Estabilidade constitucional

“Temos que nos aferrar ao processo institucional”

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29 de novembro de 2009, 8h55

Spacca
Pedro Estevam Serrano - Spacca

A Constituição Federal com a abrangência que tem é motivo de inúmeros contratempos para o Judiciário brasileiro. Os problemas vão do grande número de processos a serem julgados pelo Supremo Tribunal Federal, à iminente probabilidade de tranformar o STF em um super poder, dentro do Estado. As inúmeras regras que passaram, desnecessariamente, a compor a Constituição Federal refletem a urgência de um debate aprofundado sobre o “enxugamento” da Carta.

Pedro Estevam Serrano, advogado especialista em Direito Administrativo e Constitucional, é um defensor da reformulação do texto constitucional. Não ao ponto radical de reescrevê-la, jogando fora seu precedente histórico. Isso estaria fora de cogitação. Mas, para ele, o mais sensato seria aprofundar o debate sobre uma possível revisão periódica das normas.

Em entrevista à Consultor Jurídico, o advogado expôs ainda sua opinião sobre a tendência de o Estado tentar ditar o livre arbítrio do cidadão, expondo desta forma seu lado mais autoritário e ditatorial. “Sou um defensor da liberdade. A Constituição já oferece o balizamento para isso (…) fico preocupado com o nível de intervenção que o Estado tem na gestão corporal das pessoas. Se com minha conduta não interfiro na vida de terceiros, tenho o direito de fazer o que quiser”, diz o advogado.

Serrano abordou também a questão da difícil relação do judiciário brasileiro com imprensa. Para ele, é preciso que se tenha “um mecanismo de equilíbrio entre os três interesses: o direito de informar, o direito a ser informado com qualidade e o direito a preservação da obra, das pessoas e da imagem. Eles entram em conflito, a gente tem que equilibrar. Então, teria que ter uma legislação que partisse desses três pressupostos, que buscasse mecanismos de equilíbrio”.

Pedro Estevam Serrano tem 46 anos e é sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano & Renault Advogados Associados. Mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, é professor de Direito Constitucional, Fundamentos de Direito Público e Prática Forense de Direito Público. Foi procurador do estado de São Paulo e consultor especial da Câmara Municipal de São Paulo. Escreveu os livros Região Metropolitana e seu regime constitucional, O Desvio de Poder na Função Legislativa e Dez anos de Constituição, em co-autoria.

Leia a entrevista:

ConJur — A Constituição Federal deveria ser mais enxuta?
Pedro Estevam Serrano — Existe uma crítica corrente dos constitucionalistas sobre isso. O ministro da Defesa Nelson Jobim tem uma frase interessante: “a Constituição tem que sofrer uma lipoaspiração”. Existe certa lógica em não mudar muito e como ela é extensa demais esta sujeita a várias mudanças e isso é ruim. Eu tenho uma visão mais objetiva do sistema. Para mim, o sistema jurídico é como um todo. E a Constituição é a parte mais relevante dele. O sistema jurídico funciona como um todo indecomponível no ponto de vista científico. Essas divisões, Direito Civil, Direito Penal, na realidade, são divisões mais didáticas do que cientificas, porque funciona como um todo e as normas se imbricam. É difícil pegar um caso em que a Constituição atue isolada. Ela vai incidir dentro de um sistema constitucional, infraconstitucional, caso concreto. Na realidade as normas que estão na Constituição são materialmente constitucionais e formalmente constitucionais.

ConJur — O senhor está falando do Artigo 5º?
Serrano — Artigo quinto, mas não só. Por exemplo, o Artigo 1º, que estabelece a estrutura de estado, a forma de governo, o regime político, o Brasil como uma república federativa, um regime democrático. É natural existir todas essas normas dentro de uma Constituição. São normas que a gente chama de materialmente constitucionais, pois são da sua natureza. Mas o Brasil optou por ter muitos mais normas que isso. Normas que são chamadas de formalmente constitucionais, que não necessariamente precisariam estar na Carta. Poderiam estar em leis ordinárias.

ConJur — Como está a discussão para o “enxugamento” da Constituição?
Serrano — Já se discute o assunto, com a intenção de reduzir as normas. Não é reduzir o ‘núcleo duro’ da Constituição, mas diminuir a presença das normas formalmente constitucionais. A questão é vista como se fosse um grande erro do constituinte. Mas não é verdade. Nós temos um sistema jurídico. Essas normas, mesmo que desconstitucionalizadas, vão existir no sistema. Temos que pensar como sociedade. Quais dessas normas não são do núcleo duro da Constituição? Quais interessam ser mais ou menos estáveis? Essa é a discussão. A Constituição tem muita gordura. E será um grande debate dos setores sociais do que deve permanecer como mais estável e o que deve estar submetido a um processo mais instável de mudança que é o processo de leis ordinárias. É basicamente isso.

ConJur — Projeto de Emenda Constitucional do deputado Régis de Oliveira versa exatamente sobre esse tema. O autor acha difícil ser aprovada por impactar diretamente sobre diversas classes sociais, interesses coletivos. Qual sua opinião?
Serrano — Eu tenho uma questão técnica. Será que essa não é a nossa natureza? Será que o Brasil não está dando uma lição para o mundo de como a gente pode compor uma Constituição que seja efetivamente retrato das nossas tradições? Eu vejo mais coisa boa na nossa Constituição do que ruim.

ConJur — Poderia ficar como está?
Pedro Estevam Serrano — Essa é a melhor Constituição de nossa história. Indiscutivelmente. Ela traz lições para o mundo em alguns momentos. Agora, tem coisas que eu gostaria de mudar.

ConJur — O quê mudaria?
Serrano — O artigo 142, que trata do papel das Forças Armadas. Traz ali um resíduo de um momento histórico, um momento de saída da ditadura e ingresso no regime democrático em que foi dado às Forças Armadas o papel de interpretar a Constituição. Isso não é o papel dela. As Forças Armadas são subordinadas ao Estado. Quem tem que interpretar Constituição são os órgãos superiores do Estado: a cúpula do Judiciário, a cúpula do Executivo, a cúpula do Legislativo. Esse papel de salvaguarda da Constituição conferido às Forças Armadas foi usado, por exemplo, em Honduras para acontecer o golpe de Estado; O Chile já retirou isso da sua Constituição com receio desse tipo de evento.

ConJur — Quais outras mudanças deveriam ser discutidas?
Serrano — Criarmos regras específicas. Você tem uma lei que diz que o Colégio Pedro II continuará sobre regência da União. Isso não precisa estar na Constituição [Artigo 242, parágrafo 2º]. São exageros flagrantes, produtos de particularismos. Tudo o que for particularismo tem que ir para lei ordinária.

ConJur — Interesses que não fossem da nação como um todo sairiam?
Serrano — Isso. Aquilo que o sindicato defende é só uma reivindicação da categoria, que não tem repercussão mais ampla na sociedade. A OAB, por exemplo, defende questões que só interessam aos advogados. A estabilidade do juiz é algo que interessa ao juiz, mas também interessa para a cidadania como um todo para você ter independência do Judiciário. As regras que digam respeito à sociedade como um todo, a um único interesse social, devem permanecer, mesmo sendo normas formalmente constitucionais.

ConJur — Isso seria uma forma de dar segurança?
Serrano — A sociedade precisa de mais estabilidade na Constituição. Precisa de um quorum mais qualificado para operá-la porque ela representa o interesse da sociedade como um todo. Agora, voltando ao exemplo do Colégio Pedro II, isso é absolutamente particularista, não tem sentido. É essa peneira que deve ser feita. sem querer copiar o modelo americano pura e simplesmente, de termos uma Constituição com dez princípios. Isso não é a nossa tradição cultural do Direito.

ConJur — O modelo americano funcionaria no Brasil?
Serrano — Eu creio que não, porque não é da nossa tradição cultural. As nossas Constituições anteriores eram analíticas. Como todo país, temos certa tradição no que tange ao Direito Constitucional. Temos que analisar os fenômenos jurídicos de cada país de acordo com a sua cultura jurídica. Nossa cultura jurídica está em formação, mas a tradição cultural brasileira precisa ser resgatada e mantida. Se quisermos mudar tudo não vai dar e teremos problemas no sistema.

ConJur — Tendo como referência a nossa cultura, se reduzirmos as normas hoje, no futuro não há o risco de inflarmos novamente?
Serrano — Provavelmente sim. Portugal tem uma saída interessante. Ela submete a Constituição a uma revisão obrigatória a cada cinco anos. O perfil da Carta portuguesa é muito semelhante ao nosso. Temos coisas na nossa Constituição que foram tiradas da portuguesa. Acho inevitável ter uma revisão periódica em um modelo de Constituição como o nosso. Nos Estados Unidos ocorre também, só que é feita no que a gente chama de programa normativo, no texto escrito da norma. Ela é feita na interpretação que se tem a respeito dela. A mesma Constituição que permitia até a década de 50 existirem colégios segregados por etnia, hoje baniu essa possibilidade. Uma inversão total.

ConJur — E como seria a revisão aqui?
Serrano — Temos uma tradição de dar mais legitimidade à participação da sociedade. O Judiciário brasileiro é mais encabrestado na lei. Nossa tradição é germano-românica, de que o nosso direito é dado pela lei e não pela decisão jurisdicional. O juiz não age com base na sua autoridade, mas com base na autoridade da lei. O ônus é ter de revisar a Constituição periodicamente. Não é uma revisão no sentido de jogar no lixo o que fizemos em 1988. Não, tem que ser entendido historicamente. Estamos numa democracia mais amadurecida, institucionalmente mais estável. É preciso outras regras estáveis e não essas que estão lá. O que não quer dizer que no futuro não estejamos em outro momento de instabilidade institucional que nos levaria a um ganho de gordura da Constituição.

ConJur — Não há necessidade de convocar uma nova constituinte e reescrever tudo?
Serrano — Sou totalmente contra. Assembleia Constituinte é convocada quando precisa mudar clausulas pétreas. Nós não temos que mexer nelas. Então não vejo motivo para uma reforma política por essa via. A Reforma Política deve ser feita por Emenda Constitucional.

ConJur — É possível fazer revisão periódica da Constituição no Brasil?
Serrano — Portugal faz isso. Nós temos que ficar do jeito que a gente tem mesmo. Quando há uma necessidade específica, apresenta-se uma Emenda Constitucional e o Congresso discute. Para a reforma política, uma questão que hoje está em pauta, vamos precisar de uma emenda mais ampla. Isso é candente. E tem a necessidade de enxugar os exageros na Constituição. São duas grandes reformas. Mas é o tamanho delas que as diferencia das reformas pequenas. E não sua natureza.

ConJur — Qual é o risco de se convocar uma Constituinte pra uma ampla reforma constitucional?
Serrano — Quando dizem que temos que mudar a Constituição, digo que temos que pensar que temos 20 anos de democracia, mas não estamos com essa bola toda. Temos que nos aferrar aos nossos processos institucionais. É um momento importante de ter esse lado um pouco conservador em termos institucionais em contraposição ao golpe em Honduras e ao surgimento desse regime autoritário pautado em plebiscitos. Essas duas situações, o golpe de direita e o mecanismo autoritário de esquerda, trazem uma mensagem para a gente: temos de nos esforçar para manter a democracia como processo. Tem que manter o padrão de institucionalidade democrática. Não podemos tentar alterar muito isso. Eu prefiro ter uma Constituição boa a não ter Constituição.

ConJur — A amplitude da Constituição não transforma o Supremo Tribunal Federal em um super poder?
Serrano — Sim. É uma questão complexa e um fenômeno que não acontece só no Brasil. O modelo de Estado Democrático de Direito imaginado nas Revoluções Francesa e Americana tinha como ideia básica que ao Judiciário caberia resolver o caso concreto, o presente e o passado. E ao legislador caberia a linguagem abstrata, voltada para o futuro. O surgimento da força das constituições no século 20 deu ao Judiciário um papel em que ele acaba voltado para o futuro. Ele produz decisões que não são vocacionadas a um caso concreto. São vocacionadas a um universo de situações. Portanto, ele também produz normas abstratas e não só normas jurídicas concretas.

ConJur — O juiz passou a cumprir a função de legislador?
Serrano — O receio justificado muitas vezes ocorre disso, do juiz substituir o legislador. Quando você fala de um juiz, você imagina um cientista. Isso empresta a ele uma legitimidade. Só que não deve emprestar uma legitimidade para inovar primariamente a ordem jurídica. Só o legislador pode criar ordinariamente direitos e obrigações. No Brasil temos uma possibilidade de solução mais fácil, mais cristalina dessa tensão. O juiz, mesmo quando aplica a Constituição, o ato dele tem que ser interpretativo. Ele não pode extravasar os territórios da interpretação. Hoje em dia existem técnicas contemporâneas usadas para criar mecanismos de controle do discurso judicial pela sociedade, para verificar se o juiz não está extravasando seu papel. A mídia, os jornalistas têm esse papel de controle, por exemplo. São importantíssimos instrumentos para auxiliar a comunidade jurídica, que tem mais condição técnica de fazer isso, e a sociedade como um todo, de controlar as decisões jurisdicionais. Se no exercício desse papel o Judiciário extravasar, cabe aos meios de comunicação especializados, por consequência à comunidade jurídica, apontar para a sociedade esse erro.

ConJur — Aqui no Brasil podemos dizer que há extravasamento no STF?
Serrano — Creio que não. Acho que está havendo uma adaptação. Sou admirador da atual composição do Supremo, com todos os defeitos e problemas que tem. Nunca tivemos um Judiciário tão aberto, nunca tivemos um judiciário tão crivado por críticas, tão controlado quanto esse. Por outro lado, é o único Judiciário, é a única composição do Supremo, que nitidamente cumpre o seu papel, que é interpretar a Constituição. De vez em quando há abusos. De vez em quando o sujeito sai um pouco da linha. Isso é da natureza humana. Mas é uma evolução. É muito melhor exercer o seu papel e de vez em quando cometer um erro, do que fazer como no passado, em que a Constituição valia menos que uma portaria do Banco Central. Eu vivi essa época. Hoje está muito melhor. A percepção [sobre o judiciário] aumentou. Mas, na realidade, não é ativismo judiciário, ativismo político. Eles estão atuando como Corte Constitucional. Como faz a Corte da Alemanha, da Itália, da França, dos Estados Unidos. Como faz qualquer Corte no mundo. Muitas vezes erram. São seres humanos. E aí é papel da mídia fazer a crítica. O que não pode fazer é estar inativo como estava.

ConJur — No caso da greve do serviço público, o Supremo não extrapola quando diz que se não temos uma lei, então, usamos outra?
Serrano — Ele extrapola nessa questão especificamente. Porque acaba exercendo um papel de inovação da ordem jurídica. Isso ele não deve fazer, pois a Constituição veda. Mas é um papel difícil. Tinha que dar uma solução ao caso. E ele acabou fazendo valer o princípio superior que temos no ordenamento jurídico: o princípio da segurança jurídica. Mais relevante do que a legalidade é você ter segurança jurídica na sociedade. Ter regras claras, limites, etc. Muitas vezes esse princípio da segurança jurídica obriga o Supremo a avançar sobre o seu papel natural. De forma legítima, estou falando. Ainda está no papel de interpretação. Preocupa-me mais os ministros que dão opinião política ou que vão dar opinião sobre outras coisas no ambiente da política usando do papel de ministros, fora do julgamento. Magistrado tem que ter uma imagem de imparcialidade perante a sociedade, mesmo sabendo que a imparcialidade é inatingível. Quando ele começa a emitir opinião, a fixar a sua imagem como alinhado com uma dada postura ideológica, ele se distancia da imparcialidade. É uma postura ética que o magistrado deve ter de silenciar.

ConJur — Mas isso é possível para ministros que chegam ao cargo por indicação política?
Serrano — Não pré-julgar é uma exigência da profissão dele. É uma lógica fundamental de direito humano, de direitos fundamentais. O juiz tem que deixar as partes se manifestarem no processo e levar em consideração a opinião das partes que litigam. Então ele não pode, a priori, definir uma linhagem ideológica de pensamento que vá pender para um lado. O sujeito que aceita ser juiz aceita o ônus da quietude e do silêncio. O juiz fala pela decisão judicial. A exposição pública das sessões, a transmissão pela TV possibilita o controle da sociedade sobre os limites da ação do Judiciário. Mas acabou a sessão e se os ministros manifestam o que acham da Reforma Política, por exemplo, é um extravasamento indevido. Juiz não da entrevista. Em situações muito específicas em que ele representa o Judiciário na visão administrativa que tem justificar para a comunidade, tudo bem. Mas são situações muito específicas.

ConJur — Ou para explicar a sua decisão, de repente?
Serrano — Ele se explica pela decisão. Há uma formalidade no Judiciário que precisa ser respeitada. Se da decisão cabe recurso ou embargos, a explicação está dada na sentença. Ele não pode adiantar a interpretação que vai ter dos seus próprios termos. É o devido processo legal. É o direito que as pessoas tem de se defender, o direito a que a prova seja produzida com participação de ambas as partes.

ConJur — Mas se o juiz não dá entrevista, não aparece na imprensa, cria um distanciamento com a sociedade. Não é ruim para o país?
Serrano — O Judiciário tem uma exigência de ser um poder mais formal, porque lida com o direito das pessoas. A gente tem que entender isso. Auando faz isso, ele salvaguarda o direito de todo mundo. Nenhum ministro está lá por conta de suas opiniões pessoais. Pouco interessa para a sociedade o ponto de vista político de cada um. Interessa para a sociedade a correção das decisões que eles vão soltar. Opinião políticajuiz tem que guardar para si. Em qualquer lugar do mundo é assim.

ConJur — Nos Estados Unidos você vê opiniões políticas nas sabatinas dos juízes…
Serrano — Na sabatina, na sessão do julgamento. Aí tudo bem, porque tem mesmo uma área subjetiva nas decisões judiciais. Você pode expor seu ponto de vista. Mas é o lugar próprio.

ConJur — Qual é a sua opinião sobre a forma de escolha dos ministros?
Pedro Estevam Serrano — Sou a favor do mandato e a favor que o legislativo exerça com mais rigor esse controle técnico.

ConJur — O senhor fala da sabatina?
Serrano — É. Presidente da República é eleito, ministros do Supremo, não. Temos que ter cuidado para não criar déficits democráticos nisso. A escolha do presidente da República, queira ou não, é uma escolha super delineada por uma eleição. Os ministros foram escolhidos pelo presidente da República. Então não tem muita base democrática essa escolha.Deveria se manter a escolha do presidente, mas com mandato certo e com maior rigor do Legislativo na apuração das opiniões. Aí seria o momento de ver a opinião: se ele é liberal, se ele é conservador, e fazer uma escolha pautada em critérios, qualidade técnica. Ninguém precisa ter mestrado ou doutorado para ser juiz. Você precisa ter para ser cientista do direito, para produzir doutrina. Juiz é outra atividade. Juiz lida com outro tipo de linguagem. Quem tem qualidade de fazer um doutorado não necessariamente vai ser um bom juiz e vice-versa. São funções diferentes. É mais importante você verificar se o juiz tem conhecimento técnico do sistema jurídico. Isso é fácil aferir pela experiência profissional dele.

ConJur — Por que o mandato?
Serrano — Para renovar o Supremo.

ConJur — Mas isso não traria insegurança? Seria bom pela evolução, mas tem a parte ruim, de nunca se saber de que maneira determinada questão será resolvida.
Serrano — Poderia ser um mandato de longo tempo. Mas é ruim ficar com um sujeito vinte, trinta anos na Corte. Precisa haver renovação. A gente precisa atingir um melhor equilíbrio entre renovação e conservação. Um mandato longo, de dez anos e que não estivesse vinculado ao mandato do presidente da República. Dez anos para ele poder produzir a sua jurisprudência.

ConJur — Até onde o Estado pode decidir pelo cidadão? A partir de qual momento eu sou livre para tomar as minhas decisões?
Serrano — Sou um defensor da liberdade. A Constituição já oferece o balizamento para isso. Por exemplo, fico preocupado com nível de intervenção que o Estado tem na gestão corporal das pessoas. Isso é inadequado ao direito de liberdade que a Constituição estipula. O Estado querer controlar o que eu consumo, que criminaliza o consumo de entorpecentes, eu acho preocupante. Vejo assim: a direita quer reprimir, porque o usuário alimenta o tráfico; a esquerda não quer repressão, com o argumento que se gasta muito dinheiro com essa máquina de repressão. Tenho uma preocupação diferente, que é o direito de liberdade das pessoas. Se com minha conduta não interfiro na vida de terceiros, não prejudico o estado de terceiros, tenho o direito de fazer o quiser.

ConJur — Qual sua opinião sobre a Lei antifumo?
Serrano — Aí existe um conflito entre dois direitos: de liberdade e de preservação da saúde das pessoas. Um tem que preponderar, obviamente o da saúde. Mas preponderar não significa a eliminação do outro. Porque a liberdade também é um valor que a Constituição quer garantir. Eu acho esse conteúdo normativo absoluto de não poder fumar em ambiente coletivo em situação nenhuma exagerado, em ralação à garantia da liberdade. Esse direito tem que ser preservado. Há uma tendência no mundo de hoje a se interferir demasiadamente na forma como as pessoas gerem seu corpo. Temos que buscar mensagens na Constituição. Nós já vivemos em uma sociedade cheia de regras. Por exemplo, eu defendo a liberdade do aborto e tive quatro filhos. Mas por que acho isso? Pois não temos que defender causas que nos interessem apenas. Uma sociedade complexa, para ser uma sociedade mais sábia e bem organizada, precisa de tolerância. E tolerância pressupõe tolerarmos a liberdade alheia.

ConJur — Descriminalizar o aborto não significa obrigar a fazer o aborto e nem defendê-lo. É defender o direito de outra pessoa.
Serrano — A visão é outra. Você vai pegar aquela menina de dezesseis anos de idade, de treze às vezes, que abortou e vai por na cadeia? A menina já está passando por um processo super traumático. Você vai por em uma cadeia? As pessoas têm consciência que não devem fazer aborto, não tenha dúvida. Isso é uma discussão. Outra é usar da violência legítima que o Estado tem para resolver a questão na base da violência. São questões muito mais pedagógicas. Muito mais um trato pedagógico do que um trato repressivo. Apesar de ser ilegal alguém tem alguma dificuldade em comprar maconha ou cocaína? Nenhuma.

ConJur — Não cabe ao Estado fornecer informações tanto sobre drogas com sobre aborto?
 
Serrano — A democracia não funciona sem educação. Para saber se um país tem uma democracia efetivamente forte, pergunte a qualquer pessoa se ela sabe o que é uma votação. O problema do estado contemporâneo é que ele procura substituir o seu papel que deveria ser pedagógico por um papel repressivo. Ele cria lei para punir e não para educar. Ele trata o ser humano como se fosse algo primário. Por isso é que a nossa democracia contemporânea tem tido dificuldades em evoluir. A qualidade da democracia depende da qualidade de intervenção que o cidadão tem. Com o nível de educação que a gente tem, é óbvio que vamos continuar com todos os problemas que temos.

ConJur — Como o senhor vê o uso pelo Supremo de instrumentos como a repercussão geral e a súmula vinculante?
Serrano — Tem que ter muita cautela. Porque tem esse limite que eu falo da inovação da ordem jurídica. O Supremo não pode inovar a ordem jurídica. Quando você fala nesse tipo de decisão, você fala em começar a lidar com uma linguagem abstrata, uma linguagem que não é direcionada ao caso concreto. É uma linguagem vocacionada a uma conduta abstratamente considerada, com um destinatário indeterminado. Então esse tipo de decisão corre muito o risco de extravasar o papel da jurisdição. São as decisões que mais têm que ser controladas pela sociedade.

ConJur — Por serem decisões que vão orientar todas as outras?
Serrano — Sim. Porque elas estão muito próximas do papel da lei. A lei, em tese, deveria lidar com o futuro. A jurisdição, com o presente e com o passado. A a jurisdição lida com caso concreto, a lei com caso abstrato. A jurisdição tem destinatário certo. A lei tem destinatário indeterminado. Com a evolução do direito constitucional, criaram-se – e é correto que se criem – as súmulas, que facilitam o funcionamento do Judiciário pela economicidade.  Mas tem que se tomar cuidado para não ganhar em economicidade e perder em legitimidade democrática. Maior segurança jurídica não pode ser justificativa para se criar um império do Judiciário. Estamos no sistema republicano, no sistema democrático. Nós não podemos sobre o argumento de dar mais agilidade ou dar mais segurança jurídica, acabar dando ao Judiciário um papel de inovação da ordem jurídica que ira transformá-lo em imperador. Ele passaria a criar leis e executá-la, e isso é indesejável em um Estado Democrático de Direito. A mídia jurídica surgiu no Brasil como um papel auxiliar da Polícia ou do Ministério Público, um papel investigativo. Mas ela teria que evoluir para ser um instrumento de crítica à jurisdição para que o Judiciário não extravase o seu papel.

ConJur — Podemos dizer que a mídia no Brasil tem cumprido seu papel?
Serrano — Não, porque eu acho que ela está iniciando. Em Brasília tem um curso de especialização no judiciário há alguns anos. Surgiu como um apêndice do jornalismo investigativo. Mas tem que se agregar outro papel, que é o papel da crítica à Jurisdição. A gente tem a crítica política feita ao Legislativo e ao Executivo. Tem que passar a ter a crítica ao Judiciário. Vejo que os jornalistas têm que se qualificar, até para fazer essa crítica da melhor forma. A melhora da mídia jurídica vai se dar pela melhora dos jornalistas que trabalham nessa mídia. Precisamos de especialistas nas questões de natureza jurídica. O próximo passo, eu diria, de uma mídia jurídica de qualidade é exatamente passar a exercer o papel de crítica da jurisdição sob pena do Judiciário acabar virando imperador.

ConJur — O Supremo considerou inconstitucional a exigência de diploma para jornalista. A agora tramita uma PEC para colocar na Constituição a exigência do diploma de jornalista. Essa PEC já nasceu inconstitucional?
Serrano — A Constituição como manifestação do desejo social elege alguns valores para fazer valer. Muitas vezes esses valores entram em conflito. Então, o que ocorre com a liberdade de imprensa: primeiro, nenhum direito é ilimitado. A noção de direito já é antecipadamente limitada. Você tem aí a tensão de três valores na questão da liberdade de imprensa, o direito dos donos de meios de comunicação, dos jornalistas em informar, que entra em tensão às vezes com o direito da comunidade em ter uma informação de qualidade, e o direito à honra e imagem das pessoas. Esses três valores entram em conflito. A informação é um bem público, não é propriedade do jornal, não é propriedade de ninguém. Ela tem que circular. Mas quem recebe essa informação tem direito que se criem certos procedimentos de qualificação dessa informação. E para mim, um dos procedimentos de qualificação é que o produtor dessa informação seja alguém que tenha o mínimo de qualidade para poder produzir informação.

ConJur — Como se aplica esse entendimento com o advento de novas mídias. Por exemplo, ele alcança quem escreve um blog na internet?
Serrano — O blog tem que ser visto pelas pessoas como algo mais opinativo. Segundo, o poder da mídia, agora, é o poder da organização. É da seleção e da organização. Você entra no Google, você vê o que ele seleciona para você ver. A mídia vai deixar de ter o papel de produtor da informação de certa forma para passar a ser organizador dessa informação. Essa organização da informação, que a internet é que introduziu, tem que ser, sim, por critérios profissionais. Que a sociedade, pelo menos, tenha o direito de saber se o cara que está produzindo a informação é um profissional ou não. Não estou dizendo para ter censura por conta disso. Mas eu estou dizendo assim: a sociedade deveria saber se o cara que está fazendo aquilo é um jornalista ou não, se ele tem um mínimo de qualidade ou não. E acho que nos meios de produção de informação que forem mais passiveis de controle deve haver exigência, sim, de diploma de jornalista. O que não se confunde com jornalismo de opinião. Nesse caso, sim, é um abuso a exigência do diploma.

ConJur — O mercado não se encarrega de fazer a seleção dos mais habilitados para cada função?
Serrano — Não, eu não acredito no mercado como agente de seleção dos interesses sociais. Não acredito na lógica de que desenvolvimento econômico seja um bem em si mesmo. O Estado tem que exercer controle sobre algumas coisas. Então cabe uma lei que regule o exercício do jornalismo criando  mecanismos de aferição de qualidade do profissional que organiza a informação. Não precisa ser necessariamente o diploma.

ConJur — Seria possível a criação de um conselho que regulasse a profissão?
Serrano — Creio que sim. Controle eleito pelos próprios jornalistas. Você tem um mecanismo de controle da profissão. Porque nada melhor do que um jornalista para conhecer o que tem qualidade ou não na sua profissão. Talvez o diploma seja uma exigência radical, porque na realidade o jornalismo em si não é ciência. Ele é um conjunto de técnica que não necessariamente você precisa passar por aquilo para conhecer. Por outro lado, não dá também para qualquer um escrever o que quiser. Aliás, a liberdade de expressão é mais aplicada para o jornalismo de opinião do que o da produção de notícia. É preciso separar o que é a produção da notícia do que é a produção da opinião.

ConJur — O senhor acha que é necessário ter uma lei de imprensa ou o Código Civil serviria?
Serrano — Existe a necessidade de ter uma lei especial, mas tem que ser bem entendido: uma lei democrática de comunicação social que garanta alguns direitos e deveres. Que coloque claramente que o Estado, mesmo através do Judiciário, não pode impedir a circulação de informações. Não pode censurar, a não ser em situações muito específicas. Por outro lado, acho que se deve criar procedimentos nas relações. A notícia é um bem público. Nós temos que usar técnicas de Direito Público para regular o processo de produção da notícia. O jornalista que apresenta para a redação do seu jornal uma notícia produzida tem direito a saber por escrito o porquê de ter sido recusado a ser publicado. Porque a notícia não é nem dele nem do dono do jornal. Na hipótese da recusa, ele tem direito a pedir que se mantenha isso em um banco público para todo mundo acessar. A gente precisa aplicar isso, porque a força que a mídia tem perante uma pessoa é descomunal. Depois de você destruir a vida de uma pessoa, não tem mais volta e o caso da Escola Base é o melhor exemplo disso. Nunca mais recuperaram sua dignidade. Tudo isso precisa ser levado em conta também.

ConJur — Você disse que a informação é pública. O jornalista pode publicar algo que esteja sob segredo de justiça?
Serrano — O sigilo é fundamental para a investigação. O Estado tem poderes para investigar. O Estado é o centro da vida social. Num regime democrático, a função da mídia é divulgar. Caiu informação na mão do jornalista, o papel dele é divulgar. O jornalista não tem que ser um instrumento de investigação do Estado. É um dever do aparelho estatal manter o sigilo da informação. Se ele vaza a informação, aquele agente responsável pelo vazamento é que deve ser punido, severamente.

ConJur — E não o jornalista?
Serrano — Não, divulgar é o papel do jornalista. Ele controla o poder estatal pela divulgação das informações. Ele tem um papel importantíssimo na democracia. Ele controla, ele segura o abuso do poder estatal com a divulgação das informações. Como o advogado tem semelhante papel, mas contornando o abuso do poder do Estado pelo exercício do Direito de Defesa. Então, é da mesma natureza você exigir que um jornalista não divulgue do que exigir que um advogado entregue a informação do seu cliente, ou que um padre entregue o que ouviu no confessionário. Isso é um absurdo.

ConJur — Quando se nega o acesso à informação, na verdade não é para o jornal que está sendo negado é à sociedade.
Serrano — Como eu falei, a notícia é um bem público, então não é só um direito da imprensa informar, é um dever. Apesar de o jornal ser empresa da iniciativa privada ele exerce uma função de interesse público.

ConJur — Em relação à informação que é publicada na internet. Ainda é um desafio para imprensa?
Serrano — As pessoas têm algumas ilusões em relação à internet. Uma é de achar que as limitações que temos no mundo real não se aplicam ao mundo virtual. Não é verdade. A atividade de internet como atividade de produção de formação de opinião está sujeita às leis do país, está sujeita aos limites dos direitos inerentes à liberdade de expressão. Então, juridicamente não difere tanto. A dificuldade que a gente tem é material. Às vezes tem um caráter global que dificulta a captura pelo Estado local. A gente tem que pensar muito no território na nossa área de direito. Houve a globalização do mundo financeiro, mas a política e o direito não se globalizaram, essa é que é a realidade.

ConJur — Podemos aplicar uma determinada lei para quem comete um crime pela internet e está no Brasil. Mas como seria isso no âmbito global? Deveríamos fazer um acordo para o mundo todo com regras aceitas em vários locais do planeta?
Serrano — Claro. Temos que pensar numa ideia de cidadania global. E essa ideia de cidadania global passa por controlar os mecanismos de informação de forma a favorecer a cidadania, não de forma a favorecer os Estados, o grande capital. Essa é uma tarefa da nova geração para o século 21. Pensar a globalização dos direitos fundamentais e não só o capital financeiro.

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