Caminhos do passado

Conceito de cooperação judicial precisa de upgrade

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9 de novembro de 2009, 13h28

Além da cooperação internacional, no Brasil a cooperação interna deve ser mais explorada, a partir de mecanismos simples e sem qualquer custo, como a função de magistrado de enlace ou o atlas judiciário. A perspectiva da cooperação fundada em mecanismos informais entre juízes e tribunais, além de imprimir maior celeridade e eficácia aos atos que devam ser praticados fora da competência territorial ou material do juiz, permite que o Judiciário se descole do modelo conflituoso para lidar com a sobreposição de competências.

Fala-se, agora, muito em cooperação judicial, que é um termo de história recente na doutrina brasileira. Tradicionalmente, temos duas formas básicas de cooperação judicial, uma interna (ou judiciária), representada principalmente pela carta precatória, e outra externa (ou interjurisdicional), por meio da carta rogatória. São mecanismos antigos, do tempo em que as demandas eram essencialmente locais.

Hoje o capital é nômade, a empresa é desterritorializada e as relações humanas e jurídicas são potencializadas eletronicamente. O espaço ganha a quarta dimensão: o plano virtual. Esse universo das novas tecnologias da informação e comunicação não tem fronteiras territoriais, nacionais, e nem o processo eletrônico (Lei 11.419/06) consegue mais separar o que está nos autos eletrônicos do mundo virtual.

 

A complexidade desse emaranhado de vida, cultura, “desterritório” e q-bits tende a congestionar e a paralisar os sistemas jurídicos, que não foram dimensionados para suportar o alto grau de interação social imposto pela transnacionalização e pelo data space. Os próprios vocábulos “precatória” e “rogatória” dão bem a ideia da obsolescência dos mecanismos tradicionais de cooperação judicial.

A cooperação judicial tem um amplo campo de aplicação nas questões que envolvem as sobreposições de competências. Hoje, pela teoria processual, esse sistema é concebido de uma forma muito litigiosa, como indica o próprio nome do instituto: conflito de competência.

O ideal é que troquemos o conflito pela cooperação. Melhor que o confronto é a colaboração entre juízes. Geralmente, quando se suscita um conflito positivo de competência é porque ambos os juízes têm funções jurisdicionais a serem cumpridas, e que podem ser perfeitamente compatibilizadas, desde que o ordenamento tenha institutos adequados a esse tipo de atuação cooperada. Confrontar órgãos judiciais é pura perda de tempo, dinheiro público e energia forense. Confluir competências, por meio de cooperação, vai tornar o processo mais rápido, barato e eficaz.

Cooperação judicial é a palavra de ordem na Europa hoje. A União Europeia é um sistema jurídico extremamente complexo, que imbrica várias ordens de sistemas: quase três dezenas de tribunais supremos, que geralmente cuidam dos sistemas legais, outro tanto de tribunais constitucionais e o Tribunal de Justiça Europeu, esse último, tratando do Direito Comunitário.

Além disso, temos ainda o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que aplica o Direito Internacional, propriamente dito, relativo a Direitos Humanos e Fundamentais, e que a cada dia vai ganhando importância e interferindo indiretamente, mas de forma concreta, nas decisões das cortes nacionais.

Tudo isso se torna ainda mais complexo quando pensarmos na profusão de leis nacionais, comunitárias, internacionais, convênios e contratos trasnacionais que, não bastasse, são aplicados a partir de dois sistemas muito diferentes de ordenamento: o common law e o romano-germânico, e isso sem falar em mais de duas dezenas de línguas e centenas de culturas distintas.

É inviável, politicamente, pensar na Europa sem unificação a desses sistemas. Por isso, só mesmo a cooperação para dar conta dessa complexidade toda, que nos obriga mesmo a trocar a pirâmide kelseniana pela nova ciência das redes.

No Brasil, afora a própria regulação regional do Mercosul, e a integração idealizada pelo Unasul, há também uma nova perspectiva muito interessante para a cooperação judiciária ou interna. A grande maioria dos países europeus não é federal, daí que lá a ideia de cooperação é, sobretudo, internacional. Mas no Brasil, além de suas dimensões continentais, temos uma Federação, com quase três dezenas de Judiciários estaduais, além de cinco ramos da Justiça (federal, estadual, trabalhista, eleitoral e militar) que são segmentados e com pouca interação entre si. Temos no Brasil, hoje, quase cem tribunais-ilhas.

Os que militam no foro sabem bem do calvário que é cumprir um ato judicial em outro estado da Federação, mesmo que no mesmo ramo do Judiciário. E quando se envolve o entrelaçamento de competências materiais e não apenas territoriais, aí que a coisa se embaralha mais ainda, com o confronto entre os órgãos jurisdicionais.

O Conselho Nacional de Justiça já tem atuado na perspectiva da cooperação judicial, mas ainda de forma fragmentada. É importante que o CNJ trate a questão de maneira mais sistematizada, disciplinando, por exemplo, dois mecanismos muito simples que estão perfeitamente inseridos em seu poder regulamentar, previsto expressamente no parágrafo 4º inciso I do artigo 103-B da Constituição: (i) o magistrado de enlace e (ii) o atlas judiciário. O magistrado de enlace pode atuar regional ou interestadualmente, ou ainda catalizando a cooperação entre ramos judiciários distintos.

Áreas de Cooperação. Pode-se pensar em cooperação judicial para todas as áreas, e mais, especialmente, em três matérias: Direito Penal, Direito da propriedade imaterial e Direito do Trabalho. Na seara criminal, os crimes de lavagem de dinheiro, narcotráfico e atentados contras os sistemas financeiros desafiam, cada vez mais, uma coordenação internacional para serem reprimidos. Em relação à propriedade imaterial, inclusive quanto ao uso social dessa propriedade, os Judiciários nacionais, isoladamente, perdem muito sua efetividade.

Já o Direito do Trabalho é o ramo mais sensível à globalização, pois a mobilidade do capital e irradiação da empresa minam a capacidade de tutela aos trabalhadores pelo Estado e pelo Judiciário. Mecanismos adequados de cooperação judicial podem viabilizar uma rede interjurisdicional de proteção e efetividade dos direitos sociais.

 

O Judiciário brasileiro está apenas despertando para essa perspectiva, que é a proposta central da Rede Latino-americana de Juízes – www.redlaj.com, e sempre é o pano de fundo de seus congressos, como o que agora vai se realizar em Fortaleza, entre os dias 23 e 26 de novembro de 2009. Os anteriores tiveram lugar em Barcelona e Santiago do Chile.

Além do desenvolvimento científico do conceito de cooperação judicial, judiciária ou interjurisdicional, é importante ainda promover a aproximação pessoal entre juízes europeus e latinoamericanos, pois a cooperação envolve também, em boa medida, o relacionamento fluído entre os vários órgãos judiciários, pois ela é visceralmente voluntária e consensual, fundada em mecanismos informais e eletrônicos. Os demais operadores do processo, tais como advogados, ministério público, defensores públicos, ONGs e sindicatos também precisam se integrar na cooperação. Sem esses atores, ela não funciona.

Se os mecanismos judiciários tradicionais de composição dos conflitos já eram inadequados e ultrapassados quando o direito era sedentário, o que dizer então agora, com a economia movente, cognitiva e global, com a imbricação virtual dos territórios, a superinteração das redes sociais, a judicialização da política e com hiperemergência das inovações tecnológicas?

Mudar o paradigma não é apenas um clichê. O sistema precisa urgentemente não de um simples patch ou update, mas de um upgrade.

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    é juiz do Trabalho titular da 21ª Vara de Belo Horizonte, doutor em Direitos Fundamentais pela Universidad Carlos III de Madrid, presidente da Rede Latino-americana de Juízes, vice-presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho e coordenador do Grupo de pesquisa GEDEL sobre Justiça e Direito Eletrônicos da Escola Judicial do TRT-MG

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