Liberdade religiosa

Impedir a exposição de crucifixos não é hostil à religião

Autor

  • Aldir Guedes Soriano

    é advogado e membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP é coordenador da obra coletiva Direito à Liberdade Religiosa: Desafios e Perspectivas para o Século XXI.

7 de novembro de 2009, 13h03

A decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos concernente ao caso Lautsi v. Itália, contrária à exposição de crucifixos nas escolas públicas italianas, não pode ser considerada hostil à religião. O julgamento foi totalmente embasado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950), que impõe aos Estados signatários, incluindo a Itália, a obrigação de respeitar o direito que os pais possuem de educar os filhos de acordo com suas próprias convicções religiosas e filosóficas.

Os dois filhos da senhora Lautsi frequentaram uma escola pública em que todas as salas de aula tinham um crucifixo na parede. Incomodada com a influência diária que esse símbolo exercia na educação religiosa de suas crianças e com o argumento de que a situação feria o princípio da laicidade (secularismo) do Estado italiano, tentou solucionar o problema com a direção da escola.

Como a escola decidiu manter os crucifixos, levou, sem sucesso, o caso à Justiça italiana. Posteriormente, Lautsi buscou a jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos, que condenou o Estado italiano a pagar 5 mil euros a título de indenização.

A corte entendeu que a exposição do crucifixo restringe o direito de alguns pais de educar suas crianças em conformidade com suas próprias convicções, bem como o direito das crianças de acreditar ou não acreditar. A presença do símbolo religioso atuaria nas crianças como sutil imposição da crença representada, levando-as ao constrangimento.

O julgamento, que foi levado a cabo por uma câmara de sete juízes da Corte de Estrasburgo, no último dia 3, tem o amparo da legislação internacional de direitos humanos.

Segundo o artigo 9º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, "qualquer pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião". Além disso, segundo o artigo 2º do protocolo nº 1 dessa mesma convenção, "o Estado deve respeitar o direito dos pais de garantir educação e ensinamentos em conformidade com suas próprias convicções religiosas e filosóficas".
Por unanimidade, entenderam os juízes que houve, no caso concreto, a violação desses dois dispositivos daquela convenção. É importante observar que a decisão não proíbe o uso do crucifixo pelo cidadão, que é titular ativo do direito à liberdade religiosa. Este poderá usar seus emblemas religiosos nas escolas públicas italianas sem restrição.

Por outro lado, no contexto não confessional ou laico, o Estado não é titular ativo do direito à liberdade religiosa. Assim, a exposição de símbolos religiosos pelo próprio Estado viola sua neutralidade e a isonomia em relação à diversidade religiosa existente na sociedade. O Estado, em tese, não tem o direito de ostentar símbolos religiosos. Cabe a ele proteger os direitos e as liberdades do cidadão.

Ademais, a sentença da corte não alcança as escolas particulares de natureza confessional. A decisão da corte representa conquista histórica a favor da igual liberdade religiosa para todos os cidadãos.

Por certo, a exposição do símbolo de uma única religião em todas as salas de aula dessa escola pública da Itália não pode ser considerada direito, mas privilégio que viola a laicidade estatal e o princípio universal da liberdade religiosa.

Por isso, não se pode dizer que a decisão é hostil à religião. Na verdade, a Corte Europeia se posicionou a favor do ser humano, cujos direitos devem ser preservados.

Por fim, não há dúvidas de que essa importante decisão de Estrasburgo está em conformidade com o direito internacional e com o desafio constante de proteger os direitos e as liberdades fundamentais da pessoa humana e sua dignidade.

[Artigo publicado originalmente pela folha de S.Paulo, deste sábado, 7 de novembro]

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    é advogado e membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP, é coordenador da obra coletiva Direito à Liberdade Religiosa: Desafios e Perspectivas para o Século XXI.

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