Maestro de direitos

Um militante da integralidade dos Direitos Humanos

Autor

  • Grijalbo Fernandes Coutinho

    é desembargador no TRT-10 (DF e TO) mestre em Direito e Justiça pela UFMG autor da pesquisa e do livro Terceirização: Máquina de Moer Gente Trabalhadora – A inexorável relação entre a nova marchandage e degradação laboral as mortes e mutilações no trabalho (LTR 2015) ex-presidente da Anamatra.

5 de outubro de 2009, 17h00

Há homens que lutam um dia e são bons;
Há outros que lutam um ano e são melhores;
Há os que lutam muitos anos e são muitos bons;
Mas há os que lutam toda a vida,
Estes são os imprescindíveis

Bertold Brecht

Minutos antes de a cidade do Rio de Janeiro ser anunciada como a sede das Olimpíadas de 2016, a Espanha, o Brasil, o Japão, os Estados Unidos da América do Norte, o mundo, os povos explorados e discriminados nos diversos continentes e os Direitos Humanos perdiam uma extraordinária figura humana que fez da sua Teoria Crítica um poderoso instrumento a serviço da plena igualdade material, capaz de formar milhões de atletas e de pessoas portadoras da dignidade respeitada em todas as suas dimensões, antes, durante e depois das competições esportivas mais antigas e tradicionais.

Falecia em Sevilla, na Espanha, o jovem pensador Joaquín Herrera Flores, depois de lutar contra uma doença que não lhe retirou o ânimo de fazer andanças mundo afora pregando a necessidade de criar condições objetivas para conferir, por intermédio de processos permanentes de luta, Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais, Civis e Políticos aos excluídos pela sociedade de capital globalizante.

A morte do professor espanhol Joaquim Herrera Flores deixa o mundo e o humanismo sem um dos mais talentosos teóricos e militantes dos direitos sociais, econômicos e culturais.

Definitivamente, 2 de outubro de 2009 foi um dia muito triste para a humanidade e para o humanismo.

Para quem conheceu Joaquín Herrera Flores ou com a sua obra já teve contato, além da profunda tristeza e do sentimento de vazio, bem sabe que perdemos um extraordinário humanista, um teórico consistente e militante destemido dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, o autor da Teoria Crítica que buscou incessantemente revelar que a distinção entre categorias de Direitos Humanos, por níveis ou dimensões, atende aos propósitos da negação reiterada de garantias fundamentais aos segmentos não detentores do poder econômico.

Ele oferece aos operadores do Direito do Trabalho, com a sua vasta e contundente obra, a meu ver, os mais abalizados elementos para dar validade e valorizar o sentido de integralidade e justiciabilidade dos Direitos Humanos.

Homens comprometidos com as bandeiras sociais dos humildes, valentes teóricos desprovidos de vaidade, geniais pensadores e verdadeiros defensores dos Direitos Humanos, parece não haver dúvida, a humanidade não produz o tempo todo. Herrera Flores, entre o final do século XX e início de século XXI, foi um deles e fez brotar as suas ideias para além de terras espanholas.

Vai se Herrera Flores na plenitude da sua capacidade criativa, muito jovem ainda. Ele nos deixa no momento mais rico de sua aguçada e comprometida intelectualidade com os setores explorados e discriminados, daí porque também presente o sentimento da precocidade do ato final.

Fica o seu legado, registre-se, não para servir como mera obra acadêmica ou para ser o seu denso trabalho apenas objeto da consulta de pesquisadores do tema dos Direitos Humanos, porque não foi com esse intuito que abdicou da vida tranquila e conformista.

Foi irrequieto pensador em nome da batalha de milhões de excluídos no sentido de oferecê-los, assim como também aos operadores do mundo jurídico, instrumentos de luta e de efetivação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais como Direitos Humanos da imensa maioria da população mundial desprovida de tais garantias fundamentais.

Para ele, as alternativas ao modelo de globalização hegemônica somente serão construídas a partir do estabelecimento do pensamento “sintomático” e “afirmativo”, combinado com atitudes políticas capazes de desmoronar a “ideologia-mundo” da classe dominante e de seus governantes.

Destaca o pensador espanhol que o humanismo não nasce do nada, nem pode ser um valor abstrato. A sua concretude exige teoria e prática, formulação consistente e consciência de classe para se enxergar que a ideologia dominante expropria o trabalho e até mesmo a realidade.

Nessa perspectiva, a conquista dos direitos humanos requer a combinação da teoria (pensamento sistemático) com a prática (manifestações, atos, protestos, greves e outras ações), numa real luta pela dignidade humana, produtos culturais os quais surgem, assim, dentro de contexto histórico construído pelos seus atores.

Joaquín Herrera Flores, na qualidade de teórico engajado, intelectual militante comprometido com os Direitos Humanos em sua integralidade, não hesita em apontar a falsidade da base doutrinária construída pelos arautos do neoliberalismo, desqualificando as mensagens, subliminares e explícitas, dirigidas à manutenção do modelo de organização das relações econômicas. Mostra, com isso, que nenhuma frase ou ação surge por acaso.

Em um de seus tantos ensaios, Joaquín lança os argumentos e as palavras de ordem centrais dos formuladores do neoliberalismo, identificando-os, nominando-os, ao mesmo tempo em que revela a incorporação de toda essa concepção neoconservadora pela nação norte-americana como catalizadora das expressões mais expressivas do novo modelo econômico, depois do fim do denominado Estado do bem-estar social. O desejo da ideologia mundo em vigor não é apenas manter-se no poder, mas perpetuar-se ou eternizar-se como solução única para os problemas das mais diversas ordens, tudo a não permitir o uso de alternativa desautorizada pelo capital globalizante, controlador das ações sociais, culturais e políticas dos sujeitos de direitos, para esse grupo, frise-se, apenas de direitos individuais ligados à “liberdade” individual isolada fundada em raiz liberal e à propriedade.

E para destruir o dito “racionalismo capitalista”, o professor espanhol prega a necessidade de acesso igual entre as pessoas aos bens, materiais e imateriais, em idênticas condições, rompendo com todos e quaisquer sentimentos individualistas e egocêntricos naturalmente assentados na “ideologia mundo”.

Refutando um a um dos primados neoliberais, com a força e a contundência muitas vezes escamoteadas pelos intelectuais em nome de uma falaciosa neutralidade, Herrera Flores, depois de desconstruir o ideário da globalização hegemônica do capital, apresenta alternativas ao modelo segregacionista e individualista em questão, sugerindo, assim, a internacionalização dos movimentos sociais pautados pelo respeito às diferenças culturais e à liberdade de expressão e de criação sufocadas pelo monopólio comportamental imposto a povos guardados de uma diversidade histórica não-econômica a ser respeitada.

O reconhecimento de tais diferenças, em vez de dividir os explorados e oprimidos, pode uni-los na construção do que foi denominado por Herrera de “Chaves de Tradução Cultural”, o verdadeiro segredo para fazer frutificar ações de resistência em caráter planetário.

Joaquim Herrera Flores explora a fragilidade teórica da base neoliberal, sem desprezar, evidentemente, a sua eficácia prática no que se propõe a realizar em nome do capitalismo de livre mercado sem fronteiras e sem regulação estatal.

Após o ataque, Herrera parte para a defesa de alternativas concretas capazes de lançar um novo panorama de resistência às políticas da globalização hegemônica, com a marca , pois, da interculturalidade das ações humanas.

Algumas de suas teses convergem com o pensamento do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, especialmente no que se refere ao tema do direito à diversidade cultural por parte dos povos do mundo inteiro. É verdade que a crítica do pensador português é mais interna às teorias e práticas das diversas correntes que têm apresentado propostas e ações voltadas para combater a globalização hegemônica do capital por intermédio de uma sociologia das ausências para evitar o desperdício das experiências realizadas mundo afora e uma sociologia das emergências capaz de captar as necessidades do futuro, cujo trabalho de tradução é fundamental para agregar as mais diferentes culturas e os seus métodos de luta. Boaventura dá ênfase ao tema das definições teóricas acerca da sociologia metonímica e da sociologia proléptica, espécies de negação da sociologia das ausências e da sociologia das emergências, tudo resultando na síntese por ele avocada sob o nome de hermenêutica diatópica.

Logo, quanto à interculturalidade, os escritos de Herrera e Boaventura se complementam.

Joaquín Herrera Flores, reitere-se, analisa a interculturalidade a partir da contextualização histórica da própria globalização e os seus fundamentos teóricos para depois erguer a bandeira da construção das chaves culturais condutoras da edificação de espaços internacionais de luta pela prevalência dos Direitos Humanos e da dignidade humana dos explorados e oprimidos de hoje.

O ativismo político da Teoria Crítica de Joaquín Herrera Flores não é o seu único mérito. O debate travado sobre as causas usurpadoras dos Direitos Humanos, sem subterfúgios e quaisquer receios, numa clara opção em defesa da vida digna para os sujeitos objeto da exploração e da segregação, é o que a distingue, verdadeiramente, de outras concepções construídas em torno de tema e prática tão relevantes para o mundo que deveria ter a espécie humana como centro das atenções.

Herrera assinala que “Hablar de dignidade humana no implica hacerlo de um concepto ideal o abstracto. La dignidad es un fin material. Un objetivo que se concreta em dicho acesso igualitário y generalizado a los bienes que hacen la vida sea “digna” de ser vivida”.

As duas últimas obras de Joaquín Herrera Flores publicadas no Brasil ocorreram nesse ano de 2009: “A(re)invenção dos DIREITOS HUMANOS”( Fundação Boiteux-IDHID- Florianopolis-SC) e “Teoria Crítica dos Direitos Humanos – Os Direitos Humanos como Produtos Culturais” ( Lumen Juris Editora).

O intelectual europeu avesso ao eurocentrismo, valorizador dos espaços culturais e geográficos das comunidades indígenas, bem como de suas criações empíricas muitas vezes apropriadas depois pela indústria, refutava a concepção de ciência restrita ao modelo do racionalismo capitalista, denunciava a violência histórica perpetrada pela colonização europeia sobre terras africanas, indígenas e americanas, mostrava a raiz da sociedade fundada no patriarcalismo, pugnava pelo respeito à diversidade e pela igualdade material entre os sujeitos integrantes da espécie humana.

Numa das suas últimas manifestações, sem temer a morte, o maestro dos Direitos Humanos Joaquín Herrera Flores assim se expressou:

A vida continuará, queiramos ou não, depois de nossa passagem por ela. Os bosques seguirão produzindo oxigênio e frutos. Os mares continuarão nos proporcionando chuva e sal. As pessoas que amamos seguirão nos amando, talvez ainda mais do que quando estávamos aqui com eles. A árvore, a gota de água, o sentimento de amor estarão sempre aí colorindo a vida com todas as cores do arcoíris e com todas as misérias de nossas necessidades. Nada é mais alto ou menor. Tudo é o vivo, o que perdura, o que nos acolhe e nos recolhe.

Joaquín Herrera Flores se foi no dia 2 de outubro de 2009.

As suas lições e a sua vontade de mudar o mundo permanecerão perenes, acesas e vivas enquanto a integralidade dos Direitos Humanos for privilégio de frações da sociedade mundial.

Grijalbo Fernandes Coutinho, juiz do trabalho em Brasília-DF(Brasil), aluno do Curso de Master(Semi Presencial) em “Teoria Crítica dos Direitos Humanos- Globalização e Direitos” da UPO- Universidade Pablo de Olavide( Espanha).

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