Investigação por CPI

Duração de depoimentos e dignidade da pessoa humana

Autor

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado e cofundador e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e da Sacerj (Associação dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro).

23 de novembro de 2009, 16h48

* Esse ensaio, trabalhado a partir de palestra proferida no dia 16/9/2005, denominada CPI: mídia e direito penal do espetáculo, no Seminário Internacional de Direito Penal e Processo Penal, organizado pelo ITEC e PUC/RS, foi publicado, originariamente, na RIBCCRIM n. 75/2008 – ed. 75. Devo registrar os agradecimentos ao colega de escritório Rodrigo de Oliveira Ribeiro e a (então nossa) estagiária Larissa Pontes, que nos auxiliaram na pesquisa. De igual modo, e com especial carinho, devo agradecer a professora doutora Patricia Serra Vieira, não só por aturar as minhas inquietudes, que não são poucas, mas, em particular, por ter me ajudado na seleção de obras de Direito Civil que foram de suma importância para a construção desse texto.

De plano, é bom avisar que já sustentamos, em ensaio anterior, e continuamos aqui a sustentar com o mais vivo empenho, que as CPIs, merecidamente prestigiadas e fortalecidas pela CRFB, representam, para a manutenção do Estado democrático de direito, um dos braços mais fortes de que dispõe o Legislativo no aperfeiçoamento das leis e das instituições republicanas. Por conseguinte, por ser esse Poder detentor de instrumento tão enérgico, continuamos a defender, doutro lado, que as células parlamentares, muito em voga, no Brasil, a partir da década de 1990, precisam logo pensar e repensar nas suas atuações, para que não sejam, em futuro breve — isto é: se é que o futuro já não se transformou no presente —, desmerecidas e desacreditadas pelo povo brasileiro, que não pode prescindir de um Legislativo elevado e autônomo. Aliás, não por outro motivo que os senadores, os deputados federais e estaduais, e também os vereadores, foram escolhidos, por meio do voto popular, para cumprir das mais relevantes missões públicas.

Os politiqueiros devem se abster de utilizar processo de tamanha envergadura no cenário político brasileiro como palco para atingir suas vãs e mesquinhas expectativas eleitoreiras.[3] Faz tempo, muito tempo, que os cidadãos passaram a observar os atos e as atitudes de seus representantes. Eles se encontram atentos. Atentos até demais. E as respostas a esses (poucos) irresponsáveis sempre virão nas urnas. Se não nas de hoje, por certo, nas de amanhã ou nas de depois de amanhã. Mas virão. É só uma questão de tempo.

O Parlamento precisa ter em mente, cada vez mais, que os poderes a ele cometidos pelo legislador originário não são ilimitados. São limitados. E os limites encontram-se delineados, com clareza solar, na Lei das Leis, nas leis ordinárias[4] e nos regimentos internos das Casas que as complementam. Os limites das CPIs e de atuação de seus membros hão de ser hígidos.[5] Aliás, já falamos que poder, sem hígidos limites (não se está a falar em engessamento, mas em garantismo, o que é bem diferente), só serve de berço à germinação de prática de atos abusivos, como bem demonstram os nefastos Anos de Chumbo, que queremos ver longe de nossos olhos, mentes e almas. Para que nunca mais!

O Legislativo necessita, pois, compreender, ainda a fórceps, que a sociedade civil amadureceu e está alerta, muito alerta, diríamos, aos desmandos e aos abusos perpetrados por (alguns) parlamentares-show,[6] os quais, despindo-se de suas nobilíssimas missões, pensam ter encontrado, nas sessões onde acontecem os trabalhos inquisitoriais, no mais das vezes transmitidas, em tempo real, por televisões e rádios — os quais obtêm índices de audiência nunca dantes vistos —, o seu momento Andy Warhol.[7]

Paulo Sérgio Leite Fernandes, em um de seus Ponto Final,[8] como que antevendo o que Mário Rosa, mais tarde, denominaria de Lei Andy Warhol às avessas,[9] depois de assistir numa CPMI ao depoimento de uma senhora, esposa de um investigado, mas, incontestavelmente, investigada também, embora convocada a depor como testemunha fosse (como se o eufemismo pudesse fazer tábula rasa sobre a sua efetiva condição no procedimento), cientificava-nos que


o depoimento (…) durou oito horas, sendo encerrado porque a moça teve uma quinta crise de choro, não podendo continuar. (…) alguns membros da Comissão persistiram na inquirição extravagante, valendo-se, um ou outro, de argumento no sentido de que a declarante, sendo verdadeira, estaria preservando a honra da família e a dignidade dos filhos. (…) As características dos ouvintes e da posição de inquiridores variados é múltipla. Uns, atrelados ao povo sofrido e desempregado, sentem certa dose de prazer enquanto vêem uma representante da denominada classe média alta sendo publicamente escarmentada, enquanto se desfaz em lágrimas; outros — ou outras — têm uma irritação disfarçada enquanto percebem, no entremeio do depoimento, que a interrogada resiste, não se abatendo, alegrando-se os ouvintes, entretanto, naqueles momentos de acabrunhamento ante a agressividade de um inquisidor escabujante. Há um terceiro grupo que tem dó, contendo-se dentro das paralelas da urbanidade. Em linhas gerais, a população acha “muito bem feito” (…). Tive, em algumas oportunidades, a constatação de que hoje ainda se aplicam, embora há muito revogadas, as Ordenações que mandavam salgar o solo dos condenados e lhes tisnar a descendência.

(…) melhor teria sido que a inquirição se fizesse à moda da Inquisição, tudo em segredo, para que não se visse aquela cena que não honra quem extrapolou os parâmetros da educação e do pressionamento legítimo, embora, no meio disso, também me venha à memória rotineira atividade da polícia política durante a ditadura. Havia o mauzinho e o bonzinho. O primeiro torturava o investigado, deixando-o em situação nauseante. Em seguida, chegava o segundo. Trazia café, sanduíche, cobertor e mercurocromo, tecendo ríspidas considerações contra o antecessor. (…) No fim, a discrição seria boa opção do Parlamento, evitando-se, inclusive, episódios que chegam, às vezes, a provocar repugnância. As cenas visualizadas produzem conseqüências além das pessoas dos torturados (e não se diga que não é assim).

O processo de (re)democratização é longo. Sabemos. Mas ele já (re)começou e vem sendo solidificado no cotidiano sofrido de cada cidadão. O Legislativo não deve se permitir, sob pena de se deslegitimar, colocá-lo em risco, porque os abutres estão, como sempre estiveram, à espreita. Basta sentirem o odor da carne em decomposição para iniciarem o banquete, ainda que este seja servido em desfavor do Estado democrático de direito; conseqüentemente, em desfavor dos princípios e garantias pelos quais combatemos durante anos.

Por estas e outras razões, os repórteres Matheus Leitão e Ana Paulo Galli[10] alertaram tempos atrás, para o fato de que as CPIs, “ainda que sejam um importante instrumento do regime democrático, essenciais para o equilíbrio entre os poderes e o exercício de uma das funções mais nobres do Legislativo — fiscalizar o Executivo —, (…) vêm sendo banalizadas. Elas têm, progressivamente, virado arma de promoção pessoal de políticos, munição para alvejar adversários e, nos piores casos, balcão de negócios em que empresários são intimidados ou achacados, segundo afirmam os próprios parlamentares.”

E o triste é que este fato reflete o pensar de significativa parcela do povo brasileiro. O ceticismo, em dias atuais, vem imperando, indistintamente, no seio da sociedade, que já não mais enxerga nas inquisas parlamentares o tal braço forte posto a lhe proteger. Ou será que a Carta não é mais Cidadã?!

Apesar de tudo que vem ocorrendo ao longo destes últimos sofridos anos no Legislativo brasileiro, força dizer que as CPIs devem permanecer na Carta Política. Mais. Devem continuar a ter os poderes que lhe foram cometidos pela Carta Política. O que é indisputável é que elas estão precisando encontrar o seu ponto de equilíbrio. A sua verdadeira razão de ser. Enfim, elas precisam ser (re)colocadas nos (garantistas) trilhos que a conduzam a uma estação segura. Aliás, elas jamais deles deveriam ter saído e, como têm saído com freqüência indesejável, não poderiam estar sendo aplaudidas por segmentos retrógrados da sociedade civil, com especial destaque, por diminuto segmento da imprensa, que, no particular, não vem bem cumprindo sua importante missão social, porque, ao invés de bem informar, vem contribuindo com as atrocidades perpetradas por alguns (pseudo)representantes do povo, contribuindo, deste modo, com a cegueira de parte significativa da sociedade civil, que não bem conhece (ou não tem como conhecer, porque mal informada) os caminhos e os descaminhos de uma investigação parlamentar.


Com efeito, Leitão e Galli[11] têm razão: na legislatura “que tomou posse em 2003, foi pedida a abertura de 34 CPIs. Quase uma a cada mês. Dezoito foram instaladas. Apenas metade tinha sido concluída até semana passada [4 a 10/9/2006]. Pede-se CPI para tudo. Até para investigar os radares de trânsito que aplicam multa por excesso de velocidade ou para avaliar a venda da fábrica de chocolates Garoto para a Nestlé. As CPIs passaram a ocupar tanto tempo na agenda do Congresso que a principal função dos parlamentares — legislar — ficou relegada a segundo plano. Reformas urgentes ficam paradas e decisões importantes sobre o futuro do país são esquecidas”.

Sobre o tema, o economista Albert Fishlow[12] preleciona que as CPIs “‘representam um passo atrás’ porque distorcem a função dos deputados e senadores’. No Brasil, há muitas leis ainda necessárias para que o país acelere a taxa de crescimento, melhore a distribuição de renda.’”

“‘É necessário que as CPIs tenham bem definido os limites do trabalho e aperfeiçoem o método jurídico na coleta de provas’, diz Fabiano Santos, cientista político do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Exemplos internacionais mostram que a definição dos limites dos poderes das CPIs pode ser resolvida de diferentes formas. Na França, as investigações parlamentares são sigilosas. Somente o relatório final pode ser divulgado. Nos Estados Unidos, os parlamentares não podem quebrar sigilos[13] nem decretar prisões [no particular, no Brasil também não podem decretar prisões, em razão da reserva de jurisdição, exceto naqueles casos em que qualquer do povo pode prender em flagrante delito]. Têm de pedir autorização à Justiça. O limite foi uma resposta aos abusos cometidos nos anos 50 durante o movimento de caça aos comunistas liderado pelo senador Joseph McCarthy. Cabe à sociedade brasileira encontrar a receita para preservar as CPIs, combatendo a banalização e os excessos.”[14]

É o que se espera. É no que se crê. E é o que acontecerá, pela simples circunstância de que a sociedade patrícia, em honra ao estatuído na CRFB, cônscia de sua importância, não permitirá que este ou aquele (falso) parlamentar, jogue por terra ferramenta tão importante para a construção de um país mais justo e equânime. Confia-se.

CPI: sua razão de ser
Dispõe o § 3º, do art. 58, da CRFB, que “as comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”.

Por não ser o escopo desta reflexão, não nos perderemos em maiores digressões doutrinárias sobre os poderes e limites das CPIs, tampouco em questões atinentes à sua ilegalidade.[15]

Porém, é incontestável que, com o advento da Carta Política de 1988, várias têm sido as discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito dos seus reais poderes e dos seus reais limites, mormente em razão da locução introduzida, pela vez primeira em nosso ordenamento jurídico, de que elas “terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.

Muitos embates judiciais ainda estão por vir, até que encontremos um equilíbrio sobre a temática, a qual, por ser indispensável à República, vem merecendo, por parte dos operadores do direito, análises profundas, produzidas longe da fogueira dos acontecimentos (e das vaidades também, é picar) e das reflexões decorrentes e típicas dos confrontos políticos em situações semelhantes. Distanciamento fundamental, por envolverem essas análises grandes conflitos, originados pela contradição interna existente entre princípios teóricos que circundam os tais poderes e limites das CPIs, e os direitos e as garantias fundamentais dos cidadãos.


No pensar de Carlos Alberto Direito,[16] “em geral, podem as comissões, no exercício de suas funções, determinar o comparecimento de testemunha, colher depoimentos, promover diligências, requisitar documentos, pedir informações a qualquer repartição pública, expedir notificações. É evidente que os atos praticados com apoio em poderes tão amplos, se decorrentes de investigação vedada ao Poder Legislativo, seja porque ao largo de sua competência, seja porque atingem direitos constitucionalmente protegidos, violam direito líquido e certo. E, desse modo, é inquestionável a competência do Poder Judiciário para prestar jurisdição”.

E, nos dizeres de Luís Roberto Barroso,[17]

As comissões parlamentares de inquérito são importantes instrumentos da atividade fiscalizadora do Poder Legislativo. Seus poderes são amplos, porém não ilimitados. Não poderão, assim, extrapolar o âmbito de competência do Congresso Nacional, investigar temas que digam respeito à vida privada e não ao interesse público, nem interferir com os direitos constitucionalmente assegurados aos indivíduos.

A cláusula referente “aos poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, introduzida pela Constituição de 1988 (art. 58, § 3º), destinou-se a dar imperatividade às deliberações e determinações das CPIs, como intimações, requisições de documentos e outras providências. Na vigência das Cartas anteriores, bem como nos termos da Lei 1.579/52 tal não ocorreria. Pela nova redação da norma constitucional, a inobservância de tais determinações enseja cumprimento coativo. Tais medidas, todavia, não são auto-executáveis. Dependem da intervenção do Poder Judiciário.

Já para Nuno Piçarra, “o inquérito parlamentar seria assim um instrumento polivalente ou plurifuncional, susceptível de utilização na fase preparatória de um procedimento legislativo, de direcção política ou de fiscalização, podendo servir não só para a preparação de actos jurídicos com eficácia obrigatória mas também de quaisquer actos políticos do Parlamento. Por isso mesmo, o seu objecto poderia ser tão abrangente quanto o âmbito da competência do Parlamento. Esta definição do inquérito conheceu um particular enraizamento no mundo germânico, sob a denominação de ‘teoria do colorário’ — de acordo com o qual ‘o inquérito parlamentar exprime a competência da assembleia dos representantes do povo para investigar factos e acontecimentos cujo conhecimento seja necessário para o exercício das funções parlamentares. Da própria definição de inquérito parlamentar resulta a natureza dinâmica do instituto. Ele surge como corolário lógico e jurídico necessário da actividade que cabe à assembleia dos representantes de preparação e adopção de cada acto formal mediante o qual exerce a sua competência constitucional. Aqui reside a finalidade e o limite da função cognoscitiva exercida através do inquérito parlamentar.”[18]

Na lição de Celso de Mello — expressada em decisão paradigmática[19] e que está a merecer todos os encômios, por ter garantido o direito do advogado[20] de prestar assistência ao seu constituinte e o deste de ser assistido por seu advogado durante as sessões das comissões, livremente, a critério de um ou de outro, porque sua presença “reveste-se de alta significação, pois, no desempenho de seu ministério privado, incumbe-lhe promover a intransigente defesa da ordem jurídica sobre a qual se estrutura o Estado democrático de direito”:[21]

A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos e nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência e nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.


Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que não podem e não devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam e julgam, não estão exonerados do dever de respeitarem os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal.

Mesmo o indiciado, portanto, quando submetido a procedimento inquisitivo, de caráter unilateral, em cujo âmbito não incide a regra do contraditório (é o caso do inquérito parlamentar e do inquérito policial),[22] não se despoja de sua condição de sujeito de determinados direitos e de senhor de garantias indisponíveis, cujo desrespeito põe em evidência a censurável face arbitrária do Estado cujos poderes devem necessariamente conformar-se ao que impõe o ordenamento positivo da República.

Como se nota, apesar de o texto constitucional ser límpido, como límpidas são as leis ordinárias e os regimentos internos das Casas, há muito se faz indisputável que o Legislativo edite nova lei, à luz da Carta Política, dispondo sobre o efetivo procedimento das CPIs, para que estas não sejam, como estão sendo, maculadas pela ilicitude que a ninguém aproveita. A edição dessa lei há de ser precedida de profundo debate com a academia e a sociedade civil, mantendo-se o Parlamento, para tal, distante dos pouco éticos holofotes normalmente acesos, por parcela da mídia, em razão do acontecimento do dia, os quais, não raro, cegam alguns e, também não raro, emprestam efêmera notoriedade a outros tantos.

Enquanto este momento não chegar, águas sujas ainda vão rolar em direção ao córrego, poluindo-o, de jeito irreversível.

Apresentação da temática pela nova tábua axiológica do ordenamento jurídico vigente
Os depoimentos de testemunhas ou os interrogatórios de indiciados perante algumas CPIs têm tido duração demasiado longa, por ininterrupta a sessão (são oito, dez, quatorze, dezesseis horas; enfim, mais parece uma maratona, só que a disputa não tem vencedores, só vencidos), levando as testemunhas e/ou os indiciados a situação indignamente opressiva e violenta, não só pelo esgotamento psicofísico a que são submetidos, mas, sobretudo, pela direta e inquestionável agressão e abalo emocional que essa exposição pública provoca à sua dignidade pessoal; situação esta, é óbvio, totalmente divorciada da finalidade da investigação.

O problema da ausência de previsão legal quanto à duração desses atos vem de longe. Certa feita, Pedro Lessa, em momento que antecedera a sua investidura como ministro do Supremo Tribunal Federal, houve por bem sacudir questão de ordem com o fim de indagar sobre a limitação temporal de sustentação oral para Rui Barbosa, que reclamava da tribuna a sua exigüidade:

Senhor Presidente — Estou aprendendo. Rui Barbosa, pelas luzes de sua sabedoria, há muito adquiriu o direito de falar nesta Casa pelo tempo que entenda.[23]

A problemática atual, entretanto, difere, substancialmente, daqueloutra vivenciada por Lessa e Rui. Bons tempos aqueles… Mal poderiam eles imaginar os tempos modernos… Por sinal, nem eles, nem nós.

Não é importante, aqui, recordar certas inquirições de testemunhas/indiciados realizadas por recentíssimas CPIs. Em realidade, se estivéssemos em locais outros que não na Casa do Povo as conseqüências poderiam ser resolvidas de jeito diferente, porque o homem, humilhado, pode, em defesa do eu, tomar, em relação ao outro, atitude jamais por ele dantes imaginada.

A humilhação implica, consoante Pierre Ansart, em uma “situação particular na qual se opõem, em uma relação desigual, um ator (individual e coletivo) que exerce uma influência, e, do outro lado, um agente que sofre esta influência. A situação humilhante é, por definição, racional: comporta uma agressão na qual um sujeito (individual ou coletivo) fere, ultraja uma vítima sem que seja possível uma reciprocidade. A ausência de reciprocidade é aqui essencial. Uma humilhação provisória, um comentário injurioso, uma ameaça podem ser reparados por uma resposta à altura da agressão recebida, no caso de existir uma resposta possível. Mas a humilhação não reparada é essencialmente desigual e, com freqüência, durável; o domínio é exercido em proveito do ator em detrimento da vítima. Nesta humilhação, a vítima é confrontada a uma situação ou a um acontecimento contrários às suas expectativas, contrários aos seus desejos, sem sentido para ela, representando a negação da imagem que faz de si próprio. (…) A humilhação é uma das experiências da impotência.”[24]

 

Sabe-se, com Ansart, que o homem humilhado, ao ter aniquilado o seu eu, tem sua afirmação vital negada, rejeitada e destruída, sentindo-se, pois, relegado da “relação de reciprocidade, experimentando a vergonha de si mesmo”.[25] Ele tem o seu sofrimento aumentado quando nota que “o sujeito ativo de sua humilhação não percebe sua dor [ou percebe, e quer mais, dizemos nós] ou tem satisfação com ela.”[26] As decorrências dessas barbáries são incomensuráveis. Para o humilhador, elas são diametralmente opostas, porque atingido o seu vil intento: docificou o homem, ao negar-lhe suas reações naturais.

Claudine Haroche, com precisão cirúrgica, doutrina no sentido de que a “a humilhação reside no fato de se estar reduzindo ao eu e, conseqüentemente, ao corpo. Lévinas, falando do homem que ‘acorrentado a seu corpo recusa o poder de escapar de si mesmo’, anunciou a atmosfera contemporânea, seus valores, maneiras de ser e de sentir superficiais e desengajadas: ‘o pensamento torna-se jogo, o homem se compraz com sua liberdade e não se compromete de forma definitiva com nenhuma verdade’ (…). ‘O homem transforma seu poder de duvidar em falta de convicção. Não se prender a uma verdade torna-se para ele não engajar sua pessoa na criação de valores espirituais.

O espaço da intimidade, do corpo, é o lugar dos sentimentos mais profundos: lugar que abriga e protege o sentimento da existência, o sentimento de si mesmo; mas pode ser também um lugar ameaçador para o eu; espaço de clausura, do sentimento de vulnerabilidade e de impotência, território onde a humilhação pode se exercer de maneira constante e inelutável.”[27]

 

A humilhação é, por conseguinte, uma das mais cruentas formas de tortura, crime de especial gravidade (recusamo-nos a utilizar o adjetivo hediondo), repelido pela Carta Política, em seu art. 5º, inc. III, que assegura, a todos, o tratamento digno, determinando que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

De mais a mais, temos observado, e a imprensa noticia o fato com grande estrépito, que as CPIs vêm prolongando, demasiadamente, a duração dos depoimentos e/ou interrogatórios de cidadãos ali chamados a comparecer, com o fim de vencê-los pela fadiga e/ou pelo abalo psicofísico a que são compelidos, tudo, dizem, tão-somente para atender aos desprezíveis caprichos ditados pela sanha policialesca[28] de (alguns) parlamentares-show,[29] que em nada contribuem para os elevados objetivos almejados pela investigação legislativa.

Não é por causa diversa que olhos atentos têm rotulado as sessões das CPIs de “espetáculos”, “guerra de egos”, “aula de antropologia”, “show de horrores” etc.[30] Mas isto não é bom. É ruim. Vai de encontro às mais comezinhas regras que estão, ou deveriam estar, a cimentar o Estado democrático de direito. Porém, apesar de o alerta vir de muito tempo atrás, o Parlamento faz questão de não ver e ouvir os reclamos garantistas. Ou pior: insiste em não querer ouvir e ver, é o que se depreende, sem qualquer custo.

Sobre o tema, Betch Cleinman bem o pontua:

Nesse momento, as Comissões Parlamentares de Inquérito estariam se transformando em Comissões Parlamentares Inquisitoriais. Nessa passagem, revela-se a figura da CPI-espetáculo, aquela que não mais se subordina à Constituição, mas aos índices de audiência e aos imperativos do mercado da política. Agradar ao público torna-se vital, pois dele fazem parte potenciais eleitores e financiadores de campanhas eleitorais. Na fogueira das vaidades, no fogo das paixões, são queimados critérios racionais e objetivos suscetíveis de permitir avaliar e julgar as ações dos indivíduos. Resultado: varre-se a Lei Maior, queimam-se os princípios civilizatórios.[31]

Não foi por motivo diferente que Celso de Mello, em decisão já referida,[32] advertiu, sem pejo, que:

Em seu interrogatório, o indiciado [e as testemunhas também, dizemos nós] terá que ser tratado sem agressividade, truculência ou deboche, por quem o interroga diante da imprensa e sob holofotes, já que a exorbitância diante da imprensa da função de interrogar está coibida pelo art. 5º, III, da Constituição Federal, que prevê que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

Aquele que, numa CPI, ao ser interrogado, for injustamente atingido em sua honra ou imagem, poderá pleitear judicialmente indenização por danos morais ou materiais, neste último caso, se tiver sofrido prejuízo financeiro em decorrência de sua exposição pública, tudo com suporte no disposto na Constituição Federal, em seu art. 5º, X.

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, CRFB) é considerado o parâmetro de efetividade de todo e qualquer dispositivo legal, o que permite inferir que, na atualidade, a maior e mais grave forma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade é a desobediência ou transgressão, sobretudo, a este princípio jurídico, por cabal insurgência a todo o sistema legal.

No direito contemporâneo, todas as categorias jurídicas foram submetidas a uma obrigatória releitura, tomando por base os princípios constitucionais, a nova tábua axiológica fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), na solidariedade social (art. 3º, III) e na igualdade substancial (arts. 3º e 5º). Ou seja, a Carta Política não impôs apenas limites externos, mas promoveu uma alteração na estrutura e no conteúdo das categorias jurídicas, sobretudo as civis.[33]

A influência do tempo na integridade psicofísica: pela preservação da dignidade da pessoa humana
Do prisma histórico, temos que, desde os tempos dos tribunais da Santa Inquisição, o alongar indiscriminado das audiências e a privação do sono eram poderosos métodos utilizados pelo juiz-inquisidor para obter a confissão de mulheres vistas como bruxas e daqueles tidos como hereges.[34] Nesta corredeira, João Gualberto Garcez Ramos esclarece:

O tempo, na audiência processual penal inquisitória, é indeterminável. Em termos juridicamente mais inteligíveis, é possível afirmar que a conclusão da audiência processual penal inquisitória ¾ sobretudo a de instrução, representada pelo interrogatório ¾ está submetida a uma condição resolutiva, sabida pelo inquisidor e pelo ‘argüido’: que este confesse o crime. A partir deste momento, a audiência já pode se encerrar. Se ele não ocorrer, a audiência se estenderá até quando for preciso.[35]

Sabe-se que, no processo, o interrogatório é o momento de maior tensão psicológica para o cidadão, até para os mais argutos, porque, em poucas palavras e em pouco tempo, ele tem de produzir, sem tergiversações, sua autodefesa. Se for mal, pode estar abrindo ensanchas para o início de um fim tenebroso. A respeito do tema, Guilherme Nucci[36] nos lembra imorredoura lição de João Mendes Júnior.[37] Vejamos:

 

Em França, talvez mais do que em Portugal, os presos, nos termos da Ordonnance de 1670, eram interrogados incessantemente e os interrogatórios começados, o mais tardar, vinte e quatro horas depois da prisão; ali, os acusados prestavam juramento, os interrogatórios eram reiterados todas as vezes que aprouvesse ao juiz; não dava ao acusado prazo algum para responder, a fim de que ele não tivesse azo de formar astúcias e sutilezas para encobrir a verdade.

O interrogatório demasiado longo e sem interrupções é uma prática que visa, por intermédio da tortura, a enfraquecer e a desestabilizar o ser humano, sem o uso da violência física, mas apenas com a impulsão de mecanismos de pressão psicológica, simplesmente pelo desgaste excessivo. Leva a pessoa à confusão mental, diminuindo sua capacidade de concentração. Aliando a pressão prolongada pelos inquiridores com o cansaço e a extenuação física, chega-se ao estado de vulnerabilidade propício para se obter a tão almejada confissão,[38] ou qualquer deslize ou palavra incerta que possa ser entendida como comprometedora.

A doutrina argentina[39] se refere à prática como interrogatório contínuo:

Es el más difundido por la novelística y la cinematografía de temática policial, como también prohibido en casi todas las legislaciones. No obstante, sigue siendo usado en diversos países.

Emplean así un interrogatorio continuado que mantiene al sospechoso constantemente en la defensiva debilitando su habilidad para elaborar excusas lógicas, coartadas y evasivas a las preguntas y escucha las fallas que pueda cometer el sospechoso, mientras el otro está interrogando. Con este “interrogatorio continuo”, los interrogadores confunden la mente del sospechoso, al no darle oportunidade de descanso. Con dicha desubicación y debilitamiento mental, las secciones conscientes y subconscientes del sujeto quedarán divididas de modo que cuando oiga una pregunta, ésta con frecuencia incidirá y hará reaccionar directamente al subconsciente antes que la conciencia y la voluntad puedan evitarlo; de esta manera, la verdadera contestación ajustada a los hechos ya habrá sido dicha.

Prosseguindo o interrogatório por longo período de tempo, o inquisidor busca torturar emocionalmente o interrogando, explorando eventual falha ou contradição cometida, muitas vezes escusável pelo cansaço, por mais desprezível que seja.[40]

A situação, encarada em seus derradeiros limites, deve ser encaixada na definição de tortura prevista na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, realizada na Colômbia em 1985, e da qual o Estado brasileiro é subscritor. A tortura, consoante a Convenção é

todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. (Destaque nosso).

 

Ressalte-se que, objetivando evitar uma situação opressiva, desnecessária e ilegal, acreditamos que o interrogatório numa CPI, assim como em geral, deve ter duração certa, com prazos razoáveis de intervalo, tanto para as testemunhas como para os indiciados, uma vez que estamos tratando e defendendo direitos humanos, fundados no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental este, é sublinhar, insculpido no inc. III, do art. 1º, da Carta Cidadã, para que tanto uns quanto outros tenham respeitada a garantia efetiva dos seus direitos fundamentais.

O princípio da dignidade da pessoa humana traz consigo toda uma carga filosófica e jurídica, representando, na primeira perspectiva, verdadeiro imperativo categórico, e na segunda, também recorrente à filosofia, um comando legal. Senão, verifica-se:

 

 

Compõe o imperativo categórico a exigência de que o ser humano seja visto, ou usado, jamais como um meio para atingir outras finalidades, mas sempre como um fim em si. Isto significa que todas as normas decorrentes da vontade legisladora dos homens precisam ter como finalidade o homem, a espécie humana enquanto tal. O imperativo categórico orienta-se, então, pelo valor básico, universal e incondicional da dignidade da pessoa humana.[41] (Destaque nosso).

Na segunda perspectiva anunciada como jurídica, denota-se a dificuldade de se precisar os contornos do princípio da dignidade da pessoa humana, não só em virtude das suas numerosas conotações, mas, sobretudo, por ser a razão e/ou fundamento de toda a ordem legal e de todo e qualquer direito fundamental; envolvendo, em si, outros relevantes princípios jurídicos, tais como o da igualdade substancial, o da solidariedade social, o da integridade psicofísica e o da liberdade, elevados a substratos materiais da dignidade:

O substrato material da dignidade assim entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral — psicofísica —, da liberdade e da solidariedade.

Esta decomposição serve, ainda, a demonstrar que, embora possa haver conflitos entre duas ou mais situações jurídicas subjetivas, cada uma delas amparada por um desses princípios, e, portanto, conflito entre princípios de igual importância hierárquica, o fiel da balança, a medida de ponderação, o objetivo a ser alcançado, já está determinado, a priori, em favor do princípio, hoje absoluto, da dignidade da pessoa humana. Somente os corolários, ou subprincípios em relação ao maior deles, podem ser relativizados, ponderados, estimados. A dignidade, assim como ocorre com a justiça, vem à tona no caso concreto, se bem feita aquela ponderação.[42]

É inquestionável, portanto, a necessidade de serem criados hígidos limites para a duração dos interrogatórios dos indiciados ou dos depoimentos de testemunhas, com horário de início, intervalos sistemáticos, mais longos para os destinados às refeições, e, também, com fixação de hora para o término da sessão, ainda que a inquirição não tenha se encerrado, porque ela pode, sem qualquer prejuízo, ser retomada, nos mesmos moldes, nos dias seguintes, se for a hipótese.

Nesta linha, Perelman[43] preleciona que “a doutrina dos direitos humanos, em sua formulação mais simples, exige, para evitar a arbitrariedade do poder, a instauração de todo um conjunto de procedimentos que precisem as situações e os métodos que legitimariam a intervenção positiva dos representantes da autoridade”.

Em busca de um regramento procedimental às CPIs
A Lei 1.579/1952 (não recepcionada pela Carta), prevê que as CPIs podem ouvir indiciados e inquirir testemunhas, porém, não cuidou de estabelecer, com maiores detalhes, as formalidades legais e limitações com as quais se revestiriam tais atos; por outro lado, cuidou de prever expressamente, em seu art. 6º, a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal.

O Código de Processo Penal, por seu turno, não estabelece, em nenhum de seus artigos, os limites legais da duração do interrogatório, reservando às hipóteses de lacuna legal a previsão do art. 3º, ao admitir a interpretação extensiva e a aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

Ressalte-se que o recurso à analogia e aos princípios gerais de direito encontram-se no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, uma lex legum, norma com aplicabilidade que se estende muito além do Código Civil. Como asseverou Clóvis Bevilácqua, ela é aplicável a todas as leis:[44]

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Não há dúvidas, portanto, que o presente caso deve ser tratado mediante aplicação analógica da lei e sob a luz dos princípios gerais de direito.[45]

Carlos Maximiliano[46] distingue duas hipóteses para a analogia: ou falta uma disposição, um artigo de lei, e então se recorre ao que regula um caso semelhante (analogia legis); ou não existe nenhum dispositivo aplicável à espécie nem sequer de modo indireto, quando, então, o juiz, em face de instituto inteiramente novo, tem de recorrer a um complexo de princípios jurídicos (analogia juris).

Na caso em estudo, impõe-se aplicar, ao que se nos afigura, a analogia legis, visto existir na legislação pátria dispositivo prevendo circunstância semelhante, e o mesmo princípio contido numa regra legal deve logicamente ser estendido a outras hipóteses não previstas.[47]

Em síntese: ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio, conceito básico da analogia em Roma, “onde se depare razão igual à da lei, ali prevalece a disposição correspondente, da norma referida”,[48] adágio que se justifica ainda em tempos atuais.

Com efeito, o Código Processual Penal Militar, no § 2º de seu art. 19, prevê que as testemunhas não serão inquiridas por mais de quatro horas, sendo-lhes facultado, por ser de direito público subjetivo seu, o descanso de meia hora. In verbis:

Art. 19 (…)

§ 2º A testemunha não será inquirida por mais de quatro horas consecutivas, sendo-lhe facultado o descanso de meia hora, sempre que tiver de prestar declarações além daquele termo. O depoimento que não ficar concluído às dezoito horas será encerrado, para prosseguir no dia seguinte, em hora determinada pelo encarregado do inquérito.

A razão íntima da previsão do Código de Processo Penal Militar, editado em pleno regime de exceção, nunca devemos nos esquecer disto, se revela na sua exposição de motivos. Luís Antônio da Gama e Silva (em nada afeito às liberdades públicas e privadas), então ministro de Estado da Justiça, registrou:

O Projeto teve o cuidado de evitar situação opressiva para as testemunhas, estabelecendo que serão, salvo caso de urgência inadiável, inquiridas durante o dia, em período que medeie entre as sete e as dezoito horas. Determinou, igualmente, que as testemunhas não serão inquiridas por mais de quatro horas consecutivas, sendo-lhes facultado [direito público subjetivo do interrogando, sublinhemos mais uma vez] o descanso de meia hora, sempre que tiverem de prestar declarações além do termo.

Maximiliano[49] sustenta que o processo analógico pressupõe: em primeiro, uma hipótese não prevista tratar-se-ia apenas de interpretação extensiva; em segundo, a relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade; e, em terceiro, este elemento não pode ser qualquer e, sim, essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo.

Na circunstância ora desenhada estão presentes todos os pressupostos acima listados: a) há uma hipótese não regulamentada: a Lei 1.579/1952 não prevê os limites legais para a realização do interrogatório; b) a relação contemplada no texto do § 2º do artigo 19 do Código de Processo Penal Militar é diversa da que se examina, pois ali se trata de instância reservada aos militares e, aqui, de processo parlamentar, mas há um elemento de identidade entre ambos, pois se referem a um mesmo tipo de ato, de natureza idêntica (o interrogatório e/ou o de colheita de testemunhas), independentemente de suas diferentes instâncias; c) o fato jurídico que deu origem ao § 2º do artigo 19 do CPPM constitui elemento fundamental de identidade com o aqui estudado, pois o legislador, quando estipulou as regras para a inquirição nos feitos castrenses e previu tais limitações de tempo aos interrogatórios/depoimentos, pensou em evitar uma situação opressiva, permissiva de abusos, a qual, em essência, não é distinta da que se observa nos procedimentos civis: há, em todos os casos, militares ou civis, os mesmos sujeitos, quais sejam, de um lado, aquele(s) que interroga(m) e, de outro, o interrogado. Nesta corredeira, em todas as inquirições há a possibilidade de se submeter o interrogado a um interrogatório/depoimento artificialmente longo, levando o indiciado e a testemunha, como se diz na exposição de motivos do CPPM, a uma situação opressiva. De tortura, para sermos mais precisos.

Trata-se, ademais, de se prestigiar, aqui, a igualdade jurídica, princípio da verdadeira Justiça, a qual exige que as espécies semelhantes sejam reguladas por normas semelhantes, visto que, se todos são iguais perante a lei, mormente o são perante os princípios fundamentais que regem o ordenamento jurídico patrício; utilizando-se o tratamento desigual, para resguardo da igualdade substancial, nos casos de desigualdades regionais e sociais.

Ainda que, por qualquer motivo, se entenda que o § 2º do artigo 19 do Código de Processo Penal Militar não deva ser aplicado em analogia legis ao presente caso, cabe, por fim, a aplicação dos princípios gerais de direito, princípios de Justiça por igual, fonte última a que se deve recorrer para integrar o ordenamento jurídico,[50] e estabelecer os limites de duração dos interrogatórios dos indiciados e de testemunhas, coibindo abusos.

Abusos estes, é salpicar, que podem ser cometidos, tanto por dolo quanto por culpa, pelos agentes que, revezando-se continuamente na perquirição da testemunha e/ou indiciado, subestimam os efeitos da submissão prolongada e ininterrupta do interrogando. Ao prolongar os atos procedimentais para fragilizar o interrogado (numa espécie torturante de punição indireta, numa catarse pública, numa exposição pública de submissão prolongada), os inquiridores abrem espaço para discursos, perguntas repetidas e as mais variadas considerações pessoais sobre os próprios interrogados etc., tudo para arrastar até a madrugada o ato, destituindo-o, deste jeito, de qualquer valia, pois longe de atingir sua destinação constitucional.

Há os que ainda invocam ou se utilizam, diante até mesmo do argumento refutável da ausência de regramento expresso que cuide da questão, do processo analógico e do espírito do sistema e da Constituição. É sim: poder-se-ia até mesmo recorrer à generalidade das leis pertinentes, explorando ontologicamente os cânones não ditados de modo explícito, mas que são imanentes aos princípios que correspondem ao mesmo subconjunto axiológico e fático e aos que norteiam o sistema; os tradicionalmente conclamados princípios gerais de direito. Mas, tal invocação, por ultrapassada, não mais se justifica, diante da plena aplicabilidade dos princípios constitucionais.

A duração dos atos processuais das sessões deve ser estabelecida expressamente por uma norma (frise-se que os regimentos das Casas legislativas são omissos) e, não o sendo desta maneira, pautando-se pelos princípios constitucionais, pelos fundamentos da Constituição e, até mesmo, pelos motivos fáticos relacionados à gênese da norma, após regular requerimento, deve ser fixada pelo presidente de CPI, diante do caso em concreto.

Além da norma trazida à aplicação analógica, há outras no ordenamento pátrio, no de outros países, nos tratados internacionais, nos pactos, nas quais se verifica a existência de limites à duração dos interrogatórios.

A aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao Código de Processo Penal, pela leitura do art. 172,[51] já implica uma limitação à duração dos interrogatórios, ao estipular que os atos processuais sejam realizados, em regra, das seis às vinte horas; assim como o art. 177, ao prever que cabe ao juiz determinar o prazo da realização dos atos processuais quando a lei for omissa.

Neste rumo, conforme ressalta Maximiliano,[52] típico é o preceito do Código Civil suíço, de 1907, que, em seu art. 1º, prescreve que “se nem a letra, nem o espírito de algum dos dispositivos da lei, nem o Direito Consuetudinário oferecerem a solução para um caso concreto, decida o juiz ‘de acordo com a regra que ele próprio estabeleceria se fora legislador. Inspire-se na doutrina e na jurisprudência consagradas.’”

Na mesma direção, encontramos, no regimento do Supremo Tribunal Federal, art. 123, limite para a realização das sessões:

As sessões ordinárias começarão às 13h30min e terminarão às 17h30min, com intervalo de trinta minutos, podendo ser prorrogadas sempre que o serviço exigir.[53]

O regimento interno do antigo Tribunal de Alçada Criminal do Rio de Janeiro, em seu art. 85, continha também previsão que limitava as sessões:

Não havendo indicação em contrário, o início das sessões será às 13h, e seu encerramento às dezessete horas, salvo se antes esgotada a pauta, se ocorrer falta de ‘quorum’ ou necessidade de prorrogação por exigência de serviço ou para ultimação de julgamento iniciado.

Verifica-se, então, que o regimento interno de diversos tribunais prevê uma limitação temporal para as sessões e a realização de atos processuais, no esteio de não se levar ninguém, inclusive os magistrados, ao esgotamento psicofísico.

Pontuação conclusiva
Limitar a duração do ato processual nada mais é que se reconhecer e interpretar o princípio geral da dignidade da pessoa humana, fundamento contido no vértice da Carta, inscrito em seu art. 1º, inc. III.

O conteúdo jurídico da dignidade se relaciona com os chamados direitos fundamentais ou humanos,[54] em sua categoria de direitos individuais, conjunto de direitos cuja missão fundamental é assegurar à pessoa uma esfera livre da intervenção da autoridade política.

A Constituição Federal da Alemanha, como muitas, traz estampada, no artigo de abertura, a consagração do princípio da dignidade humana, ao dizer:

A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. (…) O Povo Alemão reconhece, portanto, os direitos invioláveis e inadiáveis da pessoa humana, da paz e da Justiça no mundo.[55] (Destaque nosso).

A legislação processual penal alemã trata mais especificamente da questão em seu art. 136a, considerando prova ilícita e inutilizável a advinda do esgotamento físico do interrogado:

 

§136a. [Métodos de interrogatório prohibidos] (1) No podrá menoscabarse la liberdad de decisión voluntaria, ni de la actuación de la voluntad del inculpado, por malos tratos, agotamiento (…).[56]

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10/12/1948, reconhece a dignidade da pessoa humana como base da liberdade, da Justiça e da paz, consignando como garantia individual a proibição de se submeter a pessoa humana a tratamentos degradantes, inumanos ou cruéis e a proteção contra medidas arbitrárias.

O princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se, ainda, na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos — Pacto de San Jose da Costa Rica, do qual o Brasil é firmante, que estabelece em seus arts. 5o, 8o e 11o, respectivamente:

Art. 5º. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.

(…).

Art. 8º. 1. Toda pessoa tem o direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável…

Art. 11. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, ou de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

O princípio da dignidade da pessoa humana, como se observa, é mais do que um princípio, há de ser considerado o vetor interpretativo geral da Constituição.[57] Trata-se de um verdadeiro supraprincípio constitucional, vivo, real, absoluto, e não só está em vigor como deve ser levado em conta em qualquer situação, não se permitindo a sua desconsideração em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas, uma vez que a própria Constituição impõe sua implementação concreta.[58]

De outro giro, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, por diversas vezes, com fundamento autônomo em princípios (ADIN 1386/RJ; RE 140095/RS; RE 141320/RS).

Afinal, enquanto não editada uma lei ordinária para, em obediência aos princípios entranhados na Carta Política (ampla defesa, contraditório e devido processo penal), regulamentar o procedimento parlamentar e arbitrar, dentre outros, limites de tempo para a realização de interrogatórios e a oitiva de testemunhas nas CPIs, consagra-se que, diante da vertente em análise, deve-se aplicar analogicamente o art. 19, § 2º, do Código de Processo Penal Militar ou, sobretudo, nos princípios constitucionais e, diante da especificidade do tema, até mesmo nos gerais de direito, arbitrar limites de tempo para a realização de interrogatórios e para a oitiva de testemunhas nas CPIs.

Enquanto isto não acontecer, vamos continuar a assistir à tortura do cidadão e ao total escárnio ao princípio da dignidade da pessoa humana nos palcos, por vezes circenses, das CPIs.

Em fecho, como a Constituição da República Federativa do Brasil proíbe a tortura, o ferimento à dignidade da pessoa humana, a violação aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo penal, força concluir, com fulcro nos passos do legislador originário, que as provas testemunhais colhidas, pelas CPIs, da maneira como têm sido, hão de ser consideradas ilícitas (art. 5º, inc. LVI); portanto, por serem inadmissíveis, não têm qualquer valia.

Por lado outro, podem/devem as vítimas buscar, no Judiciário, a indenização pelos danos materiais e/ou morais a que fazem jus (art. 5º, inc. X), isto sem falar que o Ministério Público federal ou dos estados, tem o poder-dever de processar os infratores por abuso de poder (Lei 4.898/1965), que podem/devem, também, serem processados administrativamente.


[1] No verbo do senador Amir Lando, “As CPIs trabalham muito mais para atender a um anseio da mídia que na apuração dos fatos … O que interessa é a notícia. Muitas vezes a investigação segue o rastro das notícias, quando deveria acontecer o oposto.” (Revista Época, edição n 434, 11/9/2006, p. 28 e seguintes, também disponível na internet no sítio http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75264-6009-434-1,00-CPI+FAZ+BEM+OU+MAL.html).

[2] Apesar de não ser o objeto deste trabalho, comungamos da tese, sacudida por Nilo Batista, de que a Lei 1.579/1952 não foi recepcionada pela Carta Política; portanto, à mingua de uma lei ordinária a disciplinar o rito das inquisas, elas são inconstitucionais; não podendo, como não podem, por falta de procedimento a regulamentar as CPIs, serem tidos como prova lícita.

[3] Para o ministro Celso de Mello: “o poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado democrático de direito, não há lugar para o poder absoluto”. MS 23.576/DF, Reconsideração no Mandado de Segurança, min. Celso de Mello, DJ de 3/2/2000. (MELLO, Celso de. In: BARANDIER, Antonio Carlos (org.). CPI — os novos comitês de salvação pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 161).

[4] VIEIRA, Luís Guilherme. JUDICIÁRIO vs. CPI’s – Uma questão de cidadania. Observatório da Imprensa, 5 set. 2001. Disponível em: <www.observatoriodaimprensa.com.br/cadernos/cid050920012.htm>. Acesso em: 3 jun. 2008; e Show Político – CPIs por vezes são transformadas em palcos circenses. Consultor Jurídico, São Paulo, 14 jun. 2004. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/24923,1>. Acesso em: 3 jun. 2008.

[5] “Quando o artista plástico norte-americano Andy Warhol cunhou lá pelos anos 1970 sua frase conhecida — ‘No futuro, todos teremos direito a 15 minutos de fama’ — muita gente achou que ele estava sendo extremamente pessimista. Com a frase, ele ironizava a compulsão das pessoas de se tornarem celebridades instantâneas e a máquina de criar ‘famosos’ montada pela era da informação que começara a expor um novo leque de possibilidades para a visibilidade pública.

O ‘futuro’ de Warhol chegou e, hoje, podemos perceber que na verdade ele foi um grande otimista, com todo o seu pessimismo. Porque no mundo super-ultra-interconectado de agora, o mais correto seria dizer ‘No presente, todos terão direito a 15 minutos de execração’! Podemos chamar isto de Lei de Andy Warhol às avessas” (ROSA, Mário. A reputação na velocidade do pensamento. São Paulo: Geração Editorial, 2006, pp. 103-104).

Logo, os parlamentares-show ficam com o momento Warhol dos idos de 1970 e, conscientes de que os anos são outros, submetem suas presas, as testemunhas/indiciados, às agruras da Lei de Warhol às avessas, para que estas possam ter o “direito” dos seus 15 minutos de execração… Lamentável, para falar o menos.

[6] FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. CPI dos Correios. Inquisição Oficial? Disponível em: <http://www.processocriminalpslf.com.br/cpi_correios.htm>. Acesso em: 3 jun. 2008.

[7] ROSA, Mário. Id ibidem, p. 104.

[8] Revista Época, edição n 434, 11/9/2006, p. 28 e seguintes, também disponível na internet no sítio http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75264-6009-434-1,00-CPI+FAZ+BEM+OU+MAL.html.

[9] Revista Época, edição n 434, 11/9/2006, p. 28 e seguintes, também disponível na internet no sítio http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75264-6009-434-1,00-CPI+FAZ+BEM+OU+MAL.html.

[10] Revista Época, edição n 434, 11/9/2006, p. 28 e seguintes, também disponível na internet no sítio http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75264-6009-434-1,00-CPI+FAZ+BEM+OU+MAL.html.

[11] No ponto, apesar do entendimento dos tribunais superiores e inferiores no sentido de que as CPIs podem, desde que fundamentadamente, quebrar sigilos (bancários, fiscais e telefônicos), continuamos com a pétrea convicção de que tais poderes não lhes foram cometidos pela Carta Política. Se houver tal necessidade, devem as inquisas, em honra ao princípio da reserva de jurisdição, deduzi-los à autoridade judicial competente e esta, por sua vez, avaliará se presentes estão os pressupostos autorizadores da excepcional medida. Presentes, ela será deferida.

Ademais, não devemos tirar de nossas mentes que os dados bancários, fiscais e telefônicos (estes não têm tempo certo de armazenamento fixado em lei, mas como estão umbilicalmente ligados aos dados fiscais, ficam armazenados pelo mesmo período que aqueles) estão guardados no tempo fixado em lei. Portanto, nada está a exigir que o Judiciário, com tranqüilidade, seja instado a se pronunciar sobre a concessão de medida tão invasiva à privacidade e à intimidade do cidadão. (VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais. Rio de Janeiro: Forense, 2000, pp. 75-97).

[12] Revista Época, edição n 434, 11/9/2006, p. 28 e seguintes, também disponível na internet no sítio http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75264-6009-434-1,00-CPI+FAZ+BEM+OU+MAL.html.

 

[13] Nilo Batista, ao proferir palestra na Associação Brasileira de Direito Financeiro sobre o que denominou A criminalização da advocacia (Revista de Estudos Criminais, ITEC — Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais, out./dez, Rio Grande do Sul, ed. Notadez:, ano V, n. 20, p. 87), não deixou passar ao largo questões que estão a merecer profunda reflexão dos operadores do direito, dos parlamentares e dos tribunais pátrios.

Em síntese apertada, Batista alerta um eventual colega mais incrédulo para o fato de que o “poder punitivo (…) há de ser observado em seu estado mais bruto. Peço a este Colega cético que olhe não para o exemplo grosseiro de um grupo de extermínio, mas sim para a hipótese mais dissimulada de uma CPI, e reflita sobre a circunstância de que todos os argumentos dirigidos contra o ‘procedimento investigatório’ do Ministério Público, por falta de previsão legal de procedimento, são aplicáveis às CPIs. Aquela modesta Lei nº 1.579, de 18.3.1952, lhes concede ‘ampla ação nas pesquisas’, para o que poderão ‘determinar as diligências que entenderem necessárias, ouvir indiciados, inquirir testemunhas e requisitar documentos (arts. 1º e 3º). Isto configura um cardápio, não um procedimento. Isto viola o devido processo legal em sua mais elementar expressão, o procedimento legal tipificado. E isto é, sobretudo, a grande causa das arbitrariedades e do autoritarismo que costumam cercar os trabalhos das CPIs. Poder punitivo solto é algo perigoso. O deputado, semana passada, queria saber qual era a natureza da relação profissional entre um depoente e seu advogado: mais explicitamente, queria requisitar o contrato, queria saber o valor dos honorários! O Jornal Nacional usava a expressão ‘artifício’ para referir-se à concessão liminar de habeas corpus que facultava ao investigado calar-se quando bem entendesse, atrapalhando aquela cena, da última temporada operística parlamentar-investigatória, na qual o investigado era obrigado a firmar o compromisso de dizer a verdade, qual testemunha fora, para ser preso ao primeiro titubeio ou à primeira contradição”.

[14] Apud Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, Rio de Janeiro, Renovar, 1996, p. 335.

[15] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, Rio de Janeiro, Renovar, 1996, p. 349.

[16] PIÇARRA, Nuno. O inquérito parlamentar e os seus modelos constitucionais: o caso português. Coimbra: Livraria Almedina, 2004, p. 19.

[17] MELLO, Celso, op. cit., p. 157-158 ou (MS 23.576/DF, Reconsideração no Mandado de Segurança, min. Celso de Mello, DJ de 3/2/2000).

[18] O sempre lembrado Evaristo de Moraes Filho, em tese apresentada na V Conferência da Ordem dos Advogados do Brasil, realizada em 1974 na cidade e estado do Rio de Janeiro, e aprovada por aclamação, com sua antevisão ímpar, lecionava, como se estivesse a lecionar hoje, que o advogado, ao lado da independência, também deve “armar-se de desprendimento e coragem, toda vez que for convocado para o patrocínio de uma causa. Seria sempre exigível, no mister da advocacia, o heroísmo e sacrifício, a ponto de oferecer-lhe a própria cabeça, como fez o patrono de Luís XVI, em holocausto do direito de defesa. Dir-se-á, ainda, que, em nosso país, mesmo nos mais obscurantistas momentos de nossa história, tem-se registrado o heroísmo do advogado que não recua, que não vacila em pagar com sua liberdade, se este for o preço exigido, para que não deserte da defesa de seu semelhante, para que cumpra o solene juramento dos tempos da formatura. E é verdade que o impulso que sempre tem animado a classe dos advogados no Brasil é o destemor no amparo aos direitos humanos, ainda que preciso seja tornar-se um herói no martírio desse ideal.

Triste, porém, o Estado em que os advogados devam ser heróis para executar o seu labor! (MORAES FILHO, Antonio Evaristo de. Um atentado à liberdade: Lei de Segurança Nacional. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A., 1982. p. 111-112.).

[19] Id ibdem. p. 164.

[20] Sobre esse ponto, apesar de entendermos ser ele controvertido tanto doutrina como nos tribunais, sustentamos, com fundamento no inc. LV, do art. 5º, da CRFB, que sendo as CPIs procedimentos administrativos, aos indiciados/investigados são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes. O que é indisputável, como dito alhures, é de que há a necessidade uma nova lei a regulamentar as investigações parlamentares, porque a Lei 1.579/1952 não foi recepcionada pela Constituição, como bem asseverou Nilo Batista.

[21] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Brasília: Senado Federal, 2003. p. XV.

[22] ANSART, Pierre. As Humilhações Políticas. In MARSON, Izabel e NAXARA, Márcia (org.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005, p. 15.

[23] Ibidem, ibidem.

[24] Ibidem, ibidem.

[25] HAROCHE, Claudine. Processo psicológico e sociais de humilhação: o empobrecimento do espaço interior no individualismo contemporâneo. MARSON, Izabel e NAXARA, Márcia (org.), op. cit. p. 43.

[26] “(Aliás, a propósito, como há gente com sufocada propensão para ser polícia. Lembro um advogado, sujeito liberal, democrata, que, virando secretário de segurança, portou-se com tal autenticidade na função que mereceu de um delegado entusiástico comentário: O homem vestiu nossa camisa! O Congresso quer ser polícia. O Ministério Público quer ser polícia. Certos juízes, ao interrogaar os réus, querem ser polícia. Quanta vocação frustrada…)” THOMPSON, Augusto. A violência legal. In: BARANDIER, A. C. (org.). CPI: os novos comitês de salvação pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 16.

[27] “À medida que o Legislativo decide transvertir-se em polícia, torna-se possível puxar-lhe as orelhas, travar-lhe os movimentos, já que, no plano jurídico, tal papel não lhe pertence.” THOMPSON, Augusto. A violência legal. In: BARANDIER, A. C. (org.). CPI: os novos comitês de salvação pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 16.

[28] SUWWAN, Leila. Apuração e circo: Congresso vira palco de “espetáculos”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 jul. 2005. Folha Brasil.

[29] CLEINMAN, Betch. A muralha dos procedimentos inquisitoriais. In: BARANDIER, A. C. (org.). CPI: os novos comitês de salvação pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 28.

[30] MELLO, Celso, op. cit., p. 159.

[31] FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil. Teoria geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 29.

Reforçando toda uma corrente crítica-reflexiva ao emprego do falso e do puro legalismo jurídico, justificador das práticas arbitrárias, lecionam Banhoz e Fachin: “De maneira geral, a crítica ao legalismo assentou-se nessas premissas, afora as tendências pós-modernistas que ora são construídas no sentido antilegalista propriamente dito, já que retiram do Estado qualquer capacidade de definir e estabelecer critérios de justiça de forma absoluta, ficando estes relegados a inúmeros focos de poder distribuídos na sociedade, caracterizando um quadro de falência do Estado uma vez que compreendem o poder como necessariamente descentralizado.

Uma vez mais, notam-se semelhanças na construção dos discursos historiográfico e jurídico ao longo do século XX, ambos destinados a criar e manter propostas alternativas à construção de leituras acerca da sociedade, ambos preocupados em não reduzi-la a uma ideologia estadualista, burguesa e liberal, ambos engajados na construção de recursos teóricos e metodológicos para melhor compreender o ser humano em sociedade, que desde o cientificismo tornou-se objeto de estudo, dos mais variados, embebido nos mais calorosos debates acadêmicos. BANHOZ, Rodrigo Pelais e FACHIN, Luiz Edson. Crítica ao legalismo jurídico e ao historicismo positivista: ensaio para um exercício de diálogo entre história e direito, na perspectiva do Direito Civil contemporâneo. In: SILVEIRA RAMOS, Carmen Lucia et al. (org.). Diálogos sobre Direito Civil – construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2002. p. 69-70.

[32] DALL’AQUA, Rodrigo. Métodos de tortura psicológica aplicados no interrogatório. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 11, n. 124, março/ 2003.

[33] Idem.

[34] NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 105.

[35] ALMEIDA JR., João Mendes de. O processo criminal brasileiro, v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Typ. Baptista de Souza, 1920. p. 229. In: NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997. p. 105.

[36] DALL’AQUA, Rodrigo, op. cit.

[37] ESCOBAR, Raúl Tomás. El interrogatório em la investigación criminal. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1987. p. 314-315.

[38] NUCCI, Guilherme de Souza, op. cit., p.108.

Não se trata de agressão física, mas de atos que levam o indivíduo ao desespero, ainda que sua integridade corporal seja preservada.”

[39] FREITAG, Barbara. A questão da moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de Habermas. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 1(2), 2. sem., 1989. p. 10. Citada por BODIN DE MORAES, Maria Celina, op. cit., p. 81.

[40] BODIN DE MORAES, Maria Celina, op. cit., p. 85.

[41] PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 401.

[42] DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil interpretada. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 4.

[43] Que não se confundam os princípios gerais de direito, que podem ou não estar contidos em lei, com os princípios jurídicos, de efetividade plena, dentre os quais destacamos o constitucional da dignidade da pessoa humana, verdadeiro pilar da ordem jurídica vigente.

[44] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 210.

[45] Idem, p. 208.

[46] Idem, p. 209.

[47] Idem, p. 212.

[48] TORRÉ, Abelardo. Introducción al derecho. 6. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1972, n. 70, p. 367.

[49] DALL’AQUA, Rodrigo, op. cit.

[50] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 300.

[51] Diz o parágrafo único do referido artigo que “as sessões extraordinárias terão início à hora designada e serão encerradas quando cumprido o fim a que se destinam”.

[52] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar. p. 110.

[53] NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 48.

[54] COLOMER, Juan-Luis Gomez. El proceso penal aleman: introducción y normas basicas. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1985. p. 321.

Nossa livre tradução da íntegra do artigo: "A vontade de decisão e de atividade do acusado não podem ser violadas por meio de maus-tratos, esgotamento, violências corporais, aplicação de remédios, tortura, engano, ou hipnose. Poderá se aplicar tão-somente a coerção admitida no Direito Processual Penal. A ameaça com uma medida processualmente inadmissível ou a promessa de uma vantagem não prevista em lei são proibidas;

(2) "Medidas que diminuem a memória ou a capacidade de compreensão, não são permitidas;

(3) "A proibição dos incisos I e II valem independentemente do consentimento do acusado. Declarações realizadas com violação a essas proibições não podem ser aproveitadas, ainda que o acusado aprove sua utilização”.

[55] BARCELLOS, Ana Paula de, op. cit., p. 146.

[59] NUNES, Luiz Antônio Rizzatto, op. cit.

Autores

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    é advogado criminal (RJ e BSB) e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Foi secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu, também, a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

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