Golpe em Honduras

Prisão em flagrante não viola devido processo legal

Autor

  • Lionel Zaclis

    é advogado mestre e doutor em Direito pela USP e sócio de Barretto Ferreira Kujawski Brancher e Gonçalves - Sociedade de Advogados (BKBG).

1 de outubro de 2009, 11h49

Em sequência ao artigo de minha autoria, publicado neste Consultor Jurídico em 22 de setembro último, penso que seria apropriado aproveitarmos as reflexões sobre a problemática que envolve Honduras para melhor entendermos alguns de nossos próprios problemas. Por uma série de razões que não vêm a pelo nesta oportunidade, nossa ordem jurídica, ao mesmo tempo em que ganhou em consistência em algumas áreas, foi-se desestruturando noutras, mercê, fundamentalmente, de leis mal feitas e de algumas interpretações sem compromisso com os princípios gerais de direito, com a noção de justiça, e com as necessidades da sociedade.

Iniciemos, porém, com Honduras. Foi muito bem lembrado alhures que a Constituição hondurenha – como seria de se esperar em uma carta democrática – garante o direito à ampla defesa e o acesso ao Poder Judiciário (artigo 82). 

Com base nisso, foi dito que a prisão do presidente Zelaya, decretada em um domingo, apenas 48 horas após seu requerimento pelo Ministério Público, deduzido em uma sexta-feira, demonstraria o desapreço pelo princípio da ampla defesa.  Argumentou-se, ainda, que o processo que julgou os responsáveis pela Inconfidência Mineira levou 3 anos para que a sentença fosse lida e somente após a sua leitura é que os condenados ao degredo foram levados a Áfríca. 

Posta essa premissa, dever-se-ia deduzir que só atenderia ao due process of law a decisão curtida pelos anos! De que safra é essa sentença ? – de 82 ? Ah, então é das boas… Ora, não estamos mais na época das caravelas. Neste nosso mundo globalizado e digitalizado, toma-se conhecimento dos fatos praticamente de modo simultâneo à sua ocorrência. E, não raro, decisões judiciais devem ser proferidas de imediato, em vista da urgência e dos riscos envolvidos.

Do exame dos fatos, parece resultar claro que, ao ter a prisão decretada pela Suprema Corte, o presidente Zelaya se encontrava em flagrante delito, não só por configurar crime sua tentativa de convocar uma assembléia constituinte (com o óbvio e principal propósito de propiciar o continuísmo), como por haver desrespeitado abertamente, não apenas a decisão do juiz do Contencioso Administrativo, confirmada em grau de apelação, mas também a decisão do Tribunal Superior  Eleitoral (TSE). 

Com efeito, após ter declarado inconstitucional a pesquisa de opinião político-eleitoral, o TSE determinou a apreensão do material destinado à consulta, que se encontrava custodiado em um galpão dentro de uma base aérea, sob a responsabilidade de um militar, na qualidade de fiel depositário.

No entanto, o presidente da República, acompanhado de um grupo de pessoas, em desrespeito às decisões judiciais e com abuso de autoridade, invadiu o depósito, recuperando, assim, 814 caixas com material destinado à consulta popular.

Por se encontrar em flagrante delito, “teve cessado de imediato o desempenho de seu respectivo cargo”, nos termos do art. 239 da Constituição, interpretação essa sustentada pelos juristas hondurenhos, de modo que no momento em que foi preso não mais ostentava a qualidade de presidente  da República.  

Confesso desconhecer que alguém, em qualquer país, tenha sustentado a impossibilidade jurídica de prisão em flagrante, por não ter o acusado desenvolvido “ampla defesa”. A ampla defesa é um postulado fundamental do Estado de Direito, da Democracia e da própria civilização ocidental. Não pode, contudo, ser levada aos extremos do absurdo, com isso desautorizando juízes e Tribunais, convertendo em frangalhos as instituições, e submetendo-as ao ridículo, como ocorre entre nós, por exemplo, com a exigência de coisa julgada para que um condenado (até por Tribunal Superior) possa ser preso ou ter seu mandato eletivo cassado

Por outro lado, considerando-se que a coisa julgada só surge após esgotados todos os recursos, os quais, entre nós, são inesgotáveis, essa avis rara chamada “coisa julgada” converteu-se, aqui, numa espécie em extinção. Quem sabe o Ibama ainda consiga recuperar alguns exemplares e, a partir deles, assegurar a sobrevivência da espécie ? Seria uma contribuição e tanto para a defesa de um meio ambiente mais ético e moral!


Mas, como essa salvação ainda está longe de ser conseguida, a pergunta que cabe, por ora, é se o conceito de “ampla defesa” consiste no direito de interpor recursos contra tudo e contra todos, apelações, agravos, agravinhos e agravões, correições parciais, embargos de declaração, de divergência, recursos especiais, extraordinários, tudo seguido de novos embargos de declaração e de novas rodadas de recursos, em uma sequência interminável e enlouquecedora, à la Sísifo?

Para que, então, os juízes de primeiro grau, os Tribunais estaduais, o Superior Tribunal de Justiça, etc? Apenas para passeio dos autos? Todos os litigantes querem, à viva força, chegar ao Supremo Tribunal Federal, mesmo que seja para discutir quirelas. Na verdade, porém, sequer no Supremo se confia! Pena que não dê para recorrer ao Vaticano…

Como regra geral, a decisão do juiz de primeiro grau deveria ter eficácia imediata. Apenas excepcionalmente, em um ou outro caso teratológico, deveria ser atribuído efeito suspensivo ao recurso. Com isso, reduzir-se-ia substancialmente a quantidade de processos e se respeitaria mais a Justiça. Mas, costuma-se objetar: não podemos abolir os recursos porque os juízes não são confiáveis no que concerne à sua capacidade julgar, e alguns em relação a outros aspectos. E, por extensão, os desembargadores e os ministros. Mas, então, que se altere o sistema de seleção dos magistrados. 

Assim, em primeira instância, só deveriam atuar, em entrância especial, inclusive como substitutos, juízes com o mínimo de 10 anos de carreira. Ou advogados que, com  10 anos de advocacia, no mínimo, fossem aprovados em concurso para a Magistratura. Não é possível que causas de extrema relevância, de alta complexidade, de enorme valor, fiquem à mercê de juízes recém-saídos da Faculdade, inexperientes de todo. Podem até ser geniais, mas lhes falta o necessário traquejo para julgar, a autoridade para ganhar respeito, não pela carteirada, mas pela força da sabedoria e da experiência. Enfim, juízes que, tarimbados e independentes, não tenham medo de conversar com advogados. Isso, para não falar da necessária vocação para esse verdadeiro sacerdócio que é a Magistratura. 

Nos tribunais superiores, por óbvio, só os que tiverem notório saber jurídico. E notório é algo que se mostra evidente, do conhecimento de todos, que não precisa ser provado.  Deixo de me referir à reputação ilibada, pois, por óbvio, chega a ser impensável mesmo a possibilidade de existência de um juiz que não preencha tal requisito.

O juiz, ao bater o martelo, tem que ter sua decisão imediatamente respeitada. Por outro lado, ultrapassando um mínimo admissível de decisões reformadas por ano, o juiz teria que se submeter a um curso de reciclagem na matéria, com redução nos vencimentos até a aprovação no exame. Afinal de contas, o valor que está em jogo, no caso, não é, propriamente, o interesse individual do juiz , mas, fundamentalmente, o da sociedade. Seguramente, com tal requisito, os erros seriam minimizados, e, por consequência, os recursos. Se os profissionais, na iniciativa privada, sofrem penalidades em virtude de erros, por que os juízes podem errar continuamente sem que nada lhes ocorra ? 

Além disso, os magistrados não são admitidos para desenvolver experiências em laboratórios jurídicos. Sua função é decidir, a bem do correto funcionamento do sistema, cuja finalidade é solucionar os conflitos existentes na sociedade. São órgãos do Estado. Bem por isso, ainda que devam ser livres no que tange à apreciação dos fatos, não é admissível inventem o direito que entendam mais adequado. Se há uma orientação jurisprudencial dominante, devem segui-la, pois à sociedade interessa mais a segurança jurídica  do que novidades e surpresas a toda hora e a duração interminável dos processos. Há que haver um mínimo de racionalidade no sistema, pois ao que procura a Justiça o que interessa é que a Justiça seja feita a tempo e a hora. 

Dir-se-á: mas o Direito não pode ficar engessado. Há que evoluir. Sim, e para isso existe o Poder Legislativo. E, mesmo no âmbito do Poder Judiciário, se o juiz invocar a superveniência de circunstâncias que impliquem a alteração da interpretação anteriormente prevalecente,  lógico que poderá deixar de seguir a jurisprudência dominante. O que não pode é simplesmente desconsiderá-la, apenas porque dela discorda, num personalismo gerador de verdadeira entropia jurídica. 


Mas, retornemos a Honduras. Tal seria se, em flagrante delito, o presidente Zelaya pudesse recusar-se à prisão, alegando não lhe ter sido ensejada “plena defesa”. O que se pretende com isso ? – Que, antes de decretada a prisão preventiva, lhe tivesse sido dado o direito de se defender e, condenado, o de interpor recursos internos perante a própria Suprema Corte, até chegar-se próximo ao tempo consumido na época das caravelas, e, enquanto isso, ele continuasse no Poder, obviamente levando adiante os seus planos e, o País, a uma situação político-jurídica absolutamente insustentável, com gravíssimos riscos para a ordem institucional e todas as deletérias conseqüências daí resultantes ? 

Além disso, se a decretação da prisão preventiva em flagrante delito viola o due process of Law por realizar-se inaudita altera parte, pelas mesmas razões deveriam ser abolidas as tutelas de urgência sem oitiva da parte contra a qual é concedida. 

O que alguém em flagrante delito pode alegar em sua defesa ? Poderia alegar, como entre nós virou moda, que “não há provas”, como se indícios graves, precisos e concordantes, a indicar evidências incontestáveis e notórias, não fossem o meio juridicamente adequado para embasar condenações de malfeitorias ? O que se pretende quando se pedem “provas” dessas malfeitorias, já que prova testemunhal também não serve ? – Acaso confissões dos acusados, feitas perante o Tabelião, por meio de escritura pública ?

A alegação de “necessidade de prova” chega a tal ponto, entre nós, que se desqualifica por completo a palavra de um alto servidor do Estado, declarando ter estado com outro servidor do Estado e deste ouvido solicitação para agir de maneira que lhe pareceu contrária à que seria seu dever legal. Simplesmente é descartada a acusação, porque “não há prova”. 

Em qualquer país com um mínimo de cultura jurídica, esse fato seria suficiente, no mínimo, para abertura de processo criminal, tendo em vista  ser absolutamente ilógico, contrário ao princípio do quod plerumque accidit, que alguém, em sã consciência, ainda mais na qualidade de alto servidor do Estado, invente uma estória dessas, correndo o risco não só de perder o posto, mas de responder por crime de denunciação caluniosa. Aqui, não. Como não há escritura pública de confissão da prática do crime, tudo fica como dantes no quartel do Abrantes… E, mesmo que, por absurdo, tal escritura existisse, certamente se iria alegar a inexistência de prova de sua autenticidade… 

A argumentação de alguns articulistas que têm se manifestado sobre o caso de Honduras chega a ser inacreditável. Chegou-se a dizer que os que sustentam não ter havido golpe de Estado seriam articulistas apressados, mais animados pela simpatia ao golpe de direita que por qualquer avaliação mais precisa e sistemática da Constituição hondurenha. O mais surpreendente é que o mesmo articulista se refere a diversas normas constitucionais, em cuja análise embasa sua conclusão consistente na impossibilidade de deposição do presidente da República, sendo que, talvez por pressa, ou pela simpatia ao golpe pretendido por Zelaya, acabou se esquecendo — ou não chegando a tomar conhecimento da existência –, do texto constitucional que é, exatamente, aquele em que a deposição se fundamenta, consubstanciado no artigo 239 da Constituição, de modo que sua interpretação “sistemática” restou completamente assistemática! 

Isso, contudo, não impediu o articulista de ensinar aos Juízes da Suprema Corte de Honduras como deve ser interpretada a Constituição…de Honduras ! A propósito, é oportuno salientar que o jurista Edmundo Orellana Mercado, que foi ministro das Relações Exteriores e ministro da Defesa, renunciou a este último cargo, convencido da inconstitucionalidade da consulta pretendida pelo presidente Zelaya. 

Alega-se também que o presidente Zelaya pretendeu, por meio da consulta popular abortada, invocar o poder constituinte originário, que, como é sabido, não tem qualquer compromisso com as cláusulas pétreas da Constituição em vigor, e, mais do que isso, com a própria Constituição em seu todo.  Ora, é exatamente essa conduta que configura a prática do delito, pois é impossível “invocar”, no caso, o poder constituinte originário.  Recomenda-se a leitura da denúncia oferecida pelo Ministério Público, que faz o enquadramento das condutas penais. 


O poder constituinte originário só é invocável após uma ruptura de uma dada ordem, mediante golpe de estado ou revolução. É um poder que, livre de qualquer amarra, decide se converter em Direito. Logo, deve ser dotado de força suficiente para romper com a ordem estabelecida, a fim de, ex nihilo, construir uma nova ordem, que não sofra nenhum tipo de restrição jurídica decorrente da ordem anterior. Em outras palavras, é um poder infrator da ordem existente.

É evidente que as idéias de uma constituição vigente e de uma assembléia constituinte são antinômicas e reciprocamente excludentes. Mas a convocação pretendida por Zelaya, além de inconstitucional, se revelou ilegítima, na medida em que a vontade política transformadora não conseguiu se impor pela força, pelo poder. Em outras palavras, não se consubstanciou em poder suficiente para romper a ordem constitucional vigente, que se auto-defendeu pelos meios nela previstos.

Como em Honduras não se manifestou um movimento popular irresistível, voltado à ruptura da ordem antiga e à construção de uma nova, a pretensão de Zelaya consistiu, claramente, em fazer com que isso ocorresse artificialmente, mediante manipulação do eleitorado, por meio de propaganda, de modo a construir uma vontade popular artificial, que substituísse a ausência de mobilização do povo, com força irresistível para promover a ruptura constitucional.

Por ser inadmissível a convocação de uma assembléia constituinte em situação de normalidade constitucional, se Zelaya desejava convocar o poder constituinte originário, é evidente que sua conduta se voltava a um golpe de Estado. Portanto, mais claro ainda o enquadramento de sua conduta na previsão do artigo 239 da Constituição. 

Veja-se que, na realidade, ele já havia dado um golpe anteriormente, uma vez que, eleito pelo Partido Liberal, deu, em meio ao mandato, um “giro à esquerda”, praticando um ato de infidelidade em relação a seu eleitorado. Ainda que isso não constitua fundamento jurídico para a destituição, pois, uma vez eleito, o presidente não deve seguir instruções de quem o elegeu, cabendo-lhe, ao contrário, nortear-se pelo interesse público, o certo é que a infidelidade partidária não pode, em princípio, contar com o aplauso da cidadania. 

Infidelidades e traições deveriam ficar circunscritas às novelas. São comportamentos que não se afeiçoam a pessoas e instituições que se pretendem respeitáveis. Se alguém, eleito com base numa determinada plataforma política, entende não mais dispor de condições para exercer o mandato conforme as diretrizes dela constantes, o que lhe cabe fazer é colocar o chapéu na cabeça e voltar para casa, nunca sem antes dar as necessárias explicações aos que o elegeram.

Finalmente, consta que as instituições representativas de Honduras aprovaram o processo de deposição havido: o Poder Judiciário, incluindo o Tribunal Superior Eleitoral, o Ministério Público, incluindo a Procuradoria Geral da República, a Ordem dos Advogados, o Comissariado Nacional dos Direitos Humanos, a Associação Nacional das Indústrias, os Partidos Políticos, as entidades religiosas, assim como a sociedade civil majoritária. A propósito, o Congresso Nacional, constituído por deputados não menos eleitos pelo povo do que o presidente  da República, referendou a decisão da Corte Suprema por 123 votos contra 5, e empossou o presidente da Casa Legislativa como o novo presidente constitucional de Honduras, ante a vacância do cargo de vice-presidente, tendo em vista que seu ocupante havia renunciado meses antes, a fim de candidatar-se às eleições presidenciais de novembro.

Ora, há que se concordar que todo esse apoio dificilmente ocorreria se o que tivesse havido fosse um golpe militar.

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  • Brave

    é doutor e mestre em Direito pela USP e sócio de Barretto Ferreira Kujawski, Brancher e Gonçalves (BKBG) - Sociedade de Advogados, responsável pelo Departamento de Recuperação de Empresas, Insolvência e Direitos dos Credores.

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