Judiciário pensante

Juízes estudam impacto das decisões

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28 de março de 2009, 8h20

No final do julgamento em que decidiram manter a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, os ministros do Supremo Tribunal Federal passaram a discutir como seria a execução da decisão. Os julgadores mostraram ter consciência de que era preciso estabelecer regras e fixar diretrizes para que o cumprimento da decisão não provocasse conflitos.

É isso que a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura (Enfam), criada com a Emenda Constitucional 45/04, vem tentando fazer com os juízes e desembargadores: fazê-los decidir com um olho nas regras legais e outro no que irá acontecer na sociedade por conta da decisão.

A Enfam ministrou, de 23 a 25 de março, em Brasília, o curso Impacto Econômico e Social das Decisões Judiciais. Quarenta juízes dos 26 estados do país e do Distrito Federal assistiram às aulas do desembargador Rogério Gesta Leal, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

“O juiz há de pensar muito, ao dar uma decisão, na repercussão da sua sentença no campo econômico”, disse o ministro Nilson Naves, diretor-geral da Enfam, à revista Consultor Jurídico. A tarefa de fazê-los levar em conta todos os aspectos sociais e econômicos, contudo, não é tão simples. A maior parte dos juízes se mostra aberta às novas ideias e aceita o fato de que é necessário levar em conta os reflexos sociais e econômicos da decisão, mas há focos de resistência.

Línguas diferentes

Para o desembargador Leal, a expressão “resistência” não é correta. O que há, para ele, é um estranhamento natural entre duas ciências diferentes, que o curso da Enfam procura romper. “Economia e Direito têm códigos lingüísticos distintos, abordagens e percepções do mundo diferentes. É natural que haja certa dificuldade de comunicação”, justifica.

O desembargador afirma que, com os cursos, pode-se aproximar a linguagem do Direito, ciência social, com a da Economia, que é ciência exata e política ao mesmo tempo. Rogério Leal elaborou uma apostila de mais de cem páginas com diversos exemplos para conscientizar os magistrados da importância de considerar fatores externos.

Entre os exemplos, citou decisão da Justiça Federal do DF que, em 2003, deu liminar para suspender a aplicação do IGP-DI como índice de reajuste das tarifas do serviço de telefonia fixa. A liminar mandava as operadoras aplicarem o IPCA, índice menor. O caso chegou ao STJ, que decidiu cassar a liminar e restabelecer o índice de reajuste original.

A justificativa para cassar a decisão foi exatamente a de que a mudança do índice acertado quando foi feita a concessão do serviço público geraria insegurança jurídica, afastando investidores e aumentando o risco-Brasil. Por outro lado, os ministros sabem que o reajuste seria cobrado de alguma outra forma, já que a arrecadação estava prevista nas contas feitas quando as concessionárias decidiram investir. Questão de enxergar a realidade.

Outro exemplo usado no curso foi a enxurrada de liminares suspendendo a contribuição dos servidores inativos prevista na Emenda Constitucional 41/03, da Reforma da Previdência. Durante as férias forenses de julho de 2004, o então presidente do STF, ministro Nelson Jobim, cassou nada menos do que 30 liminares que suspendiam a cobrança dos 11% dos aposentados nos estados.

O efeito multiplicador das decisões dos Tribunais de Justiça e a consequente ameaça de lesão à ordem administrativa e às finanças públicas fundamentaram a decisão de Jobim. A contribuição foi, mais tarde, julgada constitucional pelo Plenário do Supremo.

Coletivo x individual

As discussões sobre os impactos das decisões judiciais sempre contrapõem o direito individual e o direito coletivo. Nas áreas de meio ambiente e saúde, os debates ganham contornos mais pessoais. A reação de juízes quando foi abordado o tema direito à saúde mostrou que a área é uma das mais sensíveis.

“Quando eu dou liminar para garantir o medicamento de um paciente, tenho de ter a consciência de que posso matar outros dez”, provocou o desembargador Rogério Leal. A reação não tardou. Pelo menos cinco juízes ocuparam o microfone para justificar porque davam liminares para garantir os medicamentos.

O desembargador afirmou que a provocação é proposital para que os juízes venham para o debate. A preocupação é deixar clara a ideia de que todo direito social, como o direito à saúde, é coletivo. Ele se torna individual por declinação. Não é o caso de se negar o medicamento ou o tratamento, mas dá-lo quando for realmente necessário, como nos casos de risco de morte.

“O problema é que a judicialização do debate sobre a saúde só tem sentido naqueles casos em que a periclitação da vida é tal que se impõe esta intervenção. Caso contrário, a satisfação de um problema imediato poderia inviabilizar centenas de outros tão importantes e legítimos quanto este, haja vista que os recursos financeiros e materiais para tanto, é inexorável, são finitos”, ensina Leal.

Trocando em miúdos, o dinheiro para pagar um remédio de R$ 50 mil vai sair do orçamento público. Inevitavelmente, esse dinheiro deixará de atender a necessidade de outras tantas pessoas. “O que se pede é que o juiz pesquise para ver se existe um medicamento com o mesmo efeito, que custe menos. Não precisa deixar de dar o remédio, mas minimizar o impacto no orçamento da saúde, que já é precário”, afirma o desembargador.

Qualidade da decisão

Um dos focos dos cursos da Enfam é melhorar a qualidade das decisões e da gestão das varas e tribunais. No quesito sentenças, o objetivo é mostrar aos juízes que, quanto mais detalhada a decisão, menores são as chances de ela ser descumprida ou de serem interpostos embargos de declaração.

“É necessário aprimorar permanentemente as razões de justificação e fundamentação da decisão judicial para que ela tenha essa dimensão de ressonância social e que sirva, de fato, para pacificar as relações sociais”, afirma Rogério Leal.

No curso, o juiz é instigado a esmiuçar o alcance de sues julgados para que não deixem dúvidas às partes sobre o que tem de ser feito. Isso passa pela clareza gramatical e de redação, até a indicação, da forma mais abrangente possível, de como a sentença tem de ser executada. Exatamente como está fazendo o STF no caso Raposa Serra do Sol.

O Impacto Econômico e Social das Decisões Judiciais foi o terceiro Curso de Multiplicadores promovido pela Enfam. A ideia é a que de os juízes que participam das aulas espalhem o conhecimento adquirido nos locais onde atuam. O primeiro curso foi sobre a Lei Maria da Penha e o segundo, sobre Mediação e Arbitragem.

Para o ministro Nilson Naves, a Escola tende a formar juízes humanistas e com visão ampla dos conflitos sociais que são responsáveis por pacificar. Em tempos de autoridades cada vez mais messiânicas, a iniciativa vem em muito boa hora.

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