Legado do professor

Junqueira ensinou que Direito está ligado à vida

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  • Rafael Vanzella

    É doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e professor na Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas.

13 de novembro de 2009, 14h27

O Direito Civil brasileiro está em luto. Faleceu na última terça-feira um de seus maiores representantes do final do século XX, o eminente professor Antonio Junqueira de Azevedo. O professor Junqueira, como era conhecido e aclamado, foi superlativo. Como todo jurista público, que não se furtava à arena, sua personalidade e suas capacidades avançavam por vários domínios.

Humanista, homem de cultura e de fé, altruísta, político, travou lutas importantíssimas pela higidez da universidade pública, mormente pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Dessa última foi aluno na graduação e na pós-graduação, professor primeiro de processo civil, depois de Direito Civil, cujo departamento chefiou e dele se aposentou há poucos meses na posição de professor titular, e, por fim, diretor. Foi uma carreira completa e dedicada. É dela que, como civilista que sobretudo foi, vem seu principal legado: um método de pensamento jurídico.

Constituinte de uma verdadeira escola, da qual fazem parte gerações de advogados, promotores, juízes, diplomatas, acadêmicos e professores, o método legado pelo professor Junqueira se caracteriza por um concerto da dogmática jurídica com o valor da vida – e não só da vida humana.

Fascinado pelo fenômeno da vida biológica, tal qual explicado pelo evolucionismo darwiniano, o professor Junqueira esforçou-se, nos últimos anos, para concertá-lo com sua notável produção acadêmica dos tempos de juventude intelectual. Nesses tempos, seu talento para elaborar modelos normativos – entre os quais o mais famoso é a doutrina dos três planos do negócio jurídico – vinha acompanhado de uma profunda lucidez sobre a principal função da dogmática jurídica: a promoção da segurança e da democracia.

De forte inspiração estóica, foi, contudo, desde sempre sensível às dimensões individual e social desses valores, isto é, aos espaços de liberdade e de autodeterminação, de um lado, e de propulsão, de movimentação e de dinamismo, de outro. Atento, então, à necessidade de elaboração de modelos normativos, em nome da segurança e da democracia compreendidas naquelas dimensões, faltava-lhe, entrementes, um vetor interpretativo, que oferecesse uma conexão lógica entre aqueles modelos normativos e à sua função, por assim dizer, social.

Depois de recorrer a um discurso quase metafísico, o valor da vida biológica consistiu, para o professor Junqueira, naquele vetor interpretativo, agora de feições claramente empíricas e positivas. A vida biológica é a motivação e a limitação não apenas do saber dogmático, mas também dos valores a que serve, em todas as suas dimensões.

Foi assim que explicou a elaboração de dois de seus mais recentes modelos normativos: a dicotomia contratos existenciais e contratos de lucro, de um lado, e a instrumentalidade do artigo 421 do Código Civil, o qual trata da função social do contrato, de outro. Ambos os modelos se comunicam, especialmente quando se considera a influência do valor da vida biológica na elaboração de cada qual.

Pelo primeiro modelo, postula-se que a interferência dos juízes nas relações contratuais só é bem-vinda quando constituídas por contratos existenciais, isto é, aqueles em que pelo menos uma das partes são as pessoas naturais. Ora, como as pessoas naturais não são descartáveis, justamente porque têm vida, os juízes têm de atender às suas necessidades fundamentais, tutelando os direitos humanos.

Pelo segundo modelo, assevera-se que a função econômico-social concreta, desempenhada concretamente por um contrato individual e realmente considerado, pode fazê-lo ineficaz especialmente quando exerce uma finalidade ou antissocial, sobretudo contra o meio ambiente, ou atentatória aos direitos humanos. O valor da vida, e aqui mais claramente o da vida biológica, ressalta-se, nesse ponto, com todas as suas tonalidades.

Esses modelos normativos não são, em si, o principal legado do professor Junqueira. Servem como exemplos do seu principal legado, o qual, como disse, é o método de sua elaboração. São exemplos de como se podem construir, em nome da segurança e da democracia, modelos normativos com a motivação e os limites impostos pelo valor da vida.

Da vida biológica, que, no século XXI, em razão dos desafios ambientais, nunca se fez tão valiosa e tão penetrante em todos os ramos do Direito. Dogmática jurídica concerta-se, enfim, com esse valor. Técnica, mas, sobretudo, política que nos deve animar a todos, juristas, na realização de nosso ofício. Legado de quem soube cultivar dois saberes que só aparentemente estão em conflito. É quase como um dos apotegmas que o professor Junqueira costumava divulgar em sala de aula: “o Direito sem o homem não é Direito; o homem sem a vida não é homem; a vida sem a natureza não é vida”.

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