Raposa Serra do Sol

STF discute parâmetros para demarcação de terras

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18 de março de 2009, 21h59

Mais do que decidir pela manutenção da demarcação das terras da Raposa Serra do Sol, em Roraima, o julgamento que termina nesta quinta-feira (19/3) no Supremo Tribunal Federal deverá definir diversos parâmetros que devem ser levados em conta pelo governo para a criação de novas reservas indígenas. Nesta quarta, a análise da questão foi suspensa depois de 11 horas de julgamento.

“Depois desse julgamento, a questão indígena não será mais a mesma; ganhará uma nova dimensão institucional”, afirmou o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, quase ao final da sessão. “O processo de demarcação é uma coisa muito séria para ser tratada apenas pela Funai”, completou.

Até agora, nove ministros votaram por manter a Portaria 534/05 do Ministério da Justiça, que determina a demarcação contínua da área. A demarcação foi homologada pela Presidência da República em 2005. Apenas o ministro Marco Aurélio, que leu seu voto por cerca de seis horas, votou por anular a demarcação.

Nesta quinta, a questão será retomada com o voto do ministro Gilmar Mendes. Depois, os ministros discutirão as questões preliminares levantadas por Marco Aurélio e, em seguida, os reflexos da provável decisão de manter a demarcação — como a saída dos arrozeiros da área.

O julgamento foi retomado nesta quarta depois de ser adiado por duas vezes. Em 27 de agosto de 2008, quando o relator, ministro Carlos Britto, votou pela manutenção integral da Portaria 534/05, o ministro Menezes Direito pediu vista do processo. No dia 10 de dezembro passado, Direito trouxe seu voto. Então, o ministro Marco Aurélio pediu vista.

Processo viciado

Nesta quarta, Marco Aurélio retomou o julgamento com um voto minucioso, de 121 páginas — clique aqui para ler. Primeiro, o ministro levantou uma série de omissões na ação popular em trâmite no Supremo. De acordo com Marco, no curso da ação, foram deixadas de lado diversas regras que têm de ser levadas em consideração para que seja respeitado o devido processo legal.

“O Supremo tem a guarda da Constituição e não pode despedir-se desse dever, imposto de forma expressa pelo Constituinte de 1988, sob pena de a história cobrar-lhe as consequências da omissão, de comprometimento da própria credibilidade”, afirmou.

O primeiro vício processual apontado pelo ministro foi a falta de citação do presidente da República e do ministro da Justiça no processo. Segundo Marco Aurélio, a citação da Advocacia-Geral da União desde o início da ação não dispensa a intimação dessas outras duas autoridades — leia aqui texto sobre as questões preliminares.

No mérito, o ministro defendeu que deveria ser feita uma nova ação administrativa demarcatória, na qual fosse observada uma série de parâmetros propostos por ele. Segundo Marco Aurélio, antes de demarcar as terras, é preciso ouvir todas as comunidades indígenas, posseiros e titulares de domínio na área.

O ministro também entende que deve ser feito levantamento antropológico e topográfico para definir a posse indígena, “tendo-se como termo inicial a data da promulgação da Constituição Federal, dele participando todos os integrantes do grupo interdisciplinar, que deverão subscrever o laudo a ser confeccionado” — leia aqui texto sobre o mérito do voto do ministro.

Discussão em plenário

Marco Aurélio não poupou críticas à maioria que vem se formando na Corte, pela demarcação contínua. Tachou a visão de romântica e defendeu que a miscigenação não justifica que haja territórios para índios e não-índios.

Isso fez com que, depois que terminasse de votar, o ministro Carlos Britto, relator da ação, pedisse a palavra para reforçar os argumentos de sua decisão pela demarcação contínua da reserva indígena. Britto disse que os principais obstáculos levantados por Marco Aurélio foram ultrapassados por seu voto e pela exposição do ministro Menezes Direito. E que as questões de "conteúdo periférico" não precisariam ser respondidas.

A afirmação irritou o ministro Marco Aurélio: "Respeite meu voto. Não acho que seja adequado criticar o voto alheio. Vossa Excelência classificou meu voto de periférico, como se eu tivesse aqui delirado". Britto respondeu: "Vossa Excelência se referia a quem quando disse que a questão foi tratada de forma lírica, romântica?". A discussão se seguiu.

MarcoNão se sinta atingido pelo meu voto.
BrittoEu peço que o senhor ouça minhas razões, já que eu ouvi o senhor por quase seis horas.
MarcoPosso me retirar se o senhor quiser.
BrittoNão. De forma alguma.

Enquanto o ministro Carlos Britto expunha as razões pelas quais mantinha o seu voto, o ministro Marco fazia intervenções. Então, quem se irritou foi Britto.

Britto — Vossa Excelência fica fazendo o contraditório. Estamos em uma espécie de movimento ioiô, de estica e puxa. Deixe-me, por favor, concluir meu raciocínio.
Marco — Por que Vossa Excelência está tão preocupado com o voto discrepante, já que tem o apoio de outros sete ministros? Eu não retruco, não me estendo quando voto. Depois do meu voto, Vossa Excelência pediu a palavra para quê? Para retrucar.
Britto — Não. Não se trata de retrucar. Estou expondo os motivos pelos quais mantenho meu voto. E acho que fiz a leitura correta da questão.
Marco — Ainda bem que Vossa excelência apenas acha.
Britto — Vossa excelência não entendeu meu voto. Estou aqui a confirmar, data vênia, o acerto das posições que sustentei perante a corte. Não há nenhuma contradição no meu voto. Não é romantismo, não é lirismo, é interpretação de direito constitucional positivo.

Condições para demarcar

Na continuação do julgamento nesta quinta os ministros se debruçarão — depois do voto de Gilmar Mendes — sobre as 18 condições (leia abaixo) fixadas pelo ministro Menezes Direito para as demarcações das terras indígenas. As ressalvas se referem à pesquisa e lavra de riquezas minerais e à exploração de potenciais energéticos, além de questões envolvendo a soberania nacional.

Direito criou uma espécie de diretriz sumular, que a União deve seguir quando analisar as outras duas centenas de casos de demarcação de terras indígenas que ainda estão à espera de definição. Além do relator, seguiram o voto de Direito os ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Celso de Mello. O ministro Joaquim Barbosa votou pela demarcação contínua sem as 18 restrições propostas.

Conheça as condições impostas por Menezes Direito para a demarcação:

1 — O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser suplantado de maneira genérica sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o interesse público da União na forma de Lei Complementar.

2 — O usufruto dos índios não abrange a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional;

3 — O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra de recursos naturais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional;

4 — O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, dependendo-se o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;

5 — O usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;

6 — A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;

7 — O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;

8 — O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;

9 — O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;

10 — O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pela administração;

11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;

12 — O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;

13 — A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não;

14 — As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade jurídica ou pelos silvícolas;

15 — É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa;

16 — Os bens do patrimônio indígena, isto é, as terras pertencentes ao domínio dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena isenção tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros;

17 — É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;

18 — Os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.

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