Supremo etnocentrismo

STF extrapolou constitucionalidade no caso Raposa

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18 de março de 2009, 10h38

O último dia 10 de dezembro foi mais uma data histórica para o Brasil, para os direitos indígenas e para os Direitos Humanos. Isso não apenas por ser o 60º aniversario da Declaração Universal dos Direitos Humanos: a "saga" da Raposa Serra do Sol teve mais uma etapa crucial do capítulo judiciário em andamento na Suprema Corte do país. Mesmo não sendo formalmente a final, a etapa do 10/12/08 marcou a definição política do embate central, com a maioria (8) dos 11 ministros do STF confirmando a constitucionalidade da demarcação da Terra Indígena em área contínua.

A vitória obtida embasa a legítima satisfação de índios da Raposa, aliados e simpatizantes. Porém, o risco de se tratar, mais do que outras vezes, de uma vitória pírrica, não foi afastado definitivamente. Pelo menos duas das orientações manifestadas pelo STF no último dia 10 de dezembro do ano passado preocupam neste sentido.

A primeira, que podemos definir de conjuntural, refere-se à questão do porque, apesar da maioria dos ministros terem votado pela imediata derrubada da liminar que, desde abril, suspendera a operação da PF de retirada dos arrozeiros, o presidente do STF resolveu adiar o cumprimento desta decisão, mantendo uma liminar (já estranhamente concedida) que prorroga de fato uma ilegalidade já conclamada? Todos sabem que tempo é dinheiro, e para quem lucra com atividades ilegais, cada demora da Justiça representa um faturamento extra às custas da sociedade toda. Porque então quem, no seu discurso de posse advertiu tão duramente os movimentos sociais que o STF zelaria para o pleno e inflexível respeito da legalidade, resolveu conceder a latifundiários invasores e criminais ambientais, as receitas de mais uma safra? Não caberia, ao Ibama, uma operação "grão pirata"?

A segunda questão, mais estrutural, e por isso mais preocupante, configura-se em parte como fruto da distorção construída em cima do conflito da Raposa Serra do Sol, pelos setores anti-indígenas do país. A realidade do conflito vê, de um lado quem, há 3 décadas, incansavelmente reclama apenas o cumprimento da Lei, e do outro quem, desafia abertamente o Estado de Direito, apelando a todo tipo de falsidade e fantasia para disfarçar interesses econômicos oligárquicos. Esta realidade foi ocultada pela representação político-mediática (que envolveu atores políticos diversos numa comum frente anti-indígena, transversal com relação aos tradicionais divisores direita-esquerda ou governo-oposição) de um conflito eminentemente político, no qual os dois lados teriam interesses e argumentos igualmente legítimos.

Fazendo uso instrumental de ações judiciárias formalmente legítimas, reivindicações ilegais e inconstitucionais ganharam, no próprio STF, um inesperado espaço de legitimidade. Neste clima, o STF se viu investido da missão de "mediar o conflito", de tal forma que o foco analítico dos ministros foi extrapolando a mera constitucionalidade dos autos do processo, até abordar questões de natureza mais eminentemente política, com deslizes de cunho etnocêntrico em contraste com o espírito pluralista e multicultural da Carta Magna. Isso apareceu de forma clara no voto do ministro César Peluso, que lamentou não ter encontrado qualquer vicio de constitucionalidade no procedimento de demarcação da Raposa Serra do Sol em área contínua, quase se desculpando por não poder, no respeito da Constituição que a toga de Supremo Ministro lhe impõe, dar seguimento às posições contrárias, e marcadamente etnocêntricas, que expressou.

A orientação, influenciada por esta missão de "mediar o conflito", como se, frente à inevitabilidade da leitura constitucional a favor dos índios, fosse politicamente necessário encontrar um ponto de equilíbrio que satisfizesse também o outro lado, se cristalizou no voto do Ministro Menezes de Direito, e em suas 18 condicionantes, preliminarmente endossadas pela maioria dos demais ministros que já manifestaram seu voto. Enquanto algumas delas apenas lembram dispositivos constitucionais já existentes, outras inovam no sentido de restringir o quadro constitucional de garantia dos direitos indígenas. Se provavelmente a própria constitucionalidade das restrições propostas ainda será objeto de debate na retomada do processo no STF, não parece haver dúvidas do que algumas delas tendem a ocupar um espaço e um detalhamento de competência do poder legislativo.


Em particular, três pontos foram objeto de um total de 6 condicionantes restritivas:

1) Fica introduzido um veto à ampliação da terra indígena já demarcada, por meio da condicionante 17; o usufruto indígena dos recursos naturais fica também condicionado:

2) Aos interesses da Política de Defesa Nacional, incluindo atuação das Forças Armadas, da Polícia Federal, e empreendimentos de cunho estratégico, como instalação de bases, unidades e postos militares, expansão da malha viária, exploração de alternativas energéticas e resguardo de riquezas, independentemente de consulta às comunidades indígenas e à Funai, conforme as condicionantes 5 e 6;

3) Nas áreas de sobreposição de Unidades de Conservação, às restrições definidas pelo ICMBio com a participação apenas opinativa de comunidades indígenas e Funai, conforme especificado nas condicionantes 8 a 10 (grifos nossos).

Comentaremos rapidamente os primeiros dois pontos, para depois analisar o terceiro.

Com relação ao primeiro, não está claro se a condicionante 17 se aplicaria apenas para o caso específico da TI Raposa Serra do Sol ou, de forma mais geral, para outras terras indígenas. Neste segundo caso ela reduziria drasticamente as possibilidades de compensar o passivo fundiário histórico acumulado para com os povos indígenas. Se em muitos casos, especialmente na Amazônia, onde o processo de ocupação não-indígena é mais recente, desde 1988 muitas terras foram demarcadas de forma adequada às necessidades de reprodução física e cultural também das gerações indígenas futuras, em muitos outros casos e regiões de ocupação mais densa e antiga, as áreas inicialmente demarcadas se revelam reduzidas e insustentáveis frente às efetivas necessidades de sobrevivência de populações que, felizmente, nas últimas décadas reverteram processos demográficos e culturais que antes ameaçavam sua extinção.

Um congelamento instantâneo de recentes processos de reconhecimento de direitos territoriais indígenas corre o risco de deixar no campo situações de extrema assimetria, além de estimular a re-explosão de conflitos por enquanto de baixo das cinzas na espera paciente que os tempos político-administrativos façam valer direitos e princípios sancionados na Constituição.

Por outro lado, o direito de nosso modelo sócioeconômico-cultural de continuar se expandindo predatoriamente, sem limites pré-fixados, nunca é questionado, apesar da evidencia de limites planetários já alcançados. Porque não pré-fixar um limite máximo de hidroelétricas, rodovias, e outros empreendimentos, que ameaçam e impactam terras e povos indígenas? Ou um teto ao nosso crescimento econômico, tão ecologicamente voraz e socialmente injusto? Ou à concentração da propriedade privada da terra, que a própria Carta Magna submete a sua função social? Estes são nossos próprios tabus, opostos aos dos índios… Será que um dia v amos conseguir superá-los, ou pelo menos relativizá-los?

No segundo ponto o que preocupa é a negação da necessidade de qualquer consulta às comunidades ou ao órgão indigenista para diversas atividades direta ou indiretamente vinculadas à política de defesa nacional e/ou qualificadas como de cunho estratégico. Na medida em que esta qualificação depende de critérios políticos, a abrangência das atividades e empreendimentos que ficariam potencialmente isentos de consulta parece extremamente flexível e traz um risco de arbitrariedade não desprezível.

Lembramos que o direito à consulta prévia, implicitamente previsto pelo arcabouço constitucional de proteção do direito à autonomia sócio-cultural dos povos indígenas, está explicitamente sancionado pela Convenção 169 da OIT, que o Brasil assinou e ratificou em 2004, conferindo-lhe portanto plena validade interna (decreto 5.051 de 19/04/2004). Apesar de ainda incipiente, a aplicação do direito à consulta previa já se confronta com o ingente passivo histórico, em boa parte herança do período militar, no qual o desenvolvimentismo autoritário pisoteava sistematicamente os direitos das populações locais e autóctones.


Hoje, as primeira medidas nesta linha já aparecem, mesmo antes de sua validação oficial pelo STF: o ministro da Defesa e ex-presidente do STF, Nelson Jobim, anunciou um plano para dobrar a presença militar nas áreas indígenas de fronteira, detalhando uma lista de locais para instalação de novas guarnições militares, escolhidos sem consulta aos índios. Segue de perto o risco tangível de empreendimentos "estratégicos" serem licenciados às custas dos direitos indígenas, no rumo claramente trilhado pela proposta do Ministro Mangabeira Unger de criar um "regime de exceção" para o licenciamento ambiental das obras do PAC na Amazônia.

Se as isenções de consulta serão aceitas pelo voto final do STF, o caminho ficará liberado de longas, desconfortáveis e complexas negociações junto a índios que tanto atrapalham o avanço do progresso sobre a região. O controle do desmatamento pode esperar, ou se concentrar em unidades de conservação, negociadas em troca das licenças. Plantas e bichos não protestam, os índios vão encontrar outros canais para serem ouvidos.

Se vingar também o terceiro ponto, objeto das condicionantes 8 a 10, esta solução também será facilitada excluindo os índios das Unidades de Conservação sobrepostas a suas terras. A lógica etnocêntrica do raciocínio é impecável: posto que as áreas de floresta que ainda merece conservar na Amazônia estão por mais da metade em terras indígenas (as de fora nós já acabamos em boa parte!), nada de mais lógico que tomar dos índios o que eles conseguiram usar de forma sustentável até hoje para impor nossos modelos de conservação, dos quais eles tem que ficar fora.

Sobre o tema da conservação da natureza, eis as condições propostas (grifos nossos):

8 – O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio);

9 – O ICMBio responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;

10 – O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pela administração.

Os três itens remetem à sobreposição de Unidades de Conservação a Terras Indígenas, com orientações gerais, a partir do caso do Parna Monte Roraima, cuja área (116.000 ha.) está 100% sobreposta à Raposa Serra do Sol, representando cerca de 7% dela. Com relação ao caso especifico, as propostas denotam desconhecimento da realidade, parecendo inspiradas mais por realidades peri-urbanas, como a do Parque Nacional de Brasília, cuja aparência intocada de um lado contrasta com o lado oposto, densamente urbanizado, no olhar de quem percorre as rodovias que separam a UC da área urbana da capital federal.

Não há, na região do Parna Monte Roraima, nem rodovias, nem cidades. Ainda menos há presença física do ICMBio, e não apenas pelas dificuldades de acesso, prevalentemente aéreo, mas porque qualquer presença, ainda menos a verifica de condições e horários de acesso de não-índios à área, seria inviável sem o consentimento e envolvimento dos índios. Na Raposa Serra do Sol, a fronteira do Parna è invisível, tanto para quem sobrevoa a região, como para seus habitantes indígenas. Se a área do Parna é julgada merecedora de proteção, não é por sofrer ameaças, mas porque ela está sendo bem preservada pelos seus habitantes indígenas. Ainda hoje o Parna Monte Roraima è, maximamente, um parque de papel. Como outras UC’s do final da década de ’80 e início ‘90, também sobrepostas a Terras Indígenas (ver a Flona de Roraima, sobreposta à TI Yanomami), ele foi criado em 1989, pelo presidente Sarney, já na tentativa de inviabilizar as reivindicações territoriais indígenas, reforçadas pela recém-aprovada Carta Magna.


Como muitas das UC’s sarneyanas, o Parna Monte Roraima talvez só continua existindo porque ninguém (ainda) se deu o trabalho de questionar sua constitucionalidade. Na década de 1990 a realização da Linha de Transmissão de Energia (LT) Brasil-Venezuela, solução política ao conflito decorrente do projeto do Estado de RR de construir a hidroelétrica do Cotingo, na terra indígena Raposa Serra do Sol, gerou recursos de compensação ambiental em parte utilizados pelos índios para acelerar o processo de remoção dos invasores da TI São Marcos, já demarcada e homologada desde 1992, e em parte (R$ 250.000) destinados ao Ibama para implementação de uma UC em área próxima à afetada pela LT. Entre 1999 e 2000, ao invés de investir tais recursos no Plano de Manejo da ESEC Maracá, UC mais antiga e operante, mais próxima da área afetada pela LT, o Ibama optou para gastar o recurso contra os índios, desconsi derando a demarcação da Terra Indígena de 1998. A 11 anos de sua criação (1989), na oficina que o IBAMA realizou em 2000 para tentar tirá-lo do papel, a própria existência do Parna Monte Roraima era desconhecida aos três representantes de seus vizinhos mais próximos, os índios Ingarikó.

Poucos meses depois, ao serem informados do Plano de Manejo do Ibama para sua área de uso tradicional, os Ingarikó declararam unânimes seu não (Kaané!) ao Parna. Nesta ocasião, eles também mostraram possuírem suas próprias regras de gestão da área, e práticas para sua etno-conservação[1]. Mesmo assim o IBAMA seguiu utilizando o Parque de papel para justificar gastos de pessoal e infra-estrutura fora da área, reafirmando sua autonomia em implementá-lo, apesar da oposição dos índios.

Em 2005, com a homologação da TI, o quadro mudou. Com "dupla afetação", a área do Parna ficou sujeita a uma gestão compartilhada de Funai, Ibama (hoje ICMBio) e comunidades indígenas. Apesar do quadro geral de conflito da área, o processo de gestão compartilhada vem registrando avanços, incipientes, mas positivos, na tentativa de gerar um arcabouço institucional inovador, que permita superar os conflitos entre sistemas normativos conservacionista e indígena, a partir da centralidade do papel indígena no processo. Mediante portaria interministerial 838, de 08/05/2008, o MMA e o MJ criaram um GT, composto por ICMBio, Funai e organizações indígenas, presidido por representantes indígenas da região do Parna, encarregado de esboçar as primeiras ações da gestão compartilhada da área.

As propostas do ministro Direito, antitéticas a tão preciosos e delicados processos de inovação sócio-ambiental e institucional, não apenas desconsideram o histórico e contexto específico, mas desconhecem legitimidade e reconhecimento ao trabalho de todos os atores sociais e institucionais envolvidos. Concentrar a gestão do Parna nas mãos do ICMBio, sem uma participação e responsabilidade central, não meramente opinativa, das comunidades indígenas e do órgão indigenista, na melhor hipótese ficará letra morta, mais realisticamente gerará mais conflitos. O que do ponto de vista do direito formal poderia parecer uma solução que reforça o Parna e sua missão, de fato afastaria suas chances de sucesso, pois o isolaria dos parceiros indispensáveis para a viabilidade de qualquer ação, condenando-o a uma função policial repressora, ineficaz e de alto custo econômico e social.

O problema da sobreposição UC-TI está nas diferentes ferramentas técnico-normativas para um objetivo comum: o uso sustentável dos recursos naturais. As ferramentas diferem porque refletem diferentes visões de mundo, filosofias, culturas. A visão ocidental moderna da natureza está construída em cima da dualidade, cisão e justaposição excludente entre natureza e cultura. A essência do problema está em reconhecer que esta visão não é única, universalmente definida, mas um produto da própria cultura, e portanto não é "objetiva" mas culturalmente subjetiva, e muda no espaço e no tempo. No etnocentrismo ocidental moderno a natureza e a cultura se definem como espaços mutuamente excludentes: a visão normativa do ecossistema natural é um espaço do qual o homem é ausente. Por isso no modelo ideal de conservação o homem está fora. Essa é a história dos "parques naturais".


Desde sua concepção inicial (historicamente e geograficamente definida nos EUA do século XIX) esta visão, à qual no Brasil respondem as UC’s de proteção integral do SNUC, vem se confrontando com uma realidade na qual os ecossistemas "naturais", onde o homem é efetivamente ausente, são bem mais raros do que esperado. Cada vez mais se descobre que os ambientes e ecossistemas reais, considerados "naturais" a um primeiro olhar, são quase sempre o fruto de "interferências" humanas em diferentes escalas espaço-temporais. Hoje, à luz da consciência das mudanças ambientais globais antropogênicas, toma plena consistência o que A. C. Diegues define "mito moderno da natureza intocada".

Esta visão conflita com a das populações indígenas. Se uma área tradicionalmente habitada por indígenas é considerada merecedora de proteção como aquela de uma UC, isso significa que sua população humana, os índios, desempenham há tempo, tradicionalmente, um papel relevante na caracterização daquele espaço, erroneamente considerado "natural". A cultura do povo indígena faz parte integrante do ecossistema merecedor de proteção. Por isso ela deveria ser igualmente valorizada e protegida, não excluída, removida ou submetida a restrições exógenas, obviamente arbitrárias para quem ali sempre viveu com suas próprias leis (usos costumes e tradições). As formas tradicionais de uso dos recursos naturais, as pressões ecológicas seletivas que os indígenas exercem, caracterizam verdadeiros sistemas, informais e invisíveis, de manejo ambiental, dinamicamente integrantes o ecossistema a ser protegido.

A sociedade dominante, de matriz ocidental moderna, ainda não conseguiu se abrir ao dialogo, mutuamente respeitoso e benfazejo, com as matrizes indígenas, tão enriquecedoras da identidade brasileira, para, junto a elas, inventar novas formulas para conservar a natureza e superar sua própria visão etnocêntrica da dicotomia excludente natureza-cultura. A não interferência das políticas de conservação com as normas indígenas de apropriação e uso do espaço e dos recursos naturais representaria a condição necessária e suficiente para eliminar conflitos técnico-jurídicos ou constitucionais no caso das sobreposições UC-TI.

Estes conflitos exigem apenas aprimoramentos técnico-jurídicos, como a definição de uma categoria de UC cujas normas sejam compatíveis com o usufruto indígena das TI’s, não restritivas de seus costumes e tradições. Hoje tal categoria não existe, mas com sua criação pelo poder legislativo, as UC’s sobrepostas a TI’s poderiam se r re-classificadas, caso a caso.

O Brasil pode se orgulhar da criatividade que levou à invenção das Reservas Extrativistas como uma categoria especifica de UC cujo potencial inovador é reconhecido no mundo inteiro, associado à figura simbólica de Chico Mendes. E justamente a terra indígena Raposa Serra do Sol representa a primeira de uma série de experiências potencialmente inovadoras na busca "de baixo para cima" das soluções técnica e juridicamente possíveis destes conflitos infra-constitucionais. É para isso que a gestão compartilhada da área sobreposta do Parna Monte Roraima aponta: é uma oportunidade para inventar as soluções que o Brasil precisa.

Os índios da Raposa Serra do Sol já compartilham com Chico Mendes, os seringueiros e os demais "povos da floresta", não apenas a luta sócioambiental e do ecologismo popular, mas também seu próprio tributo de sofrimento e mártires. Eles também compartilham a capacidade de inovação sócio-institucional para a sustentabilidade da qual, a 20 anos de seu assassinato, o Brasil se orgulha. No entanto, o líder seringueiro deve estar se revirando no tumulo ao ver seu nome associado a propostas do STF tão etnocêntricas e ecorepressivas para com os primeiros povos da floresta.

As condicionantes "conservacionistas" propostas não só ameaçam os direitos indígenas, mas também expropriam todo o povo brasileiro, na maior riqueza de sua diversidade etnocultural, do direito de exercer sua extraordinária capacidade criativa de novos arranjos sociais e institucionais em busca da sustentabilidade. Pior, o fazem em nome de um positivismo moderno e colonizador, reforçando a idéia da administração estatal e hierárquica da proteção da natureza, surgida nos Estados Unidos há apenas dois séculos, deixando um papel "apenas opinativo" à sabedoria nativa, que por milênios cuidou, legando até todos nós, o que hoje consideramos digno de proteção.


Nos três temas analisados, o espírito e o conteúdo das condicionantes ao exercício dos direitos indígenas, que o STF propôs no dia 10 de Dezembro de 2008, são inquietantes. A sensação é que, não podendo forçar ainda mais a leitura da Carta Magna, o STF coloca os índios numa morsa etnocêntrica, ocidental e neocolonial, não apenas do que representa um limite ao espaço vital "concedido" para as gerações presentes e futuras, migalhas das sobras de mais de 500 anos de espoliação, mas também entre desenvolvimento e conservação.

Os índios seriam de qualquer jeito culpados: ora de atrapalhar nosso modelo de desenvolvimento predatório, ora de estragar as imagens de "mito moderno da natureza intocada" que insistimos em construir com políticas de conservação excludentes. Culpados, porque obstinadamente e duplamente infiéis: primeiro em nossa cisão dicotômica entre natureza e cultura, segundo em nossa veneração para o deus dinheiro. Como se nossa civilização ocidental, moderna e colonizadora, do alto de suas responsabilidades pela crise ambiental que hoje ameaça todos nós, tivesse alguma lição a dar, e não muitas a aprender, de nossos irmãos indígenas, sobre sustentabilidade das relações entre sociedade e natureza. Confiemos que o plenário do STF, em sua decisão final, saberá afastar os riscos de supremo etnocentrismo de tais propostas.

[1] Ver: Lauriola, V., Parque Nacional do Monte Roraima : Kaané, Funai, Boa Vista, RR, Setembro de 2000; Lauriola, V., "Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Conflitos Políticos na Amazônia. O Caso do Parque Nacional do Monte Roraima", in Diegues, A.C. e Moreira, A. De C. (orgs.), Espaços e recursos naturais de uso comum, NUPAUB/USP, São Paulo, 2001; Lauriola, V., Ecologia Global contra Diversidade Cultural ? Conservação da Natureza e Povos Indígenas no Brasil. O caso do Parque Nacional do Monte Roraima, in Ambiente e Sociedade, NEPAM/Unicamp, Vol. V – n.2, Vol VI – n.1, jan/jul 2003; Lauriola, V., "Parque Nacional? Kaané! Os índios dizem não à implementação do parque Nacional do Monte Roraima", in Ricardo, F. (org.), Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio das sobreposições, ISA, São Paulo, 2004; Lauriola, V., Recurso s comuns indígenas ou conservação global na Amazônia ? O Monte Roraima entre Parque Nacional e Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, in Barreto, H. e Souza-Lima, A.C., Antropologia e Identificação, IEB, Brasília, 2006.

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