Desastre diplomático

Relação entre Brasil e Honduras não pode terminar bem

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3 de novembro de 2009, 16h57

Sob ameaça de ruptura, total ou parcial, de relações diplomáticas com o Brasil, o Governo hondurenho exige que o Estado brasileiro defina a situação jurídica de um seu nacional entrincheirado em espaço convencionalmente reservado a Missão Diplomática da responsabilidade deste. O nacional hondurenho de que se cogita é o ex-presidente de Honduras que foi sacado do poder em razão de decisão da Suprema Corte daquele país com o apoio do Poder Legislativo, das Forças Armadas e de grande parcela da população da República centroamericana.

A exigência não é desprovida de fundamento jurídico, haja vista o que consta na Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados(1951), a saber:

Artigo 31
Refugiados em situação irregular no país de refúgio

1. Os Estados Contratantes não aplicarão sanções penais aos refugiados que, chegando diretamente de território no qual sua vida ou sua liberdade estava ameaçada, no sentido previsto pelo art. 1º, encontrem-se no seu território sem autorização, contanto que apresentem-se sem demora às autoridades e exponham-lhes razões aceitáveis para a sua entrada ou presença irregulares.

Ora, o primeiro dever de uma Nação conveniada, mediante tratado ou avença internacionais, é cumprir os termos e enunciados que por meio deles ratifica. Trata-se da primeira lei de eficácia jurídica dos Tratados de Direito Internacional.

Do ponto de vista das relações entre Estados soberanos, o Estado brasileiro acreditado no Estado de Honduras, onde possui Missão Diplomática, terá de conferir àquele a quem acolheu em seus recintos ultraterritoriais certo e determinado status de Direito Internacional para lograr respeito em sua atitude perante o Concerto das Nações, e nada obstante as ideologias da vez que podem, vez ou outra, flexibilizar, embora não por muito tempo, o sentido da Ordem do Direito Internacional Público.

Assim não ocorrendo, como sucede no momento em que nem o ex-presidente Zelaya (a pessoa entrincheirada na Missão Diplomática brasileira acreditada em Tegucigalpa) pede asilo político ao Brasil e nem o Estado brasileiro lho concede ex-officio, a hipótese consubstancia simples situação anárquica, geratriz de perturbação da ordem interna e é, portanto, suscetível de repressão legítima pelas forças locais, ainda que a área a ser pilhada sirva de base diplomática a Estado estrangeiro. Nesse caso, o Estado estrangeiro terá abandonado seus compromissos diplomáticos de cumprir e fazer cumprir a Ordem Legal interna, e de jamais imiscuir-se em assuntos domésticos, resultando por ter denunciado, tacitamente, as credenciais que o habilitam, nos termos do Direito Internacional Público, a funcionar diplomaticamente além-fronteiras.

O presidente brasileiro e o seu chanceler, pelo visto, não estão sabendo lidar adequadamente com a situação posta e trabalham, quiçá, por mera afetividade ideológica, num instante em que a lógica do Cone Sul e das Américas, passadas as agruras da Guerra Fria, é saber quem terá sua hegemonia. O Brasil deverá pagar um preço por isso. Além do mais e ao que parece (esse é, todavia, um argumento que não se pode explorar por absoluta falta de conhecimento do Direito Interno do Estado hondurenho), a substituição do Governo de lá não implicou, rigorosamente, a quebra de sua Ordem Constitucional. Sobre isso, o meticuloso artigo de Lionel Zaclis.

Em relação à América Latina, o Brasil se comprometeu, pela dicção constitucional dita cidadã de 1988, a buscar a integração econômica, política, social e cultural de seus povos (Parágrafo único, artigo 4º), conforme uma já revogada referência da Constituição do Peru de 1979 (artigo 100), conquanto não reproduzida pela atual Constituição daquele país, promulgada em 1993. Ainda que não fosse por isso, tampouco estaria legitimado o Brasil a violar as regras clássicas da Ordem Internacional.

Desta vez, porém, a inconsequência parece não ter limites: o Governo brasileiro vem se posicionando ostensivamente contra a Suprema Corte, o Poder Legislativo e grande parcela da população hondurenha para, adicionalmente, tratar o Estado que acreditou o Brasil em seu território com desdém em face de normas consolidadas de Direito Internacional a que ambos estão submetidos e do acolhimento de alguém que, nos termos da legislação interna do Estado hondurenho, é um “fora da lei” e a quem o Brasil não o contemplou com nenhum tipo de tutela da mesma cepa normativa. A situação presente traduz apenas uma total, descabida e inteiramente dispensável afronta aos brios de uma pátria amiga.

Como dito, isso vai ter conseqüências. Não sem motivo, o Estado hondurenho já vem prometendo, em prazo certo, descredenciar a Missão Diplomática brasileira de seu território. Isso implica em ruptura de relações internacionais e as conseqüências dela decorrentes. Se vai levar a cabo essa promessa por razões de conjuntura, essa é uma outra história. Todavia, dispõe de suporte legal para tanto, ainda que os discursos ideológicos do momento possam estar em conflito e confundam, por isso mesmo, a melhor inteligência sobre o acontecimento versado neste artigo.

O Estado brasileiro, ao guarnecer, em sua Missão Diplomática, um nacional do Estado acreditado sem conceder-lhe tutela de Direito Internacional de qualquer natureza, ex-officio ou mediante pedido de proteção regulamentar (asilo político), viola de forma ostensiva o artigo 41, ítens 1 e 3, da Convenção de Viena para as Relações Diplomáticas (1961 – recepcionada no Brasil pelo Decreto nº 56.435, de 08/06/65), a saber:

Artigo 41
1. Sem prejuízo de seus privilégios e imunidades, todas as pessoas que gozem desses privilégios e imunidades deverão respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditado. Tem também o dever de não se imiscuírem nos assuntos internos do referido Estado.

3. Os locais da Missão não devem ser utilizados de maneira incompatível com as funções da Missão, tais como são enunciadas na presente Convenção, em outras normas de direito internacional geral ou em acordos especiais em vigor entre o Estado acreditante e o Estado acreditado.

Com efeito, nenhum Estado-parte de Tratado ou Convenção internacional pode estar em desacordo com o que subscreveram nessa condição. Sentido inverso é denúncia do Pacto e implica imediata exclusão de seu contexto normativo.

Ao fim, uma Missão Diplomática não pode agasalhar, pela CVRD, atividade diversa daquelas para as quais restou acreditada em território estrangeiro.

A resposta, ao que parece, veio mais rapidamente do que se imaginava: Honduras acaba de ameaçar o Brasil de retirar-lhe o status diplomático de sua missão ultraterritorial, embora isso não pareça que vá consolidar-se, sobretudo depois da visita que parlamentares brasileiros fizeram, em missão pacificadora, a Honduras. Confira-se no portal Uol.

Tecnicamente, porém, sabe-se o que isso pode significar, além da quebra das relações diplomáticas até então firmadas entre os dois países-partes: imediata invasão do prédio em que o ex-presidente Zelaya se encontra, sua prisão, julgamento e condenação exemplares, e a completa desmoralização do Brasil diante do Concerto das Nações. Não haverá invasão de marines norteamericanos e nem o Brasil vai fazer coisa alguma, além de espernear pela dicção de nosso popularíssimo presidente.

Nem o Chavez foi capaz de se meter numa trapalhada dessa magnitude, por isso que desastrosa.

Oxalá estas idéias não cheguem a se materializar em seu paroxismo, e que o imbróglio versado no texto possa encontrar um final feliz para todos, mas está difícil. Honduras acaba de propor uma queixa formal contra o Brasil no Tribunal Internacional de Haia, justamente por ingerência deste nos negócios internos daquele. Isso pode não terminar bem para o Brasil.

 

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