LIVRO ABERTO

Os livros que marcaram a vida de Manoel Gonçalves

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18 de novembro de 2009, 15h53

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Bombardeios, trincheiras, tanques, ataques, avanços e retiradas. Foi dessa maneira que um dos professores mais respeitados de Direito Constitucional do país aprendeu uma prática que em nada lembra violência: a leitura. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e hoje advogado e professor, encontrou ainda pequeno, nas notícias diárias sobre a II Guerra Mundial, as primeiras palavras lidas. Maneco, como é conhecido o professor entre os amigos, deve ao avô materno a iniciação ao hábito de ler, ainda no jardim de infância. Todos os dias, eram as páginas do diário paulista A Gazeta, recheadas de reportagens quentes sobre o maior conflito da humanidade, que serviam de caminho nada suave para a alfabetização. 

Hoje, Manoel Gonçalves lembra com humor das primeiras impressões. “Os nomes das cidades na Europa eram escritos de forma diferente em cada língua. Às vezes eu não conseguia fazer as associações ao ler as notícias”, diz, ao resgatar a sensação das primeiras leituras, feitas quando ele pouco podia abstrair dos relatos — em 1945, ano em que a guerra chegou ao fim depois de quatro anos, Manoel Gonçalves tinha apenas 11 anos de idade.

O contato precoce em assuntos tão complexos foi o prenúncio do que viria mais tarde. Profundo conhecedor da história constitucional do país, Manoel Gonçalves Ferreira Filho já escreveu pelo menos 20 livros sobre Constitucionalismo e Direitos Humanos. É doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e doutor em Direito pela Universidade de Paris, além de presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas. A experiência inclui o vice-governo do estado de São Paulo na gestão de Paulo Egydio, entre 1975 e 1979, e o comando da Secretaria estadual da Justiça. No Executivo federal, foi secretário-geral do Ministério da Justiça entre 1970 e 1971, subordinado ao então ministro Alfredo Buzaid, e secretário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de 1969 a 1971, durante a presidência do general Garrastazu Médici.

Devorador de livros, como se autodenomina, tem uma biblioteca com quase quatro mil títulos, divididos entre seu escritório e sua casa, em São Paulo. Em um dos cômodos da sala comercial no Planalto Paulista, as estantes exibem mais de três mil exemplares sobre Direito Constitucional e Ciência Política, acervo montado com obras compradas nos Estados Unidos e Europa ao longo de 50 anos. Pelo menos outros 400 títulos se referem a Direito Administrativo, e outro tanto sobre as demais disciplinas do Direito. Em casa, Manoel Gonçalves guarda literatura mais leve, a que se dedica cerca de uma hora por dia antes de dormir. “Precisa ler, meu filho”. A frase era repetida insistentemente pelo professor do ginásio cujo nome sai fácil: Manuel Pereira do Vale. “Era o seu bordão em todas as aulas”, lembra.

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Os Três Grandes, do jornalista e historiador Jonathan Fenby - ReproduçãoAs biografias hoje são as que mais atiçam o apetite. Os Três Grandes, do jornalista e historiador Jonathan Fenby, foi a última lida na cama, e remonta ao interesse despertado na infância de Manoel Gonçalves. O livro revela os bastidores da relação entre os homens que decidiram o destino da humanidade ao comandar a aliança que derrotou o nazismo na II Grande Guerra, Winston Churchill, Josef Stalin e Franklin Delano Roosevelt, líderes da Inglaterra, União Soviética e Estados Unidos.

Outra histórica biográfica considerada envolvente pelo professor é a do preceptor do rei Luís XIV na corte francesa, Jules Mazarin, o cardeal Mazarino. Escrita por Simone Bertière, a biografia do italiano Giulio Raimondo Mazzarino, primeiro-ministro na França enquanto Luís XIV ainda era uma criança, é intitulada Mazarin: le maître du jeu e conta a história do hábil político que, sem jamais ter sido ordenado padre, sucedeu o cardeal Richelieu na corte. Entre os sucessos, a vitória na guerra dos 30 anos entre França e Inglaterra. Entre os exemplos não tão admiráveis, o conselho dado com frequência aos pares: “Simula e dissimula”.

Manoel Gonçalves, que reconhece os traços ambíguos do personagem, elogia outro aspecto: o tesouro deixado de herança à cultura. “A coleção de arte em que investiu parte de sua fortuna compôs parte importante do museu do Louvre, em Paris”, diz, o que não é motivo para poupar o clérigo, a quem define como “um safado de primeira categoria”.

Como o interesse pela biografia dos estadistas da II Guerra, a leitura da história de Mazarino também está ligada à infância do professor. Pequenas visitas não autorizadas à biblioteca do pai levaram às mãos do jovem Maneco um exemplar de Os Três Mosqueteiros, do francês Alexandre Dumas. O romance sobre uma aventura revolucionária na corte francesa não era exatamente o que os padres jesuítas, responsáveis pela educação de Manoel Gonçalves nos idos de 1940, considerariam uma leitura adequada — assim como Crainquebille, livro de contos do escritor francês Anatole France, e A Carne, romance de Julio Ribeiro, também devorados com discrição.

A obra de Dumas despertou o gosto pelos romances. Já adolescente, Manoel Gonçalves ouviu em uma radio-novela a adaptação de uma continuação da história dos mosqueteiros franceses, em que figurava o cardeal Mazarino como personagem em meio à guerra civil. Anos mais tarde, em uma biblioteca francesa, a biografia escrita por Bertière foi o estalo para o flash back instantâneo na cabeça de Manoel Gonçalves, que comprou o livro — o primeiro de vários. “Passei uma temporada lendo biografias de franceses do século XVII”, relembra.

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Dom Quixote, de Miguel de Cervantes - ReproduçãoO prazer pelas narrativas levou o professor, em determinado ano, a pedir os presentes de Natal em dinheiro. A pequena fortuna foi toda gasta na compra dos títulos elencados pela Editora Globo, de Porto Alegre, entre os “20 maiores romances da História”. A lista, composta somente por títulos publicados no Brasil pela própria Globo, era encabeçada pela unanimidade Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, considerado pelos críticos o primeiro romance moderno.

Prova de que a formação católica rígida dos jesuítas do Colégio São Luís não era seguida assim tão à risca foi a tentativa frustrada da leitura de outra biografia, a de Santo Agostinho, feita por um autor inglês cujo nome a memória não alcançou. “Tenho o hábito, de depois de começar a ler um livro, ir até o fim. Mas esse estava muito chato, e larguei”, conta. Isso não quer dizer que o interesse pelo assunto arrefeceu. “Tenho a coleção completa de Teilhard de Chardin”, diz, sobre o padre jesuíta e pensador que previu as evoluções da comunidade católica antes mesmo do concílio Vaticano II.

Assim que formado, Manoel Gonçalves escolheu trançar o caminho do Direito Constitucional com o da Ciência Política. O livro Polyarchy: Participation and Opposition, escrito em 1971 pelo professor de Ciência Política na Universidade de Yale Robert Dahl, marcou o pensamento político.

As questões sociológicas foram um dos dois motivos que fizeram Manoel Gonçalves escolher o Direito como carreira. O outro foi birra. O pai, engenheiro, media o nível de inteligência das pessoas pela capacidade de raciocínio matemático que elas tinham. Por isso, o rumo de Maneco já estava traçado. “Meu pai queria que eu fizesse Engenharia, mas eu não. Sempre me interessei mais por Ciências Sociais”, diz. No entanto, não foi fácil convencer o chefe da casa, que só sossegava quando via os prêmios de cálculo que Manoel Gonçalves trazia todos os anos do colégio. “Tive que mostrar que escolhi outra profissão não porque não sabia matemática”, lembra.

Do período de faculdade, Manoel Gonçalves cita como obras de apreço o Código Civil Comentado, do jurista, professor e jornalista Clóvis Bevilácqua, “o grande livro em matéria de Direito Privado”, e Filosofia do Direito, de Miguel Reale, seu professor na academia do Largo São Francisco.

Nas aulas de Direito Constitucional com o professor e ex-ministro do governo Café Filho, Cândido Mota Filho, Gonçalves foi estimulado a ler O Espírito das Leis, de Charles Secondat, o Barão de Montesquieu, filósofo, escritor e político francês. Foi amor à primeira vista. A obra é muito mais do que um livro. O compêndio de 31 títulos lança os alicerces da democracia republicana e o princípio da separação dos Poderes. “O capítulo VI, sobre a Constituição da Inglaterra, é um resumo antecipado do Direito Constitucional”, explica.

Como professor, Manoel Gonçalves já é conhecido pelas citações diárias de Montesquieu. O autor é tão presente nos cursos de pós-graduação ministrados, que uma piada quase surpreendeu o constitucionalista. Em uma de suas turmas, uma aluna grávida brincava com os colegas dizendo que, de tanto ouvir o nome do barão, seu filho seria homônimo. Tempos depois, em um reencontro com a ex-aluna, o professor perguntou como estava a criança. “O Montesquieu? Está muito bem”, ela respondeu. Depois de explicada a mera brincadeira, o episódio foi motivo de gargalhadas.

Foi na Universidade de Paris, a Sorbonne, que Manoel Gonçalves criou uma sistemática de leitura que funciona até hoje, direcionado por mestres sagrados como Jean-Jacques Chevallier. “Foi seguindo suas aulas que criei uma seleção de grandes pensadores dos quais eu tinha que ler alguma coisa”, diz.

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A República - Platão - DivulgaçãoA lista começa pelo próprio Chevallier. A obra As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, de autoria do professor de sociologia da Sorbonne, encabeça. Dos gregos, são obrigatórias A República, de Platão, e Política, de Aristóteles. De Legibus, do escritor Marco Túlio Cícero, é a representante romana. A sequência continua com obras de John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Thomas Robbes, Karl Marx e São Tomás de Aquino.

O que é o terceiro Estado?, publicado às vésperas da Revolução Francesa pelo padre Emmanuel Joseph Sieyès, usa as orientações em torno do contrato social para estabelecer o poder emanado do povo como superior ao das autoridades constituídas. “É uma obra que ajuda a entender fenômenos políticos atuais”, diz o professor.

Também lida durante o curso de doutorado na França, a Teoria Geral do Direito e do Estado, de Hans Kelsen, é indispensável. “Li com muita atenção, apesar de não ser positivista”, afirma. Segundo Manoel Gonçalves, mesmo que algumas sejam maçantes, é preciso dedicar atenção a essas obras. “Sem esses autores, não existe cultura sólida”, crava, e dá a dica: “Lendo dez páginas por dia, dá-se conta de tudo”.

Livros mais modernos têm ocupado o tempo de leitura do professor. The Invisible Constitution, de Laurence H Tribal, foi o último lido. Antes dele foi a vez de Political Power & The Governmental Process, de Karl Loewenstein. Na mira ainda está A Constitution of Many Minds, de Cass R. Sustein, o próximo a ser lido.

Primeiro livro

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Sítio do Pica-Pau Amarelo - Monteiro Lobato - DivulgaçãoAs primeiras palavras lidas foram no jornal paulista A Gazeta, em notícias de guerra. Mas Maneco, ainda menino, riu muito diante da criatividade de Monteiro Lobato nas histórias em Reinações de Narizinho e Caçadas de Pedrinho, personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo, que rendeu vários livros. Depois mais velho, o professor se arriscou a explorar a biblioteca da família, de onde tirou Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas.

Livro didático
A sequência de antologias Humanitas, do professor A. J. da Silva D’Azevedo, deu ao professor uma boa noção sobre os principais textos latinos. A seleção de temas vai de Ciência Política à Filosofia.

Literatura

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Memórias Póstumas de Brás Cubas - DivulgaçãoFã de carteirinha de Eça de Queiroz, o professor cita o clássico A Cidade e as Serras como exemplo de beleza da obra do autor português. No livro, o escritor critica os males trazidos pela civilização, enquanto exalta os valores da natureza. Outro clássico português que ganha destaque é Os Lusíadas, de Luís de Camões, que “não pode deixar de ser lido”. De Alexandre Herculano Manoel Gonçalves elogia Eurico, o Presbítero e O Monge de Cister, e de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Livro jurídico
Em Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen defende com unhas e dentes o positivismo, afastando a eficácia do jusnaturalismo e dos juízos de valor distantes da objetividade e da neutralidade da análise científica das normas. Em contrapartida, a obra abriu caminho para a maioria das críticas contra critérios meramente formais de legitimidade das leis.

Li e recomendo
Esperadas por todos os alunos pós-graduandos de Manoel Gonçalves, as citações de Montesquieu justificam a insistência. O Espírito das Leis é a obra que mapeia a doutrina democrática do poder nas Constituições atuais.

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