Trabalho escravo

Dono de confecção é condenado a 23 anos

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2 de outubro de 2009, 7h59

As oficinas de costura na cidade de São Paulo têm se tornado destino de peruanos e bolivianos. Mesmo diante de precárias condições de trabalho e da baixa remuneração, alguns deles preferem vir para o Brasil a continuar em seus países. Ainda que de forma ilegal. Em São Paulo, depois de uma denúncia, a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região condenou o dono de uma oficina de costura, Moisés Cespedes Cossio, a 23 anos de reclusão, por manter trabalhadores em situação análoga a escravidão.

De acordo com depoimentos de policiais e testemunhas, foram encontrados na oficina bolivianos vivendo e trabalhando precariamente, em situação análoga à escravidão. Cossio também foi condenado por intermediar a entrada clandestina de cidadãos no país e ainda por sequestrar um adolescente, por um resgate de R$ 5 mil.

Consta no processo, relatado pelo desembargador Henrique Herkenhoff, que Cossio foi preso em flagrante pelo sequestro do adolescente boliviano. Foi aí que os policiais entraram na fábrica e verificaram a existência de trabalhadores em situação análoga à escravidão.

A irmã do rapaz, em depoimento ao juiz, disse que “trabalhava das 7h da manhã até as 22h, com uma hora de almoço e pequenos intervalos, de 15 minutos, pela manhã e a tarde. (…) Dormiam num quarto de cerca de 3×3 metros, com mais 5 pessoas, estando o quarto em condições precárias de higiene”. O adolescente disse ao juiz que trabalhou durante quatro meses e ganhou R$ 182 pelo período, o que não permitia que comprasse utensílios pessoais básicos, como escova de dente, sabonete, pasta de dente.

Um policial que participou da prisão em flagrante do dono da fábrica disse que os trabalhadores demonstraram ter “muito medo de Moisés” e que ele pagava a viagem dos bolivianos para o Brasil, descontando o valor do parco salário pago.

No voto do relator, consta que o contato com os trabalhadores era feito na Bolívia, “por intermédio de uma parente do réu”. Depois, ele pagava a passagem, os buscava na fronteiro e levava até a oficina. Os seus documentos, de acordo com o desembargador Henrique Herkenhoff, eram apreendidos e eles não tinham liberdade para sair a hora que quisessem da fábrica.

“O cerceamento de liberdade era alcançado também com ameaças feitas pelo réu, dado que as vítimas, cientes de sua clandestinidade, ficavam atemorizadas com a chegada das autoridades brasileiras”, escreveu o desembargador. “Observo o alto grau de reprovabilidade na conduta do réu, tendo em vista que o praticava com a prévia intenção de subjugar as vítimas em território estrangeiro e revelando intenso desprezo pela dignidade humana”, acrescentou.

O adolescente sequestrado e sua irmã decidiram fugir da fábrica para a casa da única pessoa que conheciam no Brasil. Um dia, quando jogava futebol, foi abordado pelo primo do dono da fábrica e levado para o local onde ficou preso. Segundo o processo, a exigência dos R$ 5 mil para liberar o rapaz foi feita para a irmã.

“Verifico a presença, contida implicitamente na denúncia, da circunstância agravante prevista no artigo 61, inciso II, "a" (motivo torpe), dado que o réu sequestrou a vítima em razão de ela ter escapado do seu jugo, com a clara finalidade de intimidar as demais vítimas, sempre com o intuito de lucro”, explicou ao aumentar a pena.

No voto, acolhido pela maioria dos integrantes da 2ª Turma, o desembargador determinou o envio dos autos ao Ministério da Justiça para a possível instauração de procedimento administrativo contra o réu.

Leia a decisão

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2008.61.81.000022-2/SP
RELATOR: Desembargador Federal HENRIQUE HERKENHOFF
APELANTE: MOISES CESPEDES COSSIO
ADVOGADO: ALEXANDRE BORBA e outro
APELANTE : Justica Publica
APELADO: OS MESMOS
 

RELATÓRIO

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL HENRIQUE HERKENHOFF:

Trata-se de apelações interpostas pelo Ministério Público Federal e por Moises Cespedes Cossio em face da sentença (fls. 482/490) que o condenou pela prática do delito previsto no artigo 149, caput, 2ª parte e § 1º, inciso II, c.c. o § 2º, inciso I, do mesmo dispositivo, do Código Penal.

Consta da denúncia que o réu, em 23.12.2007, foi preso em flagrante por haver sequestrado o menor Oscar Rojas Gonçales e ter exigido, como preço do resgate, a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) de seus familiares.

Consta ainda que, na ocasião, os policiais observaram que o réu reduzia a condições análogas às de escravos as vítimas Rebeca Rojas Gonzáles, Ruben Domingo Gutierrez, Leonarda Álvares, Fermin Rojas, Emiliana Aldana Cardozo, Sonia Ruiz Coronado, Leÿncio Aldana Cardozo, além de Oscar Rojas Gonzáles, em sua oficina de costura.

Por fim, consta, das declarações colhidas durante o inquérito policial, que o réu introduziu e ocultou clandestinamente, em território nacional, Rebeca Rojas Gonzáles, Ruben Domingo Gutierrez, Leonarda Álvares, Fermin Rojas, Emiliana Aldana Cardozo, Sonia Ruiz Coronado, Leÿncio Aldana Cardozo, além de Oscar Rojas Gonzáles.

Dessa maneira, o réu foi denunciado por extorsão mediante sequestro contra pessoa menor de dezoito anos, redução a condição análoga à de escravo e introdução clandestina de estrangeiro (artigos 159, § 1º e 149, § 2º, ambos do Código Penal, e artigo 125, inciso XII da Lei nº 6.815/80).

A denúncia foi recebida em 22.01.2008 (fl. 97).

A sentença julgou parcialmente procedente a ação penal, condenado o réu, pelo delito de redução a condição análoga à de escravo, ao cumprimento de pena privativa de liberdade de 03 (três) anos de reclusão, em regime aberto, e ao pagamento de 15 (quinze) dias-multa, no valor unitário de 1/30 (um trigésimo) do salário-mínimo vigente à época dos fatos. Considerando a presença dos requisitos do artigo 44, do Código Penal, a pena privativa de liberdade foi substituída por penas restritivas de direitos, consistentes em prestação pecuniária, no valor de 01 (um) salário-mínimo, e prestação de serviços à comunidade.

O réu foi absolvido quanto aos delitos previstos no artigo 159, § 1º, do Código Penal, e no artigo 125, inciso XII, da Lei nº 6.815/80, com fundamento no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, em sua redação anterior.

Em suas razões de apelação (fls. 499/510), o Ministério Público Federal pleiteia a condenação do réu também pelos delitos de extorsão mediante seqÿestro e de introdução clandestina de estrangeiro.

Por sua vez, o réu (fls. 545/559) sustenta a ausência de provas suficientes; a ausência de dolo em relação ao delito de redução a condição análoga à de escravo; e a violação do princípio da ampla defesa, por não ter sido reconhecida, em primeira instância, a nulidade do depoimento de Oscar Rojas Gonzáles em razão da presença da testemunha Rebeca Rojas Gonzáles (fl. 390).

Pleiteia, assim, a absolvição com fundamento no artigo 386, inciso I, do Código de Processo Penal, com relação a todos os fatos descritos na denúncia.

A defesa e o Ministério Público Federal apresentaram contra-razões (fls. 524/544 e 561/566).

O parecer da Procuradoria Regional da República é pelo improvimento do recurso da defesa e pelo provimento do recurso da acusação (fls. 590/594v.).

É o relatório.

À revisão.

VOTO

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL HENRIQUE HERKENHOFF:

1. Do crime de introdução clandestina de estrangeiro (artigo 125, inciso XII, da Lei nº 6.815/80).

A r. sentença considerou insuficientes as provas com relação ao delito de introdução clandestina de estrangeiro, pelo fato de os depoimentos colhidos em sede policial serem contraditórios com a prova colhida em juízo, e por entender que os depoimentos das vítimas Oscar e Rebeca Rojas Gonzáles não correspondiam à realidade.

De fato, a maioria das vítimas apresentou em juízo versão diferente da apresentada no inquérito policial.

Em sede policial, as vítimas Fermin, Emiliana, Sonia e Leÿncio afirmaram que o réu pagou as suas passagens da Bolívia para o Brasil, buscou-as na fronteira e introduziu-as clandestinamente no país (fls. 23, 25/26, 27/28, 29/30).

Porém, em juízo, elas afirmaram que apenas conheceram o réu após terem entrado no país (fls. 299, 302/303, 305, 396/397).

A tese da acusação é a de que a alteração nas declarações se deu em razão do temor que as testemunhas tinham em relação ao réu, o que se tem por confirmado pela declaração de Sonia Ruiz Coronado:

"Recebeu orientação de Albina, esposa de Moises, para dizer que veio para esse país sozinha, não dizer a verdadeira situação em que se encontra.". (fls. 27/28)

Além disso, as únicas vítimas que mantiveram, em juízo, a versão apresentada em sede policial, foram Oscar (fls. 17 e 290/291) e Rebeca (fls. 15 e 293/294), que não trabalhavam mais para o réu.

A presença de Rebeca no depoimento de Oscar não configura irregularidade, dado que ambos são testemunhas de acusação, e eventual intimidação de um ou outro é vício que não interessaria à defesa alegar (CPP, 565, parte final).

Em todo caso, não se pode negar inteiramente valor ao testemunho assim prestado, cabendo ao juiz analisar em que medida ele merece maior ou menor confiança.

No caso concreto, o conjunto probatório mostra que os depoimentos judiciais e extra-judiciais que incriminam o réu são os mais fidedignos.

Os policiais Alexandre Graciano e Vagner Ramalho, em sede policial, afirmaram que:

"No local foi observado que funciona uma oficina de costura, onde trabalham e moram no local vários bolivianos em situação irregular no país e demonstram terem muito medo de Moisés. Apurou-se que o mesmo pagava a viagem das vítimas para o Brasil e descontava em serviços.". (fls. 09 e 12)

No mesmo sentido foram as suas declarações em juízo:

"Os funcionários que ali estavam eram todos bolivianos e foram todos trazidos pelo Moisés. Parece que era o Moisés que pagava a passagem de todos", acrescentando ainda que "os documentos das pessoas não ficavam com elas, ficavam em poder da esposa de Moisés. Lembro que esses documentos foram encontrados na carteira de Moisés.". (fls. 321/322 – depoimento de Vagner Ramalho)

"Segundo informações da família, Moisés era encarregado de transportar pessoas da Bolívia para o Brasil, para trabalhar na sua confecção.". (fls. 324/325 – depoimento de Alexandre Graciano)

Demonstrou-se que o contato com as vítimas era realizado ainda na Bolívia, por intermédio de uma parente do réu. Após, ele custeava a vinda delas ao país, buscava-as na fronteira e trazia-as até a sua oficina.

"Que conhece a cunhada de Moisés, a qual chama-se Virginia qual é residente em Santa Cruz, e através desta última souberam que Moisés estava selecionando pessoas para trabalhar no Brasil; Moises encontrou a declarante e Leoncio na fronteira do Brasil, conduzindo os mesmos a sua residência na cidade de Jandira; (…) As despesas da viagem foram pagas por Moises, mas é descontado do salário da declarante mensalmente." (fls. 25/26 — depoimento de Emiliana Aldana Cardozo)

Com isso, há provas suficientes de que o réu introduziu clandestinamente no país as pessoas mencionadas na denúncia, bem como as manteve escondidas em sua oficina, restando configurado o crime de introdução clandestina de estrangeiro, previsto no artigo 125, inciso XII, da Lei nº 6.815/80.

2. Do crime de redução a condição análoga à de escravo (artigo 149, caput, 2ª parte e § 1º, inciso II, c.c. o § 2º, inciso I, do Código Penal).

Demonstrou-se que o réu empregava as pessoas mencionadas na denúncia com o fim de reduzi-las a condições análogas à de escravo, configurando o delito previsto no artigo 149, § 1º, inciso II e § 2º, do Código Penal.

O réu submetia as vítimas a jornada exaustiva e a condições degradantes de trabalho, como falta de espaço e baixíssima remuneração. Além disso, as vítimas eram mantidas presas no local, onde também residiam, em condições inaceitáveis.

Rebeca Rojas Gonzáles afirmou que:

"Trabalhava das 07:00 horas da manhã até às 22:00 horas, com uma hora de almoço e pequenos intervalos, de 15 minutos, pela manhã e a tarde. (…) Dormiam num quarto de cerca de 3×3 metros, com mais 05 pessoas, estando o quarto em condições precárias de higiene.". (fls. 293/294)

Oscar Rojas Gonzáles declarou que:

"Chegou a trabalhar, desde a sua chegada, em junho de 2006 mais ou menos, até o período de 04 meses. Ganhou somente R$ 182,00 e não tinha dinheiro suficiente para adquirir bens de uso pessoal, como escova de dente, sabonete, pasta de dente e outros. Costumava trabalhar das 07:00 horas da manhã às 22:00 horas, com um intervalo de 01 hora de almoço. Trabalhava em regra, o dia inteiro no sábado. Aos domingos, se quisessem, poderiam fazê-lo, mas não eram obrigados. Não era permitida a saída do local de trabalho (…) Dormia juntamente com cinco pessoas num quarto de 3×3 metros. Havia três camas. Normalmente não era possível deixar o quarto limpo.". (fls. 290/291)

A perícia constatou a falta de higiene, de arejamento e de segurança no local onde as vítimas eram mantidas (fls. 227/241):

"No pavimento superior existem diversos quartos, onde eram posicionados beliches e colchões, sugerindo sua utilização como alojamento por pelo menos uma dezena de pessoas. Na cozinha, também situada no pavimento superior, se constatou a estocagem inadequada de alimentos perecíveis e as precárias condições de higiene aos utensílios, se verificando inclusive, que devido a problemas no sistema hidráulico, água para cozimento era retirada do banheiro, conforme ilustram anexos fotográficos.

(…)

Cumpre salientar os seguintes aspectos: condições inadequadas de arejamento, inexistindo janelas ou exaustores de oficina; inexistência de banheiros e vestiários distintos para homens e mulheres, sugerindo que banheiro do pavimento superior era utilizado coletivamente; inexistência de extintores de incêndio; precárias condições de higiene nos alojamentos e refeitório (cozinha e pavimento superior) oferecendo risco à saúde dos trabalhadores.".

Os policiais também descreveram essas condições degradantes:

"Lembro que os funcionários eram mantidos no local em condições precárias. Pois eram separados nos cômodos através de lençóis, com comida deteriorada e péssimas condições de higiene.". (fls. 321/322 – depoimento do policial Vagner Ramalho)

"O local não possuía condições mínimas de trabalho, moradia". "Lembro que as condições de trabalho e moradia eram péssimas". (fls. 09 e 324/325 – depoimento do policial Alexandre Graciano)

Ademais, demonstrou-se que o réu cerceava a liberdade das vítimas, subjugando-as em razão de dívidas contraídas, especialmente pelo custeio da viagem.

Na ocasião do flagrante, as vítimas acudiram aos policiais para informar a situação a que estavam submetidas:

"Apurou-se que o mesmo [o réu] pagava a viagem das vítimas para o Brasil e descontava em serviços, cobrando estadia, comida, ficando praticamente com todo o lucro, efetuando um pagamento mínimo quando fazia." (fl. 09 – depoimento do policial Alexandre Graciano)

"O que apurei é que o pessoal sempre ficava devendo para Moises, que cobrava o valor da passagem, alimentação, estadia das pessoas, motivo pelo qual acaba por segurar a pessoa naquele trabalho.". (fls. 324/325 – depoimento do policial Alexandre Graciano) "Lembro que eles informaram que recebiam salário, mas que era descontado a refeição e a estadia, além de outras despesas." (fls. 321/322 – depoimento do policial Vagner Ramalho)

"As despesas da viagem foram pagas por Moisés, mas é descontado do salário da declarante mensalmente.". (fls. 25/26 – depoimento de Emiliana Aldana Cardozo)

Além disso, o réu restringia a liberdade de locomoção das vítimas mediante a retenção de seus documentos pessoais, configurando, desse modo, a figura delitiva prevista no § 1º, inciso II, do artigo 149, do Código Penal.

As carteiras de identidade das vítimas, expedidas pela República da Bolívia, foram encontradas em poder do réu.

"Os documentos das pessoas não ficavam com elas, ficavam em poder da esposa de Moises. Lembro que esses documentos foram encontrados na carteira de Moises.". (fls. 321/322 – depoimento do policial Vagner Ramalho)

"Informa que seus documentos, bem como de seus irmãos, foram segurados por Moises e até a presente data não foram devolvidos." (fls. 15/16 – depoimento de Rebeca Rojas Gonzáles)

O cerceamento de liberdade era alcançado também com ameaças feitas pelo réu, dado que as vítimas, cientes de sua clandestinidade, ficavam atemorizadas com a chegada das autoridades brasileiras.

Rebeca Rojas Gonzáles afirmou que:

"Frequentemente era ameaçada, juntamente com os demais, no sentido de que, se saíssem do local, seriam presos e teriam problemas com a polícia.". (fls. 293/294)

O temor transpareceu na atitude de Oscar, vítima do sequestro, que fugiu dos policiais brasileiros quando eles vieram libertá-lo:

"Saiu correndo pulando para a casa do vizinho, pois acreditava que era os brasileiros que haviam chegado para pegá-lo.". (fls. 17/18)

"Recorda-se que com a chegada da Polícia, Oscar pulou o muro daquela residência, "pois achava que a polícia iria lhe matar".". (fls. 27/28 – depoimento de Sonia Ruiz Coronado)

Também os policiais presenciaram o medo que as vítimas sentiam em relação ao réu.

"Lembro que todas as pessoas que estavam na casa tinham muito medo desse tal de Moisés e ninguém queria falar nada sobre ele.". (fls. 324/325 – depoimento do policial Alexandre Graciano)

Por fim, o réu cometeu o delito contra os adolescentes Oscar (fl. 291) e Sonia (fl. 305), incidindo na qualificadora prevista no § 2º, inciso I, do artigo 149, do Código Penal.

"No Brasil ficou trabalhando para Moises durante 4 meses, sendo que o mesmo foi embora pois Moises quando bebia lhe agredia fisicamente.".(fls. 17/18 – depoimento de Oscar Rojas Gonzáles)

"Que o declarante encontra-se no Brasil há 06 meses aproximadamente; que trabalha para Moisés como babá (…); reside em companhia de Moisés e sua família, além de trabalhar também na oficina de costura.". (fls. 27/28 – depoimento de Sonia Ruiz Coronado)

Com isso, restou demonstrado que o réu reduziu as vítimas mencionadas na denúncia a condições análogas às de escravos, reteve os seus documentos pessoais, além de ter cometido o delito contra adolescentes, configurando as figuras previstas no artigo 149, caput, 2ª parte e § 1º, inciso II, c.c. o § 2º, inciso I, do Código Penal.

Em razão de tudo o que sofreram, os irmãos Rebeca e Oscar fugiram da oficina do réu e se abrigaram com Moises Quespi, a única pessoa que conheciam no Brasil.

"Esclarece, também, que naquela época, o depoente parecia ser o único conhecido daqueles [Rebeca, Oscar e outras duas pessoas], de maneira que os acolheu em sua residência.". (fl. 296 – depoimento de Moises Quespi)

"O declarante conseguiu sair daquele trabalho porque fugiu.". (fls. 17/18 – depoimento de Oscar Rojas Gonzáles)

"No Brasil ficou trabalhando para Moises até este último sábado dia 22, sendo que foi embora à noite em companhia de sua irmã e mais um casal, sendo que foram abrigados por Moises Quespi (…).

Seu irmão Oscar tinha fugido meses antes, e vez por outra se encontravam. Informa que seu irmão foi embora de Moises porque este não lhe pagava e chegou a agredi-lo.". (fls. 15/16 – depoimento de Rebeca Rojas Gonzales)

3. Do crime de extorsão mediante sequestro contra pessoa menor de dezoito anos (artigo 159, § 1º, do Código Penal).

Devido à fuga dos irmãos, o réu decidiu sequestrar Oscar, a fim de exigir quantia em dinheiro de sua irmã Rebeca, como condição para o resgate.

Na data dos fatos, o réu, acompanhado de mais duas pessoas, aproximou-se de Oscar e, dizendo que desejava conversar com ele e com suas irmãs, levou-o até a sua casa. As testemunhas Juan Liberato e Alberto Ramos Flores, presentes na ocasião, reconheceram o réu como sendo a pessoa que levou a vítima (fls. 59 e 65).

"Na data de ontem estava jogando bola com outros bolivianos em uma praça em Jandira, quando apareceu um primo de Moises de nome Filemon e disse se poderia jogar bola também, sendo que apenas perguntou e foi embora; acabado o jogo dirigiu-se com os amigos para beber refrigerante em uma padaria, quando apareceu Moises, Filemon e um brasileiro que desconhece, disse para o mesmo subir no carro que sua irmã Rebeca estaria na casa e queria conversar o porque ele tinha fugido e suas irmãs também.". (fls. 17/18 – depoimento de Oscar).

"Na data, horário e local dos fatos, encontrava-se na referida quadra de futebol, quando (…) Moises Céspedes Cossio, na companhia de um brasileiro (…), compareceram na quadra por volta das 10:00 da manhã, desceram do veículo e dirigiram-se diretamente em direção a pessoa de Oscar Rojas, chamando-o pelo nome e rumaram em direção ao veículo que estava próximo dando para visualizar perfeitamente quando Oscar adentrou no veículo."(fl. 63 – depoimento de Juan Liberato).

Ao chegarem a casa, o réu privou a vítima de sua liberdade de locomoção e ameaçou-a:

"Chegando na residência entrou inocentemente pensando que sua irmã Rebeca estaria lá, quando então mandaram ele para um quarto, o brasileiro que acompanhava Moises disse se poderia bater no declarante, sendo que Moises autorizou, mas isso não ocorreu.". (fls. 17/18 – depoimento de Oscar).

Em seguida, o réu pediu o telefone de Rebeca para a vítima, que lhe entregou o número de Moises Quespi. O réu telefonou para o número e exigiu da esposa de Moises Quespi a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a título de resgate para a liberação de Oscar.

"Moises indagou se o declarante tinha o telefone de sua irmã Rebeca, sendo lhe dado o telefone da pessoa que havia abrigado sua irmã; Ficou sabendo através da mulher de Moises que o mesmo iria pedir a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para libertá-lo" (fls. 17/18 – depoimento de Oscar).

"A depoente informa que no dia dos fatos estava em sua residência, quando por volta das 11:00 horas, recebeu uma ligação no telefone de seu esposo (…), oportunidade em que atendeu ao telefone e uma pessoa do sexo masculino indagava sobre a pessoa de Oscar (…) Que referida pessoa afirmou que a depoente conhecia Oscar e que ele estava sequestrado e exigiam a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), como condição de libertação de Oscar.". (fls. 59/60 – depoimento de Elia Rojas Vargas – esposa de Moises Quespi)

Nesse ínterim, a vítima ficou trancada em um quarto, totalmente privada de sua liberdade de locomoção:

"Ficou o dia todo no interior do quarto pois não tinha autorização para sair, nem mesmo para ir ao banheiro; Ficou o dia assistindo televisão e vez por outra, moradores daquele local ali entravam, mas não chegou a comentar com ninguém sobre sua situação; Chegou a ser agredido por uma outra pessoa de nacionalidade brasileira, mas não sabe dizer o nome chegou a bater no declarante, dizendo que queria dinheiro e, inclusive pegou um guarda-chuva e passou a apontar para seu olho, ameaçando furá-lo.". (fls. 17/18 – depoimento de Oscar).

Constou do laudo pericial que Oscar apresentava sinais de agressão (fl. 228):

"Vítima, Oscar Rojas Gonzáles, indicou como sendo o quarto dos fundos, do pavimento superior, o local onde teria sido mantido em cárcere privado. Informou, ainda, que era agredido constantemente por um guarda chuva, exibindo em seu tórax uma escoriação equimótica, que deverá ser melhor investigada pelo IML.". (fls. 227/228)

O policial Alexandre Graciano descreveu o péssimo estado em que encontrou a vítima:

"Lembro eu a vítima de nome Oscar, nesta correria conseguiu escapar e pular o muro da casa para o vizinho. Lembro que a vítima devia ter cerca de 17 anos de idade e foi o vizinho mesmo que nos avisou que ele estaria ali. Lembro que a vítima nos relatou que realmente estava preso num quartinho no andar superior da casa e lembro que ele estava todo sujo de necessidades, de urina. Ele não nos contou porque estava preso. Disse apenas que vivia trancado e que não podia sair nem para ir ao banheiro. Ele tremia muito e nem podia ouvir falar o nome do acusado, aparentando estar bastante amedrontado.". (fls. 324/326).

Com isso, restou comprovado que o réu praticou o delito previsto no artigo 159, § 1º, do Código Penal (considerando que a vítima Oscar era menor de dezoito anos – fl. 291).

Portanto, a condenação se impõe quanto a todos os delitos descritos na denúncia.

Passo à análise da dosimetria das penas.

Quanto ao delito previsto no artigo 125, inciso XII, da Lei nº 6.815/80 (introdução e ocultação clandestina de estrangeiro), observo que as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59, do Código Penal, são desfavoráveis ao réu.

Observo o alto grau de reprovabilidade na conduta do réu, tendo em vista que o praticava com a prévia intenção de subjugar as vítimas em território estrangeiro e revelando intenso desprezo pela dignidade humana.

As circunstâncias do delito revelam certo grau de planejamento, dado que envolvia a realização de várias etapas. Primeiramente, uma parente do réu entrava em contato com as vítimas na Bolívia; depois, o réu pagava as passagens das vítimas e buscava-as na fronteira com o país; por fim, ele trazia-as a sua oficina.

Além do mais, a esposa do réu orientou a vítima Sonia a ocultar essas circunstâncias, e há indícios de que todas as vítimas assim procederam, como se observa da contradição entre as afirmações em sede policial e em juízo.

Assim, fixo a pena-base em 02 (dois) anos de detenção.

Verifico a presença, contida implicitamente na denúncia, da circunstância agravante prevista no artigo 61, inciso II, "a" (motivo torpe), dado que o réu introduziu as vítimas em território nacional com a finalidade de lucro.

Desse modo, aumento a pena privativa de liberdade em 1/3 (um terço), resultando em 02 (dois) anos e 08 (oito) meses de detenção.

Sem causas de aumento ou diminuição.

Verifico a presença de concurso material, dado que o réu praticou a conduta delitiva em 08 (oito) ocasiões distintas, contra 08 (oito) vítimas diferentes, em diversas condições de tempo e de lugar. Assim, nos termos do artigo 69, do Código Penal, procedo à somatória das penas, resultando em 21 (vinte e um) anos e 04 (quatro) meses de detenção.

Quanto ao delito previsto no artigo 149 caput, 2ª parte e § 1º, inciso II, c.c. o § 2º, inciso I, do Código Penal (redução a condição análoga à de escravo), mantenho a fixação da pena-base em 02 (dois) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa (no mínimo legal), ante a ausência de recurso do Ministério Público quanto a esse ponto.

Sem circunstâncias agravantes ou atenuantes.

Verifico a presença da causa de aumento prevista no artigo 149, § 2º, inciso I, do Código Penal, motivo pelo qual reputo correto o aumento da pena em 1/2 (metade), resultando em 03 (três) anos de reclusão e 15 (quinze) dias-multa.

Quanto ao delito previsto no artigo 159, § 1º, do Código Penal (extorsão mediante sequestro contra pessoa menor de dezoito anos), observo que as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59, do Código Penal, são desfavoráveis ao réu.

Observo o alto grau de reprovabilidade na conduta do réu, dado que ele procedeu de maneira ardilosa e covarde, aproximando-se amigavelmente da vítima, convidando-a para ir à sua casa e mentindo que desejava apenas conversar. Verifico também um dolo intenso, porquanto a decisão de cometer este crime decorreu da insatisfação do agente com o proveito dos crimes anteriores.

Assim, fixo a pena-base em 15 (quinze) anos de reclusão.

Verifico a presença, contida implicitamente na denúncia, da circunstância agravante prevista no artigo 61, inciso II, "a" (motivo torpe), dado que o réu sequestrou a vítima em razão de ela ter escapado do seu jugo, com a clara finalidade de intimidar as demais vítimas, sempre com o intuito de lucro.

Desse modo, aumento a pena privativa de liberdade em 1/3 (um terço), resultando em 20 (vinte) anos de reclusão.

Nos termos do artigo 69, do Código Penal, procedo à somatória das penas aplicadas para cada delito, tornando definitiva a pena privativa de liberdade em 23 (vinte e três) anos de reclusão e 21 (vinte e um) anos e 04 (quatro) meses de detenção.

Considerando a somatória das penas privativas de liberdade, não subsiste a substituição por penas restritivas de direitos em relação ao delito de redução a condição análoga à de escravo, como determinado na r. sentença, em vista da quantidade de pena aplicada.

O regime inicial da pena privativa de liberdade será o fechado, nos moldes do artigo 33, §2º, alínea "a", do Código Penal, cujo cumprimento se dará na forma e condições estabelecidas pelo Juízo das Execuções Penais.

Com tais considerações, NEGO PROVIMENTO à apelação da defesa e DOU PROVIMENTO à apelação do Ministério Público Federal, para condenar o réu Moises Cespedes Cossio a cumprir a pena privativa de liberdade de 23 (vinte e três) anos de reclusão e 21 (vinte e um) anos e 04 (quatro) meses de detenção, em regime inicial fechado, mantida a r. sentença em seus demais termos.

Determino o envio de ofício ao Ministério da Justiça, com o escopo de verificação da conveniência e oportunidade da instauração de procedimento administrativo tendente à expulsão do réu Moises Cespedes Cossio a ser efetivada após o cumprimento da pena.

É o voto.

Henrique Herkenhoff

Desembargador Federal

EMENTA

PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. INTRODUÇÃO CLANDESTINA DE ESTRANGEIRO, REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO E EXTORSÃO MEDIANTE SEQÜESTRO. ARTIGOS 125, XII, DA LEI 6.815/80, E ARTIGOS 149 E 159, § 1º, DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVA COMPROVADAS. VERACIDADE DAS DECLARAÇÕES NO INQUÉRITO POLICIAL QUE NÃO SE AFASTA PELA RETRATAÇÃO EM JUÍZO. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. SUBMISSÃO A JORNADA EXAUSTIVA E A CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. EXTORSÃO MEDIANTE SEQÜESTRO CONTRA MENOR DE DEZOITO ANOS. DOSIMETRIA DA PENA. MOTIVO TORPE CONSISTENTE NA FINALIDADE DE LUCRO. APELAÇÃO DA DEFESA A QUE SE NEGA PROVIMENTO. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO.

1. As vítimas, em sede policial, afirmaram que foram trazidas da Bolívia ao Brasil pelo réu. A retratação de algumas em juízo decorre, naturalmente, do temor que sentiam em relação ao réu, que as mantinha cativas em sua oficina. Configurado o delito previsto no artigo 125, XII, da Lei nº 6.815/80 (introdução clandestina de estrangeiro).

2. Restou demonstrado que o réu submetia as vítimas a jornada exaustiva e a condições degradantes de trabalho, e restringia a sua liberdade de locomoção, em razão de dívidas contraídas e mediante a retenção de seus documentos pessoais. Configurado o delito previsto no artigo 149, § 1º, inciso I, do Código Penal (redução a condição análoga à de escravo).

3. Dentre as pessoas que o réu subjugava, estavam dois adolescentes. Presente a causa de aumento prevista no § 2º, inciso I, do artigo 149, do Código Penal.

4. Restou demonstrado que o réu cometeu o delito de extorsão mediante sequestro contra pessoa menor de 18 (dezoito) anos, diante das declarações da vítima e de testemunhas, e do reconhecimento fotográfico. Configurado o delito previsto no artigo 159, § 1º, do Código Penal.

5. Quanto ao delito previsto no artigo 125, XII, da Lei nº 6.815/80, fixada a pena-base em 02 (dois) anos de detenção, em razão do alto grau de reprovabilidade da conduta, e das diversas etapas para o cometimento do delito.

6. Reconhecimento da circunstância agravante do motivo torpe, dado que o réu trazia as vítimas para o país com a finalidade de lucro e com o prévio desiderato de subjugá-las em território estrangeiro. Aumento da pena privativa de liberdade para 02 (dois) anos e 08 (oito) meses de detenção.

7. Reconhecimento do concurso material de crimes. Somatória das penas que resulta em 21 (vinte e um) anos e 04 (quatro) meses de detenção.

8. Quanto ao delito previsto no artigo 149, do Código Penal, mantida a quantidade de pena nos termos da r. sentença, isto é, em 03 (três) anos de reclusão e 15 (quinze) dias-multa.

9. Quanto ao delito previsto no artigo 159, § 1º, do Código Penal, fixada a pena-base em 15 (quinze) anos de reclusão, ante o alto grau de reprovabilidade da conduta do réu e do dolo intenso.

10. Reconhecimento da circunstância agravante do motivo torpe, dado que o réu sequestrou a vítima não apenas com a finalidade de obter lucro, mas também o de intimidar os outros que subjugava. Aumento da pena privativa de liberdade para 20 (vinte) anos de reclusão.

11. Somatória das penas aplicadas para cada delito, tornando-se definitiva em 23 (vinte e três) anos de reclusão e 21 (vinte e um) anos e 04 (quatro) meses de detenção, em regime inicial fechado.

12. Insubsistência da substituição por penas restritivas de direitos com relação ao delito de redução a condição análoga à de escravo, como a r. sentença determinara, em vista da quantidade de pena aplicada.

13. Apelação da defesa a que se nega provimento, e apelação do Ministério Público Federal a que se dá provimento.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, negar provimento à apelação da defesa e dar provimento à apelação do Ministério Público Federal, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

São Paulo, 28 de julho de 2009.

Henrique Herkenhoff

Desembargador Federal

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