Evolução constitucional

Justiça Militar evidenciou seu pioneirismo no país

Autor

  • Ronald Bicca

    é presidente da Associação Nacional dos Procuradores de Estado e membro da Comissão de Advocacia Pública do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

25 de novembro de 2009, 9h31

A Justiça Militar no Brasil teve origem em um alvará de 1º de abril de 1808, instituindo foro especial para militares, através do Conselho de Justiça Supremo Militar. Durante a vigência do Império no Brasil, algumas codificações surgiram definindo crimes militares e sanções penais em tempo de guerra e paz. Percebe-se uma tentativa de afastar o delito militar da alçada da Justiça Comum. A ideia deste foro privilegiado ainda se dava no âmbito do Direito Administrativo.

Durante o final do Império, desenrolou-se um episódio, conhecido como “Questão Militar”, que influenciou diversos militares a rever o status da Justiça Militar. Um dos episódios que marcaram essa crise militar se deu no ano de 1885, quando de uma visita do coronel Cunha Matos à província do Piauí. O coronel encontrou irregularidades administrativas cometidas pelo capitão comandante da Companhia de Infantaria daquela província. Em 1886, um deputado amigo e correligionário do capitão, inimigo do partido político do coronel, atacou-o em discurso na Câmara, acusando-o de, quando feito prisioneiro pelos paraguaios, durante a Guerra, ter traído o seu país e dirigido uma bateria de artilharia contra forças brasileiras. Cunha Matos respondeu violentamente as acusações via imprensa e foi punido disciplinarmente pelo então ministro da Guerra, Alfredo Chaves, à detenção de dois dias por ter ferido um aviso promulgado em 1859 que proibia militares de discutirem questões políticas e militares na imprensa sem consentimento prévio do ministro.

Tal mudança se concretizou com a convocação da primeira constituinte da República em 1890. Na Constituição de 1891, pela primeira vez a Justiça Militar era prevista em um artigo da constituição, que ajudou a consolidar ainda o Código Penal Militar, originário do Código Penal da Armada, em Decreto de 05 de novembro de 1890 e que fora ampliado para o Exército pela Lei 612, de 29 de novembro de 1899.

O artigo introduzido na Constituição dizia:

Artigo 77 — Os militares de terra e mar terão foro especial nos delitos militares.

Parágrafo 1º — Este foro compor-se-á de um Supremo Tribunal Militar, cujos membros serão vitalícios, e dos conselhos necessários para a formação da culpa e julgamento dos crimes.

Parágrafo 2º — A organização e atribuições do Supremo Tribunal Militar serão reguladas por lei.

Desta forma, ficava garantido o fim da ingerência do poder civil sobre assuntos pertinentes aos Regimentos de Disciplina militares, impedia-se que pudessem se repetir punições como as que geraram a Questão Militar e dava-se assim a garantia de controle interno de problemas concernentes a carreira.

O Decreto Legislativo 149, de 18 de julho de 1893, introduziu uma série de competências para o Supremo Tribunal Militar, destacando o seu artigo 5º:

Artigo 5º. Compete ao tribunal:

§1º Estabelecer a forma processual militar, enquanto a matéria for regulada em lei.

§2º Julgar em segunda e última instância todos os crimes militares, como tais capitulados na lei em vigor.

Assim, a Justiça Militar adquiriu completa autonomia em suas competências, não estando mais subordinada a outros mecanismos. Estabeleceu-se a competência do tribunal pelo Código Processual Militar.

Na Constituição de 1934, a Justiça Militar foi incorporada ao poder judiciário, em seu artigo 63 dizia:

Artigo 63. São órgãos do Poder Judiciário:

c) juízes e tribunais militares

E reafirmava o foro especial em seu artigo 84:

Artigo 84. Os militares e as pessoas que lhe são assemelhadas terão foro especial nos delitos militares. Este foro poderá ser estendido aos civis, nos casos expressos em lei, para a repressão de crimes contra a segurança externa do país, ou contra as instituições militares.

O entendimento dado pela Constituição de 1934 trouxe para o âmbito do judiciário a Justiça Militar, estabelecendo o padrão institucional que seria dado ao tribunal militar que se daria deste período em diante.

As constituições de 1937 e 1946 pouco alteraram as competências da Justiça Militar, alterando apenas o nome do Supremo Tribunal Militar para Superior Tribunal Militar.

A constituição de 1946, em seu artigo que tratava da Justiça Militar dizia:

Artigo 108 À Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhe são assemelhadas.

§1º Esse foro especial poderá estender-se a civis, nos casos expressos em lei, para a repressão de crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares.

O Ato Institucional 2, introduziu membros da Aeronáutica na composição do tribunal, e alterou a redação do §1º:

§1º Esse foro especial poderá estender-se aos civis nos casos expressos em lei, para repressão de crimes de segurança nacional ou as instituições militares.

Com essa alteração, reafirmada na Constituição de 1967, o governo militar introduziu a questão da segurança nacional nas competências da Justiça Militar. Tal desdobramento foi resultado da incorporação da Doutrina de Segurança Nacional, que atribuía as instituições militares a manutenção da defesa interna. Essa mudança se deu no contexto de um período histórico, marcado pela guerra fria, em que diversos países eram afetadas pelo conflito entre os Blocos Comunistas e Democracias Ocidentais que se defrontavam no que veio a ser conhecido como a Teoria do Efeito Dominó.

Durante o período do Governo Militar a Justiça Militar, amparada pelas suas novas competências legais, foi o foro em que os opositores ao regime foram julgados. Vale a pena notar que mesmo em tempos de exceção, a Justiça Militar respeitou o ordenamento jurídico brasileiro, com as garantias do devido processo legal, sem jamais recorrer a medidas que ferissem os direitos individuais. Muitas vezes a Justiça Militar, a revelia das vontades políticas do regime em vigor, manteve sua independência, e foi exemplo de como as instituições judiciais deveriam se portar.

A Constituição de 1988, a que se encontra atualmente em vigor estabeleceu, em seu artigo 124, nova redação:

Artigo 124 À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Parágrafo Único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.

Destaca-se que na Constituição de 1988, afastou-se da Justiça Militar a competência de julgar os crimes contra a segurança interna, revertendo o entendimento anterior.

A Constituição vigente, diferente das constituições anteriores, determina que compete a Justiça Militar processar e julgar os crimes militares. Desta forma a única lei que define crimes de natureza militar é o Código Penal Militar.

Atualmente a competência da Justiça Militar é estabelecida pelo Código Penal Militar, instituído pelo Decreto Lei 1001, de 21 de outubro de 1969. As normas processuais e procedimentais foram delineadas pelo Código de Processo Penal Militar, instituído pelo Decreto Lei 1002, de 21 de outubro de 1969.

A Lei Federal nº 8457, de 04 de setembro de 1992, que organiza a Justiça Militar:

Artigo 1º São órgãos da Justiça Militar:

I o Superior Tribunal Militar;

II a Auditoria da Correiçao;

III os Conselhos de Justiça;

IV os Juízes-Auditores e os Juízes-Auditores substitutos.

Em tempos de paz, a lei estabelece o funcionamento de 12 Circunscrições Judiciárias Militares, que corresponde a primeira instância e somente tem competência sobre os militares das Forças Armadas, não sendo mais de sua atribuição o julgamento dos Policiais e Bombeiros Militares. Cada auditoria possui um auditor substituto, um procurador, um advogado de ofício e respectivos substitutos, um escrivão, quatro técnicos, um oficial de justiça e demais auxiliares. Existem dois tipos de conselhos de justiça: o especial e o permanente.

Aos Conselhos Especiais de Justiça cabe julgar os oficiais, exceto oficiais-generais, que só podem ser julgados no STM. Os Conselhos Permanentes de Justiça cabe julgar os insubmissos e os acusados que não sejam oficiais, exceto Auditores, Procurador-Geral, Procuradores e Advogados e substitutos que devem ser julgados pelo STM.

Podemos observar neste ensaio que o processo de consolidação da Justiça Militar se deu por diversas etapas e que no período republicano evoluiu como um ramo do Direito especializado e que assumiu no transcorrer de nossa história grande importância, evidenciando seu pioneirismo aos demais órgãos judiciais.

A evolução histórica e social de nosso país, refletiu-se nas diversas atribuições que foram imputados a Justiça Militar reafirmando a consolidação das instituições democráticas que levaram a uma justiça equilibrada, que conta tanto com militares, quanto com civis em sua estrutura, equilibrando-se entre a experiência e especificidades de oficiais de carreira e o saber jurídico dos magistrados e procuradores egressos das carreiras jurídicas.

Atualmente a Justiça Militar e o Direito Militar estão plenamente estabelecidos dentre as instituições judiciais. O processo de evolução constitucional aqui descrito, apenas reforçou um entendimento de que o Estado Brasileiro encontra-se em plena maturidade, sendo resultado de um longo processo de aperfeiçoamento constitucional e institucional.

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    é presidente da Associação Nacional dos Procuradores de Estado, e membro da Comissão de Advocacia Pública do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

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