Politização da Justiça

Judiciário sufoca democracia e sociedade civil

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5 de novembro de 2009, 15h39

Tomo os dados do belo trabalho de pesquisa do jornalista Alessandro Cristo[1], publicado no site Consultor Jurídico[2], denominado “Justiças Estaduais não dão conta do trabalho”, para partindo deles refletir e propor necessário debate sobre a judicialização da política, sobre o excessivo protagonismo do Ministério Público e do Poder Judiciário e sobre a injustificável mitigação do papel da sociedade civil e da advocacia na no processo de construção da democracia.

O quadro abaixo demonstra a evolução quantitativa das despesas, receitas, processos, etc.:

Jeferson Heroico
Tabela Evolução das Justiças estaduais - home - Jeferson Heroico

Os números demonstrariam que a Justiça Estadual, na última meia década teria se expandido, e a prova seria o aumento na quantidade de atendimentos. Em 2004, 4,5 milhões de pessoas entraram com ações nos fóruns estaduais e, em 2008, esse número quase quintuplicou: 20 milhões. Estaríamos diante de um fato positivo? O acesso à Justiça é uma realidade no Brasil?

Bem, há vários aspectos a serem considerados antes de qualquer conclusão.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmou recentemente que o Brasil assiste a uma espécie de "judicialização da política”, e deu como exemplo o fato de a Justiça Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal haverem regulado o sistema partidário e eleitoral. Para ele, a inércia do Legislativo está abrindo espaço cada vez maior para a regulação do Judiciário, o que ameaça o equilíbrio entre os Poderes. "Há hoje no Brasil uma radicalização da estatização da política em função dos poderes que o Judiciário tem avocado para si. E essa é a mais complexa e difícil questão de ser resolvida, por uma questão muito simples: quando o Poder Judiciário supre a omissão dos outros poderes ou altera decisões e a execução de políticas públicas a sociedade e o cidadão individualmente não tem instância para recorrer." [3].

Na prática, o que o ministro Tarso Genro afirma é que estamos perante um fenômeno novo no processo político brasileiro: uma hiperconcentração de poder e legitimidade no Judiciário, e um esvaziamento dos demais Poderes.

Eu acrescento que essa hiperconcentração de poder e legitimidade no Poder Judiciário esvazia mais do que os demais Poderes, esvazia o necessário movimento e envolvimento da sociedade civil nas questões politicas, fato que pode ser absolutamente problemático, pois temos visto decisões, tanto do juizo monocrático quanto dos tribunais, alterarem o resultado das urnas. Sem entrar no mérito, é um exemplo a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, confirmada pelo STF em 2008, de que os mandatos são dos partidos, o que desencadeou a submissão à Justiça de centenas de processos de parlamentares que trocaram de partido em todo o país, o que interfere nos orçamentos municipal, estadual e federal, ou seja, decisões que alteram leis e políticas públicas de cujo processo construtivo o Judiciário não participou.

O risco desses “superpoderes” do Poder Judiciário está que, na prática, ele pode cada vez mais decidir subjetivamente. E não sou eu apenas que afirmo isso. Débora Alves Maciel e Andrei Koerner [4] afirmam que “judicialização da política” e “politização da Justiça” seriam expressões correlatas e indicariam os efeitos de expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas.

É certo que na judicialização vemos métodos tipicamente judiciais em disputas tipicamente políticas, o que pode ser justificado de duas formas. A primeira justificativa estaria na ampliação das áreas de atuação dos tribunais pela via do poder de revisão judicial de ações legislativas e executivas, baseado na constitucionalização de direitos e dos mecanismos de checks and balances.

A segunda justificativa estaria no fato, inegável, de que passaram a fazer parte das estruturas do Poder Executivo e do Poder Legislativo mecanismos e procedimentos tipicamente judiciais, como os Tribunais de Contas e Comissões Parlamentares de Inquérito, por exemplo. Também é certo que as transformações constitucionais pós 88 é que permitiram o maior protagonismo do Poder Judiciário, talvez em virtude da amplicação dos instrumentos de proteção judicial colocados à disposição de minorias parlamentares, governos, associações civis e profissionais.

O problema está no excesso e no sistema híbrido de controle de constitucionalidade. No Brasil, convivem os controles difuso e concentrado de constitucionalidade, e seria essa convivência que possibilitou o fenômeno da judicialização da política com contornos desconhecidos nas democracias maduras, pois vemos minorias derrotadas majoritariamente na arena política buscarem, na Justiça, revogar as decisões da maioria [5].

Em que extensão esse fenômeno conflita com a democracia? O professor Rogério Bastos Arantes afirma que os impactos dessa expansão são indesejáveis, pois dentre outras coisas aumenta a incerteza do valor das decisões políticas. Acredito que há um outro efeito trágico: a excessiva judicialização da política passa a visão equivocada de que a sociedade civil é incapaz de defender seus interesses organizadamente, e que as instituições políticas são insatisfatórias no cumprimento do seu papel representativo, uma visão elitista, pois não estimula a participação popular e a construção de estruturas capazes de transformar democraticamente a realidade, eternizando a ideia de que a sociedade precisa ser tutelada.

O aumento de demandas nos tribunais encareceu o Judiciário regional. A pesquisa publicada pela ConJur mostra que os custos aumentaram 36% entre 2004 e 2008. Só a Justiça paulista, que tem o maior tribunal do país, foi responsável por R$ 5 bilhões em aumento de custos.

Foram 52.527 novos contratados desde 2004, um aumento de 32% desde o início da contagem. A multidão de servidores à disposição da Justiça Estadual no Brasil chega a 216 mil pessoas, o equivalente a toda a população da cidade de Americana, na região metropolitana de Campinas, SP.

Além desses quase 53 mil novos serventuários, há os juízes e desembargadores, que somam 11 mil a essa conta. Desde 2004, foram nomeados 1,4 mil novos magistrados, vejam o quadro abaixo:

Jeferson Heroico
Tabela Evolução das Justiças estaduais 2 - Jeferson Heroico

No ano passado, no estado de São Paulo, 92% dos gastos da Justiças Estadual foi com recursos humanos, o restante, foi para a aquisição de bens e serviços.

Os números mostram que essa massa de funcionários está mal distribuída. Na relação “magistrado por habitante”, o Espírito Santo é o estado que mais privilegia a população. São 13 magistrados a cada cem mil habitantes, já o estado de São Paulo tem 5,5 magistrados a cada cem mil habitantes. Paralelamente, não há significativos investimentos na informatização da estrutura do Judiciário, nem na adequada capacitação dos serventuários.

E essa realidade da deficiência estrutural deve ser confrontada o processo de judicialização da política, com o protagonismo do Poder Judiciário.

O aumento no número de processos trouxe novas receitas, mas mesmo com o aumento na arrecadação, apenas dois estados fecharam 2008 no azul. O Maranhão conseguiu arrecadar 19% a mais do que gastou, e o Tocantins, 3%.

O total arrecadado pelos tribunais em todo país foi suficiente para dar conta de apenas 27% de tudo o que foi gasto, ou seja, a sociedade deve pensar em mecanismos cidadãos e não judiciais de solução dos conflitos, pois não se produz riqueza nas cortes.

A busca excessiva de solução para questões juridicamente relevantes por meio do Judiciário leva ao ajuizamento de novos processos, tanto que apesar do inegável esforço dos cartórios de ofícios e dos magistrados, que aumentam 9% a cada ano a quantidade de sentenças proferidas, em 2004 eram 24 milhões de casos pendentes de julgamento em todas as Justiças Estaduais. No fim de 2008, eram 33 milhões.

Pensar sobre isso tudo só aumenta a minha crença de que as demandas que envolvam direitos privados e disponíveis deveriam ser resolvidas entre as partes e seus advogados, sem a necessidade sequer de homologação ou arquivamento do termo de ajuste pelo Judiciário e sem necessidade de serem reproduzidas estruturas e o modelo judicial, como as câmaras e tribunais arbitrais.

Acredito que, enquanto o Poder Judiciário não tratar a advocacia como função essencial integrante do sistema de distribuição da Justiça, todas as iniciativas de distribuição da Justiça nascerão fadadas ao retumbante fracasso, assim como não há legitimidade sem o envolvimento da sociedade civil.

Cito como exemplo a falência dos Juizados Especiais, local em que o cidadão teria acesso ao seu direito rápida e diretamente, sem a necessária colaboração do advogado. Não funciona assim, pois em praticamente todas as comarcas veem-se milhares e milhares de pequenas demandas, quase todas relativas a direitos patrimoniais e, portanto, privados e disponíveis, sendo conduzidas de forma equivocada, porque juiz não sabe conciliar. Juiz sabe dizer o Direito. Os advogados é que sabem conciliar e avaliar o risco e o custo de um processo.

No passado, esses processos eram, em sua grande maioria, resolvidos nos escritórios dos advogados sem o concurso da estrutura estatal. Ao advogado era dada a oportunidade de ser o primeiro juiz da causa, funcionado, na prática, como um filtro indispensável.

Acredito que a advocacia e a sociedade civil organizada deveriam receber parcela do poder jurisdicional, quando o conflito de interesses envolvesse exclusivamente direitos privados e disponíveis. Afinal, qual o interesse público em processos de reparação de danos, cobrança e execuções entre particulares, por exemplo? Nenhum, evidentemente. Não podemos esquecer que a Constituição Federal é organizada em Títulos, esses divididos em Capítulos, que são sistematizados em seções.

O artigo 133 da Constituição Federal está inserido na Seção III — que trata da Advocacia e da Defensoria — do Capítulo IV, que trata das funções essenciais à Justiça — o Ministério Público e a Advocacia —, do Titulo IV da Constituição, o qual trata “Da Organização dos Poderes”. Ou seja, apesar de todo esforço desenvolvido por parte do Poder Judiciário em desqualificar a advocacia, o artigo 133 da Constituição está lá e expressamente afirma que “o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

Estou, na realidade, cansado de assistir inerte às reiteráveis violações às garantias dos advogados no exercício do direito de defesa dos interesses e direitos de seus clientes. Quem vive a advocacia e da advocacia sabe a que estou me referindo, e sabe que esse é um dos efeitos da judicialização da política.

Não fosse real e significativo esse fato, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado não teria convocado, no último dia 2 de julho deste ano, audiência pública para debater o Projeto de Lei 83/08, que objetiva criminalizar a violação de qualquer uma das prerrogativas estabelecida no artigo 7º da Lei 8.906/94.

Mas o que vivenciamos parte da magistratura, do ministério público e das polícias, a parte mais conservadora e elitista, contra a aprovação do referido projeto. A OAB, de uma maneira geral, é tímida na defesa do projeto ou, no mínimo, no debate.

Lei Federal afirma que “não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público”, mas as diferenças de tratamento entre advogados e promotores são gritantes. Nas audiências na Justiça Federal, por exemplo, o Ministério Público senta-se à direita do magistrado. Um símbolo sobre o qual temos de refletir. E não é só. O Ministério Público pode ter acesso a todas as provas, mas nós advogados, mesmo com procuração, temos de requerer vistas ao “todo poderoso magistrado”, aquele mesmo que a lei federal diz que não subordina advogados.

Promotores e magistrados podem circular livremente pelos tribunais, no horário em que for preciso, enquanto nós advogados só podemos circular em horário de expediente, a todo o momento identificando-nos com a carteira profissional e com algum constrangimento, muitas vezes. O fato é que a advocacia está sob risco, e quando a advocacia está sob risco, a própria democracia está na berlinda, e isso, repito, é efeito colateral do processo de judicialização da política, que transborda, algumas vezes, para a politização da Justiça, ou do Poder Judiciário.

Há ainda um aspecto que o professor Adelmo Emerenciano[6], um dos melhores advogados da minha geração, ponderou e sobre o que passei a refletir. Para ele, há um erro de enfoque quando analiso a questão da judicialização e os caminhos para a solução e equilíbrio necessário entre os Poderes e a sociedade civil, pois a solução seria impossível pelos mecanismos internos do Judiciário, em razão de a causa ser externa ao sistema.

Ele exemplifica sua opinião listando questões que merecem atenção: a) o excesso de leis, que mostra um campeonato público entre parlamentares, com ranking de produção legislativa; b) o tamanho da Constituição, o que dispensa comentários; c) temas de ínfima importância sendo regulados por lei; d) o excesso de direitos, pois vivemos um tempo em que tudo é regulado, a sociedade civil está desaparecendo com o gigantismo do Estado e de suas estruturas, em detrimento da participação popular e das ações cidadãs; e) o Direito acaba tratando de temas distantes de sua fonte original: a liberdade, o patrimônio, a honra, os contratos, a vida etc; f) a vigência cultura do descumprimento e da impunidade, afinal, com tantas leis para respeitar, tudo é ou pode ser ilegal; g) o Poder Judiciário sendo tratado como um negócio, o que se verifica pela existência de enormes estruturas que vivem do gigantismo da Justiça, como livrarias, empresas de tecnologia, compadrio/nepotismo, festas, viagens, congressos etc; h) múltiplas fontes normativas além do legislativo: autoridades, agências reguladoras, ministérios, o Judiciário etc; i) a convivência com um Direito Administrativo do século retrasado, por meio do qual tudo tem que ser controlado, documentado, tornando a máquina pública lenta, onde “ninguém decide nada”, pois uma decisão que seja interpretada como inadequada ou lesiva expõe o agente público a “tomar tiros do MP”; j) convivemos com a ausência de conduta séria e responsável do Estado, que é o maior litigante e o maior causador de demandas judiciais. O professor Adelmo não deixa de ter razão.


[1] Repórter da revista Consultor Jurídico

[2] http://www.conjur.com.br/2009-ago-08/justicas-estaduais-processos-demais-gastam-arrecadam

[3]http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,brasil-assiste-a-judicializacao-da-politica-diz-tarso,356648,0.htm

[4] “Sentidos da Judicialização da Política: Duas Análises, Lua Nova No. 57

[5] Opinião do ministro Gilmar Mendes, citada em “Sentidos da Judicialização da Política: Duas Análises”, Lua Nova No. 57, p. 117.

[6] www.emerenciano.com.br

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