Liberdade religiosa

A lição da Corte Europeia de Direitos Humanos

Autor

  • Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro

    é mestra em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Ministra substituta do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) vice-diretora da Escola Judiciária do TSE e coordenadora institucional da Comissão Gestora de Política de Gênero do TSE.

10 de novembro de 2009, 16h43

A recentíssima decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (caso Lautsi v. Italy), que condenou a Itália ao pagamento de € 5 mil, a título de danos morais, a uma nacional que se sentia ofendida diante da aposição de crucifixos no âmbito das escolas públicas, revela, uma vez mais, a inquestionável centralidade e a indiscutível relevância constitucional do tema pertinente aos limites conceituais da cláusula da separação Estado-Igreja, especialmente quando se encontra em situação de litigiosidade o legítimo exercício de qualquer dos direitos fundamentais derivados do princípio maior da liberdade religiosa.

Pois bem, a decisão em referência (de 3/11/2009) foi tomada no âmbito de processo que, movido por cidadã italiana, submeteu à Corte Européia de Direitos Humanos a alegação de que a aposição de crucifixos em escolas públicas violava não só o direito fundamental titularizado pelos pais, no sentido de educarem seus filhos de acordo com suas próprias premissas religiosas ou filosóficas, mas, por igual, o direito fundamental à liberdade de crença, a proibir quaisquer comportamentos públicos que pudessem gerar, ainda que indiretamente, indevida indução, manipulação ou ilegítimo dirigismo estatal, quando em tema a livre formação de preferências religiosas (ou arreligiosas ou antirreligiosas).

O Governo Italiano, de seu turno, utilizou, em sua defesa, fundamentos que vêm se tornando cada vez mais recorrentes, quando em discussão a sensível temática dos símbolos religiosos apostos ou mantidos pelo próprio Estado: afirmou, de saída, que o símbolo religioso “se reveste de outras significações”, e que traz uma “mensagem humanista, passível de ser lida de maneira independente de sua dimensão religiosa” (Requête 30814/06). Alegou, também, a República Italiana, que a questão atinente aos crucifixos estaria visceralmente vinculada “à cultura e à história” daquela nação, razão pela qual a manutenção de tais símbolos religiosos em escolas públicas não teria o efeito de violar os “deveres de imparcialidade e de neutralidade impostos ao Estado”. Sustentou, finalmente, tal Estado estrangeiro, que a manutenção dos crucifixos nas salas de aulas de escolas públicas prendia-se, por igual, à necessidade de se encontrar “um compromisso” com os partidos de inspiração cristã ali existentes, especialmente porque tais agremiações “representam uma parte essencial da população e do sentimento religioso da localidade” (traduções livres).

Já a Corte Européia, em tal contexto, fez prevalecer os valores centrais da liberdade e da igual dignidade das crenças (e de descrentes), repudiando, como conseqüência, qualquer comportamento do Estado que seja capaz de identificá-lo com determinado pensamento religioso, em detrimento de todos os demais. Para além disso, a CEDH consignou que, muito embora o crucifixo seja mesmo revestido de múltiplos significados, a significação religiosa é aquela que lhe é “predominante” e que lhe confere sentido. Finalmente, a CEDH assentou a relevantíssima premissa de que a liberdade de crença (a compreender a liberdade de crer ou não crer) impõe ao Estado a obrigação constitucional de “se abster de qualquer imposição, ainda que indireta, de determinado pensamento religioso, especialmente naqueles locais nos quais as pessoas se fazem dependentes dos poderes públicos”.

A mencionada condenação da Itália, e as premissas corretamente lançadas pela Corte Européia, merecem especial atenção, notadamente em países como o Brasil, no qual a existência de uma suposta maioria religiosa, bem assim a tradição histórica inerente a esta mesma religião, têm sido invocadas como razões constitucionais capazes de justificarem determinados tratamentos privilegiados e diferenciados pelo Estado, tudo isso com grave comprometimento do parâmetro da neutralidade, que deriva da cláusula constitucional da separação, e em detrimento dos valores centrais da liberdade e da igual dignidade de todos.


Mencione-se, por oportuno, e apenas em caráter ilustrativo, decisão proferida pelo Conselho Nacional de Justiça, nos julgamentos dos Pedidos de Providências 1.344, 1.345, 1.346 e 1.362 (julgamento de 6/2007)[1], ocasião em que se assentou que a aposição de símbolos religiosos no âmbito de Fóruns e Tribunais revela-se compatível com a cláusula constitucional da separação Estado-Igreja, mostrando-se insuscetível, portanto, de lesionar os direitos de liberdade religiosa titularizados por ateus, agnósticos, humanistas seculares e pelos seguidores de crenças minoritárias e menos convencionais.

O fundamento adotado pelo Conselho Nacional de Justiça para justificar tal posicionamento apoiou-se na afirmação – já antes rejeitada pela Corte Constitucional alemã, e agora igualmente rechaçada pela Corte Européia de Direitos Humanos – de que tais símbolos religiosos se traduzem em verdadeiro traço cultural da sociedade brasileira, o que viabilizaria fossem eles fixados em locais públicos, sem que este comportamento estatal apresentasse aptidão para violar quaisquer direitos fundamentais daqueles cidadãos que são adeptos de diferentes convicções religiosas.

Tal posicionamento, consoante reafirmado pela Corte Européia, destoa da mais moderna interpretação da temática, fragiliza a cláusula da separação e, ao assim fazê-lo, culmina por restringir, de modo sensível e preocupante, o âmbito de proteção do princípio constitucional da liberdade religiosa.

É bom que se tenha em perspectiva, antes de tudo o mais, que as normas que consubstanciam, em um dado ordenamento constitucional, o regime de separação Estado-Igreja (ou Estado-Religião, como preferem alguns), possuem uma finalidade específica, consistente em assegurar que o princípio da liberdade religiosa não seja ofendido em razão da ilegítima interferência do Estado em matéria de fé, pois se não há plena liberdade religiosa quando o Estado se imiscui na seara espiritual, então é preciso estabelecer uma cláusula constitucional de garantia que, ao vedar este comportamento estatal, confira um manto de proteção àquela liberdade fundamental.

Contudo, a garantia fundamental da separação Estado-Igreja, num contexto de atribuição de máxima efetividade aos direitos de liberdade religiosa por ela tutelados, não se confunde (é bom que se diga) com a simples não-confessionalidade do Estado, impondo, para além disso, a total neutralidade axiológica dos poderes públicos em matéria de fé e o reconhecimento, em favor das organizações religiosas, de uma esfera indevassável, no que atine à sua estruturação interna e ao conteúdo mesmo de suas doutrinas de fé (não-ingerência institucional e doutrinária, respectivamente).

Como conseqüência dessa maior amplitude conferida à cláusula da separação (voltada, unicamente, à conferência de uma proteção mais intensa ao princípio da liberdade religiosa), muitos Estados, ainda que não-confessionais, poderão não se encaixar nesse conceito mais dilargado de separação, seja por manterem um regime de religiões privilegiadas – em regra, em favor daquelas que são mais tradicionais, em detrimento dos novos movimentos religiosos –, seja por transmitirem mensagens aos seus cidadãos no sentido da preferência estatal por uma determinada crença, seja por discriminarem ateus e agnósticos a partir da premissa de que a religião, enquanto elemento moral, revela-se indispensável à coesão social e à difusão de determinados valores tidos por essenciais à vida coletiva, seja, ainda, por hostilizarem a religião enquanto tal – o que ocorre nos Estados ateus ou de confessionalidade negativa.

O requisito da neutralidade axiológica apóia-se na absoluta necessidade de se preservar o voluntarismo em matéria de fé, através da imposição, ao ente estatal, de uma postura neutra, incapaz de exercer indevidas influências no livre mercado de idéias religiosas e no dissenso interconfessional. Tudo isso, para que se preservem a livre formação das consciências religiosas e a liberdade material de escolha dos indivíduos, a exigirem, portanto, que o Estado não interfira no mercado de idéias religiosas e não se utilize de sua carga simbólica e de sua força institucional para conformar as opções pessoais em tema de fé. Daí que a liberdade religiosa impõe um livre mercado de idéias religiosas (que só será realmente livre se estiver a salvo de possíveis desequilíbrios ocasionados pela interferência estatal), a tutelar uma das principais características do fenômeno religioso: o voluntarismo.


E é por todos esses motivos que merece destaque a decisão proferida pela Corte Européia de Direitos Humanos e que geram preocupações as equivocadas decisões lançadas pelo Conselho Nacional de Justiça do Brasil.

A fixação ou manutenção, pelo Estado ou por seus Poderes, de símbolos distintivos de específicas crenças religiosas representa uma inaceitável identificação do ente estatal com determinada convicção de fé, em clara violação à exigência de neutralidade axiológica, em nítida exclusão e diminuição das demais religiões que não foram contempladas com o gesto de apoio estatal e também com patente transgressão à obrigatoriedade imposta aos poderes públicos de adotarem uma conduta de não-ingerência dogmática, esta última a assentar a total incompetência estatal em matéria de fé e a impossibilidade, portanto, do exercício de qualquer juízo de valor (ou de desvalor) a respeito de pensamentos religiosos.

É por esse motivo que a Corte Européia corretamente asseverou que a “escola” (e é plenamente possível a legítima extensão da assertiva para também compreender fóruns, tribunais, assembléias, palácios de governo, etc) “não deve ser lugar de ativismo missionário ou de preces” (tradução livre), sendo certo que “os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado são incompatíveis com qualquer poder de apreciação quanto à legitimidade das convicções religiosas ou quanto às modalidades de suas expressões”.

Por esse modo de ver as coisas, as manifestações de fé externadas ou financiadas pelo próprio poder público (que, nos termos da exigência da neutralidade axiológica, não deve professar crença alguma, limitando sua atuação à própria proteção e conservação de um mercado de idéias religiosas que seja plural e igualitário) revelam-se totalmente contrárias ao espírito subjacente à cláusula da separação, desprestigiando o princípio da igual liberdade religiosa, criando situações de injustas preferências e transmitindo aos seguidores das demais religiões uma mensagem de desvalorização e de exclusão, que, além de consubstanciar uma inaceitável análise meritória do conteúdo de dogmas religiosos levada a efeito pelo próprio Estado, culmina por impor aos grupos preteridos uma “lesão estigmática” incompatível com o sistema de direitos fundamentais, a repousar sobre a premissa da igual dignidade de todos. Daí a necessidade da adoção daquilo que Jónatas Machado designou como “separação simbólica” entre Estado e Igreja.

Cumpre ressaltar, por oportuno, que não se revela apto a justificar comportamentos estatais de endosso a uma específica religião o fato de ser esta precisa crença aquela que é a adotada por um número substancial de cidadãos do Estado.

É que os cidadãos, precisamente porque são livres e porque se inserem no contexto de um Estado igualmente livre, possuem o direito fundamental de escolha religiosa, a alcançar não só a possibilidade de eleição por uma específica doutrina, mas, também, o direito de trocar de religião a qualquer momento (a consubstanciar o princípio da reversibilidade das opções de fé) e o direito de não professar crença alguma e de duvidar da verdade pregada por todas as existentes. Já o Estado, de seu turno, precisamente para que possa preservar o direito de liberdade de escolha de todos seus cidadãos (inclusive daqueles que optam por professar crenças minoritárias e pouco convencionais) deve manter uma posição de total neutralidade em face do dissenso interconfessional, pois não se pode jamais esquecer que a positivação, em sede constitucional, dos direitos derivados da liberdade religiosa e a consagração da cláusula da separação como requisito indispensável à proteção de tais direitos derivam da constatação histórica de que a associação entre Igreja e Estado, em regra celebrada entre poderes públicos e crença majoritária, culmina por gerar, no extremo, um contexto de franca hostilidade às minorias, no qual a doutrina hegemônica faz subalterno uso do aparelho estatal como instrumento de compulsória conversão e de perseguição de infiéis.


Além disso, a própria consagração dos direitos fundamentais, como o são tanto aqueles derivados do princípio da liberdade religiosa como aqueles decorrentes da própria cláusula da separação, desempenha uma função tipicamente contramajoritária, excluindo do poder de disposição das maiorias aqueles valores fundantes da própria ordem constitucional, como o são o da igual dignidade e respeito de todos e o da liberdade. Se é assim, e se alguns valores fundamentais estão excluídos do poder de conformação das maiorias, então como admitir que o Estado, precisamente em razão de opções e demandas majoritárias, possa ignorar os mandamentos constitucionais atinentes à separação e à neutralidade com os quais deve se posicionar diante das religiões, para, com isso, emitir sinais de endosso e de preferência que, além de enviarem mensagens de exclusão e de demérito incompatíveis com a igualdade de dignidade, culminam por colocar em xeque o próprio regime das liberdades religiosas, ao ignorar a cláusula protetiva que lhes é inerente?

Nada deve justificar, portanto, que um Estado que se pretenda democrático e plural e que adote um regime de neutralidade e de ampla proteção aos direitos derivados do princípio maior da liberdade religiosa venha a ignorar a garantia fundamental da separação entre Estado e Igreja, para, em atendimento a demandas majoritárias, admitir que seus prédios, seus órgãos, suas escolas e suas repartições sejam adornados com aqueles símbolos religiosos vinculados às crenças tradicionais, muito embora tal permissibilidade signifique o envio, aos cidadãos vinculados a diferentes crenças ou a nenhuma delas, da mensagem do desvalor, do estigma da exclusão e da pecha da inferioridade.

Nem se alegue, finalmente – como o fez o Conselho Nacional de Justiça – que os símbolos religiosos da crença majoritária possuiriam uma significação transcendente, pois representariam, sobretudo, a própria cultura e tradição nacionais. É que, tal como afirmado pela CEDH, os símbolos religiosos, enquanto ícones representativos de uma específica doutrina religiosa que lhes dá significação, jamais perderão a específica vinculação dogmática que lhes é subjacente, o que importa dizer que, por mais que alguns símbolos, por sua própria aceitação, tenham se transformado em elementos distintivos da cultura e da tradição de determinado país, essa nova significação que lhes foi agregada jamais suplantará a aura religiosa que lhes envolve e que lhes confere sentido.

Nessa linha, a orientação de Colleen Connor, para quem “Symbols often communicate the beliefs and teachings of a particular religion because they are an integral part of religious practice and are thus inextricably linked to the ideas and beliefs that they represent”[2].

Demais disso, não custa colocar em evidência que a hegemonia social de uma dada religião em detrimento de todas as demais, além da consolidação de suas idéias e de seus símbolos como verdadeiros elementos integrantes da tradição nacional, foram, em regra (ao menos nos países de tradição católica, como Itália, Portugal e Brasil)[3], conquistadas ao longo de anos de dominação, de perseguição, de hostilidades e da própria negação dos direitos de liberdade, o que impõe ao Estado o dever de, agora, conferir tratamento necessariamente igualitário a todas as religiões e respectivos símbolos, sem eternizar, portanto, posições de vantagens obtidas com violação a direitos e viabilizando, assim, que o crescimento e a consolidação das crenças religiosas decorram unicamente do reconhecimento individual a respeito do mérito intrínseco de suas verdades e não, ao contrário disso, que sejam reflexo de uma interferência estatal capaz de cristalizar uma dada posição de prestígio.

Enfatize-se, ainda, que o fundamento rejeitado pela Corte Européia de Direitos Humanos, mas utilizado pelo Conselho Nacional de Justiça, no sentido da natureza “cultural” de tais símbolos, já havia sido igualmente rechaçado pelo Tribunal Constitucional Alemão, quando do reconhecimento da inconstitucionalidade da manutenção de um crucifixo em escola primária da Bavária (93 BverfGE I).


Ao assim proceder, a Corte Constitucional Alemã reverteu decisão da Corte Constitucional da Bavária que, na exata linha do CNJ, dava pela legitimidade da presença do referido símbolo religioso, por entender, em síntese, que a presença do crucifixo não ofendia os direitos de liberdade religiosa negativa dos alunos ou dos pais de alunos cujas convicções rejeitavam tal simbologia, e que a representação de uma cruz, como símbolo de sofrimento de Jesus, era objeto significativo da própria tradição Cristã-ocidental e, portanto, um elemento não apenas religioso, mas, também, cultural.

De se ver, portanto, que o esvaziamento do conteúdo religioso do símbolo e a invocação da tradição e da cultura qualificam-se como fundamentos freqüentemente invocados para fins de atribuição, às religiões majoritárias.

Por todas essas razões é que a recentíssima decisão da Corte Européia de Direitos Humanos deve merecer profunda análise e reflexão, especialmente por aqueles que atuam na área jurídica (pesquisadores, advogados, promotores, juízes). Ela revela a relevância, a centralidade e a atualidade do tema, as sensíveis repercussões que dele derivam e a necessidade de se assentar a premissa de que, numa verdadeira “ordem constitucional livre e democrática”, deve-se optar, “claramente, por valores de justiça, reciprocidade e imparcialidade, em detrimento de princípios de autoridade, hierarquia, tradição e dominação”[4].


[1] Conferir, sobre tal julgamento: BUCCHIANERI PINHEIRO, Maria Claudia. PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. O Conselho Nacional de Justiça e a permissibilidade da aposição de símbolos religiosos em fóruns e tribunais: uma decisão viola a cláusula da separação Estado-Igreja e que esvazia o conteúdo do princípio constitucional da liberdade religiosa. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1457, 28 jun. 2007 (texto também veiculado no site Consultor Jurídico, em 1º de junho de 2007).

[2]CONNOR, M. Colleen. The constitutionality of religious symbols on government property: a suggested approach. Journal of Church and State, p. 385, 1995.

[3]MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. A Constituição e os movimentos religiosos minoritários, cit., p. 229-230, nota de rodapé 76.

[4]Id. A Constituição e os movimentos religiosos minoritários, cit., p. 228.

[Artigo publicado no Observatório da Jurisdição Constitucional, do Instituto Brasiliense de Direito Público]

 

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