Sigilo preservado

TJ-SP exige rigor para autorizar grampo

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2 de novembro de 2009, 8h50

O Tribunal de Justiça de São Paulo está revendo sua posição sobre casos que envolvem renovação seguida de prazos de interceptações telefônicas, principalmente quando a matéria trata de autorização genérica de grampos. É como se alguns desembargadores retornassem sobre seus próprios passos. Há um ano, essa posição era minoritária, hoje já recebe a adesão até de julgadores reconhecidamente rigorosos. Numa linguagem menos formal se diz na Seção Criminal que quem não muda de camisas, nem de idéias, é porque não tem nem umas nem outras.

Esses julgadores defendem que estão ocorrendo abusos. Para alguns, o Judiciário está enveredando pela banalização da autorização judicial para escutas telefônicas. Eles sustentam que o chamado grampo telefônico foi criado como último recurso da investigação policial – principalmente para fazer frente às organizações criminosas. Mas, de acordo com os defensores da nova visão, estão sendo usadas – com autorização judicial – para iniciar apuração de eventuais crimes.

“São inúmeros os casos de juízes que concederam autorização apenas com base em expedientes policiais”, afirma o desembargador Penteado Navarro, membro do Órgão Especial do TJ paulista. “Isso é preocupante”, emenda o desembargador que também atua na 9ª Câmara Criminal e presidiu o extinto Tribunal de Alçada Criminal (Tacrim).

Navarro destaca que o combate à criminalidade organizada exige um instrumento eficaz como a interceptação telefônica, mas, para ele a banalização desse meio de investigação é um abuso intolerável em um Estado de Direito.

O desembargador Pinheiro Franco, da 5ª Câmara Criminal, seguiu o mesmo entendimento no julgamento do pedido de Habeas Corpus preventivo apresentado por um gerente da Oi contra decisão da juíza da 2ª Vara criminal de Botucatu. A magistrada concedeu autorizações genéricas de quebra de sigilo para que policiais civis, por meio de senhas, tivessem acesso a dados de cidadãos, com o objetivo de investigação.

A juíza atendeu pedido feito em representação de delegados do Dise (Delegacia de Investigação de Entorpecentes) para suposta investigação de atentado que destruiu o prédio onde funcionava aquela delegacia. O atentado acontecera seis meses antes. No entendimento da 5ª Câmara Criminal, a reclamação dos delegados não tinha como objetivo a elucidação desse delito, mas a reorganização do Setor de Inteligência Policial.

A juíza justificou sua decisão afirmando que esse procedimento tem se mostrado um importante meio de investigação e instrumento eficaz para elucidar crimes e combater a criminalidade organizada. Alegou também a necessidade de rapidez nas investigações.

Ordem fundamentada
O desembargador discordou de seus argumentos. Reconheceu que a o direito à inviolabilidade não é absoluto, mas que a quebra desta só pode se dar por ordem judicial fundamentada em fato concreto. A turma julgadora entendeu também que a rapidez não pode justificar prática ofensiva ao devido processo legal, incluindo a fase de investigação, até para que se possa tornar válida a colheita de indícios e provas.

“E não há nos autos indicação de que, as ordens emanadas da alta autoridade Judiciária [a juíza] tenham origem em fatos concretos, de sorte que o mandamento genérico acaba por violar, sim, o sigilo que cobre os dados cadastrais do cidadão, ofendendo a inviolabilidade da intimidade”, afirmou Pinheiro Franco.

A mesma posição foi defendida pelo desembargador Ericson Maranho, da 6ª Câmara Criminal, ao julgar matéria semelhante. “A quebra de sigilo, pelo abalo que causa à intimidade, só se permite em hipóteses em que se sobreponha o interesse público, devendo a decisão apresentar-se especificamente fundamentada, a fim de que não se exponham clientes que envolvimento algum tenham com quaisquer investigações“, disse o desembargador.

A adesão à nova tese no Judiciário paulista se consolidou depois que ganhou um aliado de peso, no julgamento do Habeas Corpus 76.868, capitaneado pelo ministro Nilson Naves, da 6ª Turma do STJ. Naquele julgamento, o ministro afirmou que de acordo com a Lei 9.296/96, a interceptação não deve ultrapassar o limite de 15 dias, sendo renovável por igual período, quando comprovada a necessidade. Para Nilson Naves, período superior ao estabelecido pela norma, quando não fundamentado e justificado, não é investigação, mas sim devassa.

Quebra total
Em abril deste ano, a 9ª Câmara Criminal do Tribunal paulista disse que ordem ilegal não se cumpre e concedeu salvo conduto a uma gerente da Brasil Telecom. Ela se negou a cumprir ordem judicial de quebrar o sigilo telefônico de todos os usuários da companhia em 1309 municípios do interior paulista, além de clientes da empresa de outros cinco Estados e do Distrito Federal.

Esta semana de novo a 9ª Câmara se debruçou sobre o mesmo tema. Desta vez o julgamento envolveu pedido de HC de um gerente da TNL PCS S/A, nome oficial da operadora Oi no estado de São Paulo. A empresa uma das principais provedoras de serviços de telefonia móvel e pioneira no uso de tecnologia GSM no Brasil. 

O gerente da operadora recebeu o ofício judicial  95/2009, que determinava a quebra do sigilo telefônico de todos os clientes da empresa pelo prazo de seis meses. O pedido foi feito pela Delegacia de Investigação sobre Entorpecentes e autorizado pelo juiz corregedor da Polícia Judiciária de Sorocaba. O grampo serviria para ajudar a Polícia a apurar supostos crimes de seqüestro e cárcere privado. 

Chamado pelo Tribunal de Justiça para explicar uma decisão tão ampla e genérica de autorização de quebra de sigilo telefônico, o juiz disse que a Polícia pediu a habilitação de senha junto à Oi. Segundo ele, sua autorização se restringiu ao conhecimento da senha, sem permissão de acesso ao histórico de chamadas feitas ou recebidas pelos clientes da empresa. Explicou que a senha dá à Polícia apenas acesso a dados cadastrais dos assinantes e localização e ERBs (Estações Rádio-Base) e que sua decisão, portanto, não constituiria quebra de sigilo telefônico. 

A turma julgadora não aceitou as justificativas do juiz nem os argumentos do Ministério Público em defesa da medida. “A ordem [Habeas Corpus] merece ser concedida, porquanto a autorização de quebra de sigilo telefônico contida no ofício emanado da autoridade apontada como coatora é extremamente ampla, genérica e com prazo muito além do permitido”, afirmou Penteado Navarro, relator do recurso apresentado pelo gerente da Oi. 

Lei do grampo
O grampo telefônico é regulamentado pela Lei 9.296/96. A norma determinou que a quebra de sigilo tem duração de 15 dias, mas prevê uma renovação pelo mesmo prazo, desde que seja comprovada que este meio de prova na investigação criminal é indispensável. Para isso, por ser um medida de exceção, o juiz deve especificar e individualizar os destinatários do grampo e fundamentar sua decisão. 

“Ora, inexistindo na lei prazo superior a 30 dias, não há como admitir que a interceptação telefônica se prolongue pelo período de seis meses, como autorizado pelo magistrado de primeiro grau”, completou o relator.

A tese apresentada pela defesa, a cargo dos advogados Elisa Lima Alonso, Rodrigo Bittencourt Mudrovitsch e Raquel Botelho Santoro era a de que a ordem judicial é abusiva, pois não individualizou as pessoas que teriam seus telefones interceptados. Esse método, no entendimento dos advogados, viola a Constituição Federal,que garante o sigilo das comunicações. 

Ainda de acordo com a defesa do gerente da Oi, o juiz de Sorocaba não fundamentou a necessidade da medida de exceção, principalmente por conta de sua amplitude e generalidade. Os advogados sustentaram que era lícita a decisão de seu cliente de desobedecer a ordem judicial que não tinha amparo legal e pediu ao Tribunal de Justiça que reconhecesse a desnecessidade do cumprimento. 

O Ministério Público paulista defendeu que o prazo legal de 15 dias pode ser renovado por igual período, conforme a lei, mas que não existe restrições quanto à quantidade de prorrogações. Segundo o MP, há precedentes nesse sentido tanto no Tribunal de Justiça como no STJ. 

Em abril, a mesma 9ª Câmara Criminal concedeu HC preventivo para uma gerente da Brasil Telecom que se negou a cumprir ordem judicial de quebrar o sigilo telefônico de todos os usuários da companhia em 139 municípios do interior paulista, além dos clientes de outros cinco estados e do Distrito Federal. 

Além de conceder o salvo conduto, a turma julgadora cancelou o decreto do juiz corregedor da Polícia Judiciária de São José do Rio Preto (no noroeste paulista) por entender que ele era ilegal e absurdo. A ordem do grampo partiu do juiz Robledo Mattos de Moraes, de São José do Rio Preto, e dava poder absoluto ao delegado de São José do Rio Preto que presidia a investigação. 

O decreto determinava que a empresa entregasse à Polícia os dados cadastrais dos assinantes junto com os CPFs, os extratos telefônicos de ligações feitas e recebidas em qualquer período solicitado, o rastreamento em tempo real de estações de rádio (ERB), o histórico das chamadas, além de dados dos IPs requisitados pela autoridade policial. 

O decreto judicial atendeu pedido do delegado Guerino Solfa Neto, da Unidade de Inteligência Policial do Deinter-5, de São José do Rio Preto, e do Ministério Público que investigam a atuação de organizações criminosas e o tráfico de drogas em 139 municípios da região. A Polícia queria ter acesso às senhas gerais de telefones fixos e móveis de usuários de 16 companhias de telefonia com atuação nos estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina, além do Distrito Federal. 

A gerente regional da Brasil Telecom, Andréia da Silva Frotta, que responde pelos estados de Goiás e Tocantins e pelo Distrito Federal, se negou a cumprir a ordem do juiz. A defesa da gerente, a cargo da advogada, Elisa Lima Alonso, sustentou que o ofício do juiz corregedor, encaminhado à empresa, violava a privacidade dos usuários e a Lei Geral das Telecomunicações (Lei 9.472/97). Alegou, ainda, que seria impossível a quebra de sigilo de forma genérica, sem individualização. Temendo responder a processo civil, criminal e administrativo, a gerente entrou com pedido de HC preventivo alegando a licitude da desobediência.

Império do abuso
Em sua decisão, o Tribunal paulista considerou a ordem judicial genérica e com prazo que viola a norma que autoriza interceptações telefônicas. “Esse caso é emblemático, pois retrata o abuso que impera hoje na nação de sem justificativa, bisbilhotar a vida das pessoas”, disse o desembargador Penteado Navarro. “A Justiça não pode permitir que se instale no país um estado policial em nome da defesa do Estado”, completou o presidente da 9ª Câmara Criminal, desembargador Souza Nery

O desembargador disse que a lei obriga que a autoridade policial identifique quais telefones quer ouvir e explique os motivos do pedido. Segundo ele, é amparada em ordens judiciais genéricas e sem limites que vem se cometendo toda ordem de abusos contra o cidadão. 

“É dessa maneira que se faz com que as escutas telefônicas atinjam até as mais altas autoridades do país, como ministros do Supremo, senadores, deputados e ministros de Estado”, completou Penteado Navarro, que abriu divergência, com o relator. Segundo ele, não é possível permitir que as interceptações fujam dos limites da razoabilidade. 

“Ordem ilegal não se cumpre”, ressaltou o desembargador Souza Nery, que decidiu o julgamento como terceiro juiz. Ele destacou a atitude da gerente da Brasil Telecom que se rebelou contra o decreto do magistrado de São José do Rio Preto. “Se anteriormente outras pessoas tivessem tomado a mesma atitude [da gerente] não teríamos assistido os escândalos de grampos telefônicos patrocinados por autoridades federais”, concluiu Souza Nery.

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