus”.
Esta alegoria representa a idéia de que o “cuidado” possui ou deva possuir o homem enquanto ele viver. É essa a doutrina que fundamenta o Estatuto da Criança e do Adolescente: o princípio do Cuidado como um fundamental valor jurídico, isto é, da proteção integral e de ações que sempre tenham por objetivo o melhor interesse da criança. A criança e o adolescente deixaram de ser tratados apenas como objetos passivos, passando a ser sujeitos de direito, titulares de direitos fundamentais.
Nesse contexto, do melhor interesse da criança, será que a adoção feita por um par homossexual atende a esse princípio do Cuidado?
Não é de hoje que a psicanálise identifica a vital importância da figura masculina e feminina na identificação adequada dos gêneros por parte dos filhos. Tanto na menina quanto no menino, na etapa genital da evolução da libido, o primeiro objeto de amor é a mãe, mas enquanto o menino já nasce vinculado ao objeto heterossexual, é obrigado a abandoná-la, porque verifica a presença do pai e o teme e também pelo amor ao pai, identifica-se com ele. Na menina, há todo um movimento mais complexo: pela fantasia de não ser completa, por se sentir em desvantagem, abandona o vínculo ressentida com a mãe e volta-se para o pai, na busca de alguém que a complete. Destaca-se, então, a suma importância do olhar de aprovação do pai à menina, de valorização de seu sexo, para que ela possa construir uma identidade de gênero adequada, isto é, identificar-se com a mãe, com os atributos da feminilidade para poder desejar construir, no futuro, um vínculo com parceiro, escolhido à semelhança do pai. A função paterna é, desse modo, indispensável para a resolução dessas etapas do conflito que Freud chamou de Complexo de Édipo, triangulação que determinará a identidade de gênero em ambos os sexos (Revista Psique, edição 40).
Logo, é evidente que dentro da dinâmica familiar, a orientação sexual daqueles que exercem a função de pai e de mãe pode sim influenciar a identidade de gênero dos filhos.
Nossa legislação não proíbe expressamente a adoção por “casal” homossexual, entretanto, diante da influência que, embora não necessariamente, pode ser exercida na criança em ambiente desvinculado daquele natural interesse heterossexual que surge desde a infância, como já constatara Freud, tal adoção parece não ser o caso de atendimento ao melhor interesse da criança.
Sempre se argumenta que, de qualquer forma e acima de qualquer discussão, seria melhor não impor barreiras à adoção de criança por “casal” homossexual do que deixá-la abandonada ou no orfanato, bem como se invocam os princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da afetividade, da intimidade, da pluralidade das famílias e da proibição por discriminação sexual.
Ora, é claro que é muito melhor uma criança ter um lar do que permanecer abandonada, porém, se o princípio é o do melhor interesse da criança, não basta que não se impeça a adoção pelo par homossexual, e sim que o Estado desenvolva, implemente e incentive ações que ajudem na adoção em todos os seus aspectos, diminuindo as filas de espera, o tempo de processo, aparelhamento pessoal e técnico dos Conselhos Tutelares, Varas de Infância, Assistência Social, etc.. Desta forma, muito mais crianças teriam um lar e muito menos restariam abandonadas.
Lado outro, não menos evidente que não se pode discriminar os homossexuais, dificultando que sejam, dentro do seu modo de ser no mundo, pessoas completas e realizadas como qualquer ser humano. Contudo, o Princípio do Cuidado estabelece que o direito da criança sobrepõe-se ao dos que pleiteiam a adoção, isto é, deve-se dar uma família a uma criança e não uma criança a uma família.
Como já escrevi noutra oportunidade, “não se pode fazer tudo no Direito com base na bandeira da dignidade da pessoa humana” (Leonel Ohlweiler).
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