20 de novembro

Feriado da consciência negra não é comemoração

Autor

  • César Augusto Baldi

    é mestre em Direito pela ULBRA-RS doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

27 de novembro de 2009, 11h47

Em trabalho publicado, no Brasil, no ano passado, Peter Häberle salientava que “o direito ao feriado pode ser expressão da esperada ou realizada integração de um grupo étnico dentro do povo em geral” e citava como exemplo “mais representativo e também mais recente” o feriado criado em 1986, nos Estados Unidos, “em memória ao defensor dos direitos civis, Martin Luther King”. Para ele, apesar de não ter sido criado por “reforma constitucional formal”, trata-se de “direito constitucional material”, pois é “a conclusão simbólica de uma longa luta do movimento americano dos direitos civis pela equiparação e integração das pessoas ‘de cor’”[1]. Propõe, portanto, uma teoria constitucional que trabalhe no “sentido da ciência da cultura”, revelando a “força integradora e simbólica do direito ao feriado”. Segundo o autor, os feriados criam “embasamento cultural”, conferem “às sociedades abertas conteúdos ‘fundamentadores’, desejam o consenso em meio a todo o dissenso existente.” Isto significa, por sua vez, que “os feriados constitucionalmente instituídos têm em conta que os cidadãos- livres podem se recusar a festejá-los” e, ao mesmo tempo, o encargo de “desenvolver politicamente o feriado, isto é, fortalecer a aceitação do feriado no Estado Constitucional”, porém “também avaliá-lo criticamente”.[2]

Estas lições de um dos grandes nomes do constitucionalismo vêm bem ao encontro da comemoração do Dia da Consciência Negra, associado à imagem de Zumbi dos Palmares, aliás, um dos heróis da Pátria ( Lei 9.315/96), comemorado em 20 de novembro de cada ano, atualmente em 757 cidades do país.[3] Inexiste lei nacional a fixar o referido feriado e mesmo a adesão dos municípios não impediu a contestação, judicialmente realizada, em outras localidades (os casos de Porto Alegre, Alvorada e Pelotas, justamente no estado onde surgiu a própria proposta de comemoração da data), por violação à Lei 9.093/95, que somente se refere a “feriados religiosos”. De toda forma, a Constituição de 1988, na linha preconizada por Häberle, estabeleceu que as datas comemorativas deveriam refletir a diversidade cultural ( art. 215, 2º, CF).

Isto implicaria, em verdade, “descolonizar”, de forma mais veemente, o legado cultural que associou a abolição ao fim da discriminação do negro, que recompôs as relações sociais pós-coloniais dentro de um ideário de “democracia racial” e que infundiu como valor fundante uma “mestiçagem”, que, sendo híbrida, esteriliza qualquer outra contribuição que não tenha, como matriz primordial, o legado de um passado que se veja “eurocentrado”. Aqui, o 20 de novembro exerceria um “ritual”, em relação às antigas festividades do 13 de maio, similar àquilo que o constitucionalista alemão denomina de “feriados mortos”, ou seja, a “desconstrução” de um feriado, a partir da ideia de que a “comunidade política deveria ter a força para extinguir um feriado que perdeu sua importância com o tempo”, mesmo indo contra todas “as classes sociais dominantes”[4] Este sentido “descolonizador” é fundamental para as lutas dos distintos movimentos negros brasileiros.

Dentre inúmeros embates de cunho jurídico, poderiam ser destacados, na conjuntura atual:

1. A dificuldade de implementação da história e cultura africanas, na forma preconizada na Lei 10.639/03 (a indígena foi objeto de inclusão pela Lei 11.645/08), que é um intento parcial de recuperação das memórias silenciadas e se encontra em conformidade com princípios constitucionais da “defesa e valorização da memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira ( art. 216)” bem como da “valorização da diversidade étnica e cultural” ( art. 215, §3º, V). A reavaliação do material didático e das associações feitas com a população negra devem constituir um eixo transversal das práticas culturais e educativas em todas as esferas de poder [5], podendo-se, inclusive, utilizar outras linguagens, como a do cinema, para análise das situações de preconceito, discriminação e violação de direitos humanos. [6] Necessário, pois, que se vença esta gigantesca resistência.


2. O combate, no plano judicial, da questão do racismo. No âmbito penal constitucional, o tratamento foi rigoroso: estabeleceu-se o cumprimento de pena mais severa (reclusão) e fixaram-se características de imprescritibilidade e inafiançabilidade. Reforçou-se o repúdio na ordem internacional ao racismo (art. 4º, VIII). Isto implicou, portanto, a necessidade de: a) impedir qualquer conduta, prática ou atitude que incentive, prolifere ou constitua racismo; b) tomar medidas cabíveis, possíveis e necessários para erradicação de tal prática. O STF, paradoxalmente, somente apreciou racismo quando envolveu “anti-semitismo”, sequer apreciou tratados internacionais envolvendo discriminação racial. E, no entanto, os relatórios internacionais, inclusive aquele do relatório especial sobre “formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada”, na missão ao Brasil (17 a 26 de outubro de 2005)[7] salientam a necessidade de: a) criar ramos especializados em racismo e discriminação racial dentro dos tribunais e das procuradorias para ampliar o grau de implementação da legislação anti-racismo existente; b) treinamento regular nesta matéria de juízes e promotores; c) um sistema de controle deveria ser estabelecido no Judiciário para monitorar o julgamento de violência racialmente motivada e crimes contra esses grupos. À grandiosidade da previsão constitucional, tem prevalecido o “imaginário social” de um país sem conflitos, mestiço e livre de preconceitos e racismos (só não consegue explicar porque 65% dos estudantes de Medicina/UFBA são brancos, ao passo que a população negra  chega a 79%, nem porque a probabilidade de ser morto aumenta conforme vai “escurecendo”  a cor da pele).

3. No tocante à questão de terras, a Constituição estabeleceu como critério de cumprimento da função social da propriedade rural (incisos II e III do art. 186), dentre outras, a “preservação do meio ambiente” e a “observância das disposições que regulam as relações de trabalho” (e que seria o “trabalho escravo” ou “forçado” outra coisa que a inobservância absoluta destes parâmetros?) O relatório de 2008, divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (que realiza levantamento desde 1985) em abril deste ano, faz um balanço do quadro de conflitividade (número de conflitos e de pessoas envolvidas), da intensidade da ação do poder público (número de pessoas presas e despejadas) e da intensidade da ação do poder privado (assassinatos e pessoas expulsos). Cotejando-se as situações de violência privada com as de trabalho escravo, tem-se a constatação de que as populações tradicionais (quilombolas, ribeirinhos, indígenas, etc) estiveram envolvidas em 53% dos conflitos (em 2007: 41%), ao passo que os sem-terra em 36% (em 2007: 44%). Do total, 65% das populações tradicionais envolvidas estão na Amazônia Legal, ao passo que 60% dos sem-terra, na região centro-sul. Isto parece indicar, portanto, que os conflitos se intensificaram nas áreas de monoculturas de exportação (cana, soja, milho e também celulose), os setores tidos como da “moderna agricultura empresarial”. O processo de modernização da agricultura “competitiva” se faz, portanto, com a apropriação/expropriação de terras das populações tradicionais e simultâneo ao incremento do trabalho escravo/forçado. A modernidade continua entrelaçada com a colonialidade, e as vítimas primordiais têm sido justamente aquelas responsáveis pela conservação da maior sócio-biodiversidade do país. [8]

4. A discussão das políticas de ações afirmativas, em especial no campo educacional, que se encontram pendentes de apreciação no STF, por meio da ADPF 186-5/DF, bem como da ADIN 3.197, envolvendo o sistema adotado pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro, criado por lei estadual, bem como as ADins 3.330, 3.314 e 3.379, que se encontram apensadas, questionando o PROUNI, a primeira com julgamento já iniciado, voto favorável do Min. Carlos Ayres Britto e pedido de vista do Min. Joaquim Barbosa. São situações distintas, mas têm, na base de suas discordâncias, divergências e polêmicas, o fato de estabelecerem parâmetros de cunho racial para fins de políticas públicas.[9] Dentre os vários pontos a merecer discussão, destaquem-se: o processo de “racismo institucionalizado”; o baixo reconhecimento da dura realidade da população negra e dos distintos matizes de racismo; a avaliação da implementação das medidas pelas universidades públicas neste período; o princípio da igualdade em sua matiz substancial e o obscurecimento de que a manutenção da situação atual significa, por via oblíqua, uma “ação afirmativa” branca; o caráter de “experimentalismo” das soluções aventadas e, portanto, da insuficiência da “neutralidade” não-racial até então adotada. Ademais, a própria forma de concretização dos fins constitucionais de repúdio ao racismo ( art. 4º, inciso VII e art. 5º, inciso XLII), redução das desigualdades sociais ( art. 3º, III), pluralismo de ideias ( art. 206, III), garantia de padrão de qualidade de ensino (art. 206, inciso VII), defesa e valorização dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira ( art. 216), valorização da diversidade étnica e cultural ( art. 215, 3º, V) e promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça e cor e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Por sua vez, no Estatuto da Igualdade Racial, tal como aprovado pela Câmara Federal, as questões envolvendo cotas raciais foram tidas como divisoras do país e o resultado ficou realmente “desidratado”. Sobrou como ganho a possibilidade de utilização de incentivos fiscais como ação afirmativa para contratação de negros e um dispositivo vago relativo às universidades. Se isto, por um lado, não fere de ilegalidade as sucessivas experiências das universidades federais com relação ao ingresso de indígenas e negros, por outro, passou ao largo de inúmeras discussões realizadas nos últimos vinte anos. Pode-se afirmar, pois, que está nascendo com a cara do Código Civil de 2002: defasado, inclusive em relação às previsões constitucionais. Seria um caso de atuação legislativa que incorre em “proibição de insuficiência”, adotando “medidas insuficientes para garantir uma protecção constitucionalmente adequada aos direitos fundamentais”? [10]


5. A questão do reconhecimento da propriedade definitiva “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras“, para as quais o art. 68-ADCT determinou competir ao Estado emitir-lhes os títulos respectivos. A implementação de toda uma política transversal envolvendo tais comunidades (bem como outras populações tradicionais), na forma do Decreto 6.040/07, não implica esquecer a baixa taxa de titulação definitiva (o governo federal promete, para o presente 20 de novembro, o reconhecimento de mais 30 comunidades, aparentemente excluindo a “Invernada dos Negros”, por pressões político-partidários locais; a maior parte, contudo, foi titulada por governos estaduias) nem as inúmeras resistências travadas no campo jurídico.[11] O Estatuto da Igualdade Racial, por exemplo, previa uma regulamentação do art. 68 do ADCT, que não diferia muito da existente no Decreto 4.887/03, mas que servia, em parte, como forma de amenizar o “imbróglio” jurídico pendente de julgamento. A “bancada ruralista” sustentou a posição do revogado Decreto 3.912/01, prevendo a necessidade de comprovação de posse por cem anos. O que equivaleria, em realidade, a ser mais vantajoso para a comunidade alegar usucapião: não se concebe que um direito constitucionalmente assegurado seja obtido mais facilmente por via legal já existente. De toda forma, a previsão foi excluída, deixando as comunidades quilombolas à mercê da apreciação da ADI e da constitucionalidade/supralegalidade da Convenção 169/OIT.

6. A discussão relativa aos tratados internacionais de direitos humanos. O STF, tanto na apreciação do Recurso Extraordinário 466.343/SP, quanto no HC 87.585-TO, por maioria, entendeu, a partir do voto do Min. Gilmar Mendes, pelo “status” de “supralegalidade”, ou seja, os tratados internacionais de direitos humanos seriam superiores à legislação, mas inferiores, hierarquicamente, à Constituição. Somente aqueles previstos no art. 5º, parágrafo 3º, teriam “status” de emenda constitucional, mesmo assim sujeitos, pois, ao controle de constitucionalidade. Naqueles dois processos, tratava-se de discutir a prisão do depositário infiel diante das previsões do Pacto de San Jose (Costa Rica), que somente se referia à prisão por pensão alimentícia. A posição majoritária, contudo, se deu por apenas um voto. E observe-se: dizia respeito a direito individual. Quando da apreciação da extradição/refúgio de Cesare Battisti, o Min. Cezar Peluso, em seu voto, afirmou que “é um princípio capital dos tratados” o fato de que “não tem nexo celebrar tratado para não ser cumprido.” Referia-se, é verdade, a um tratado envolvendo extradição entre Brasil e Itália. Mas poderia referir-se também a um tratado envolvendo discriminação racial, direitos dos povos indígenas, eliminação de discriminação contra a mulher, comunidades quilombolas, etc. Pensará o STF da mesma forma, em relação a estas questões, que tocam, segundo o Min. Gilmar Mendes, que estão ligadas à “identidade nacional” e ao conceito que “o brasileiro tem de si mesmo”?

Diante destes desafios imensos, existem possibilidades jurídicas para “empoderamento” dos distintos movimentos negros (e, em parte, das lutas das outras “populações tradicionais”)? Tendo em vista que a discussão, de fundo político, tende a se transformar em novos embates jurídicos junto ao STF, enumerem-se algumas.

Primeiro: a insistência no caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, salientando que as questões tratadas são questões de direitos humanos e não meramente discussões “específicas”. Ou, pontualmente, no caráter “supralegal”. A posição tem amparo na jurisprudência também da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Segundo: a visibilização dos direitos constitucionais postos em discussão em cada uma das hipóteses, com a pressão para que sejam utilizados, judicialmente, critérios de ponderação, como forma de justificativa das escolhas a serem tomadas.

Terceiro: a insistência na diversidade constitucionalmente assegurada, no plano político, mas também ambiental, agrícola, social, étnico-cultural, como princípio fulcral das disposições constitucionais.


Quarto: a visibilização dos racismos existentes nas discussões, seja eles anti-índio ou anti-negro, uma conduta que deve ser rechaçada tanto interna quanto externa, em conformidade com os compromissos e princípios constantes da Constituição.

Como bem salientado por Boaventura de Sousa Santos, o período pós-colonial manteve a apropriação de terras e o racismo que caracterizaram o período anterior à independência. As lutas dos movimentos negros (e de todas as comunidades tradicionais) têm mostrado que um constitucionalismo intercultural e pós-colonial é tanto mais árduo, quanto cada dia se faz mais necessário. Afinal, como relembra Mário Quintana, “se as coisas são inatingíveis”, não é “motivo para não querê-las”, pois “que tristes os caminhos se não fora a mágica presença das estrelas!”[12]


* Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2009.

[1] HÄBERLE, Peter. Constituição e cultura; o direito ao feriado como elemento de identidade cultural do Estado Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 7-8.

[2] Idem, ibidem, p. 30-31.

[3] A informação encontra-se informação disponível no site: http://www.inclusive.org.br/?p=12463&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=n%25c2%25ba-de-cidades-que-celebram-dia-da-consciencia-negra-quase-triplica

[4] Idem, ibidem, p. 32.

[5] Vide as discussões constantes em: DÓRIA, Antonio Sampaio. O preconceito em foco: análise de obras literárias infanto-juvenis; reflexões sobre História e Cultura. São Paulo: Paulinas, 2008; BAPTISTA DA SILVA, Paulo Vinicius. Racismo em livros didáticos; estudo sobre negros e brancos em livros de Língua Portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

[6] Vide a análise de “Sarafina- o som da liberdade”, em: GOMES, Nilma Lino. Os múltiplos sons da liberdade. IN: TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro & LOPES, José de Sousa Miguel, org. A escola vai ao cinema. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 63-71.

[7] Disponível em : http://www.irohin.org.br/ref/docs/doc01.doc

[8] Vide para apresentação de outros dados do referido Relatório: BALDI, César Augusto. Violência no campo: revisando conceitos. Disponível em: http://etnico.wordpress.com/2009/08/20/violencia-no-campo-revisando-conceitos/

[9] Não é o momento, aqui, de referir os argumentos constitucionais relativos à questão, que foram objeto de artigo publicado anteriormente: BALDI, César Augusto. Ações afirmativas são desafio para o Supremo. Consultor Jurídico, 12 de setembro de 2009. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-set-12/processos-envolvendo-acoes-afirmativas-sao-desafio-supremo

[10] CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 273.

[11] Para a situação jurídica da referida comunidade, ver: BALDI, César Augusto. O reconhecimento jurídico das comunidades quilombolas. Consultor Jurídico, 30 de julho de 2008. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2008-jul-30/reconhecimento_juridico_comunidades_quilombolas

[12] Disponível em : http://poetamarioquintana.blogspot.com/2009/01/mario-quintana-das-utopias.html

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  • Brave

    é mestre em Direito pela ULBRA-RS, doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

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