Caos das regras

Delação é boa contra o crime, mas faltam regras

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15 de março de 2009, 8h59

O debate sobre a delação premiada no Brasil é um tanto caótico. Todos concordam que este é um ótimo instrumento contra o crime organizado, com base em experiências bem-sucedidas de países como Estados Unidos e Itália, mas poucos se entendem em relação aos métodos que devem ser usados para fechar o acordo. Quem pode propor o acordo: juiz, promotor ou delegado? Esta é uma resposta que a legislação brasileira não dá. 

Nenhuma das seis leis em que está prevista a delação premiada — Lei dos Crimes Hediondos, Lei do Crime Organizado, Código Penal, Lei de Lavagem de Capitais, Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas e Lei Antitóxicos — trata das regras para fechar o acordo de delação. A falta de limites e parâmetros para aplicá-la dá margem para diversos tipos de interpretação, o que traz insegurança a todos os envolvidos no processo. Talvez por isso o instituto ainda seja pouco usado no país.

O juiz Sérgio Moro, da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, considera a delação um importante instrumento para “subir na hierarquia do crime e se chegar aos peixes grandes” de grupos organizados, mas tem de ser usado com cautela. A palavra do delator é importante, mas não pode ser a única prova para condenar, diz. Poucos acordos de delação premiada foram aceitos por Moro.

Um deles ficou famoso. Foi ele o juiz que cuidou do caso Banestado. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, membros da diretoria do Banestado enviaram irregularmente ao exterior mais de R$ 2,4 bilhões entre 1996 e 1997. Para isso, 94 contas foram abertas em nome de laranjas, onde foi depositado todo o dinheiro. Assim, os acusados conseguiam burlar a fiscalização. O doleiro Alberto Youssef, acusado de participação no esquema, não foi preso depois de ter colaborado com a Justiça brasileira e dos Estados Unidos. Os doleiros Hélio Renato Laniado e Toninho da Barcelona também foram denunciados e beneficiados.

Outra das preocupações de Sérgio Moro quando o assunto é delação é penalizar o delator de alguma forma. É difícil Moro aplicar o perdão judicial. Nos casos de crime financeiro em que o delator tem bastante dinheiro, ele determina o pagamento de indenização. Em um dos casos que julgou, mandou o delator pagar R$ 10 milhões, valor que foi revertido para as vítimas do delito. Segundo o juiz, houve casos em que o delator teve de pagar indenização e ainda foi preso, apesar da redução da pena.

Em relação à legislação que trata do assunto, Sérgio Moro diz que a mais aplicada é a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/99, artigos 13, 14 e 15). O juiz afirma que o colaborador que for preso deve ficar em prisão separada e, nos casos em que se beneficiar do perdão, pode se inscrever no programa de proteção à testemunha, se estiver sendo ameaçado.

Os benefícios da delação em prol da sociedade também são reconhecidos pelo promotor de Justiça em São Paulo Silvio Marques. Ele entende que esse tipo de delação é absolutamente vantajosa tanto para a sociedade como para o réu “porque a verdade aparece”.

Em 2004, foi Marques quem sustentou que Paulo Maluf mantinha no exterior pelo menos US$ 200 milhões, que seriam oriundos de lavagem de dinheiro gerado em superfaturamento de obras públicas. Maluf e seu filho Flávio foram presos em setembro de 2005, sob acusação de obstrução de Justiça por terem tentado negociar com o doleiro Vivaldo Alves, o Birigui, para que ele não contasse sobre uma remessa de US$ 200 milhões ao exterior. O promotor lembra que Birigui não foi preso na ocasião por conta de um acordo de delação premiada que fez com a Polícia e o Ministério Público. Paulo Maluf não foi condenado até agora.

Silvio Marques defende que um contrato entre o delator e o MP deve ser assinado antes de se levar a ação ao juiz. No documento, devem constar como o réu se dispõe a ajudar e quais os benefícios o promotor vai propor ao juiz. No entanto, o promotor afirma que, em São Paulo, este tipo de acordo não costuma ser aceito pelo Judiciário. Em outros estados, como Paraná, tem mais chances de ser levado em frente.

Falta de regras

Não há um procedimento pré-estabelecido em lei para fechar o acordo. Os limites para que o juiz aceite a proposta de redução da pena ou o perdão judicial, apresentada pelo Ministério Público, também não são claros. A única certeza é que, com as informações do delator, é preciso que provas sejam encontradas. A partir daí, cada juiz faz do jeito que acha melhor.

Muitas vezes, antes mesmo que o preso tenha um advogado, o delegado propõe um acordo de delação premiada. A delação, nestes casos, é muito questionada porque o delegado não pode dar garantias ao acusado. Se o Ministério Público entender que as informações são insuficientes, não vai pedir ao juiz benefício qualquer. Mesmo quando pedir, o juiz pode negar.

O legislador não se preocupou em deixar claro para juízes, promotores e delegados qual o papel de cada um neste processo de conseguir dados decisivos para a investigação e, em troca, oferecer benefícios. Por isso, os advogados se sentem inseguros. 

A delação premiada pode salvar uma vida em caso de sequestro, pode ajudar a desbaratar uma quadrilha e tem utilidade nos crimes contra a ordem econômica, mas precisa de fiscalização, afirma o advogado criminalista Alberto Zacharias Toron. Ele chama atenção para a possibilidade do instrumento “se prestar a todo tipo de desvirtuamento”, como o investigador forçar o preso a dizer até o que não sabe ou não fez.

Há um perigo de manipulação do preso e vice-versa. “Cria-se um terreno movediço sujeito a toda sorte de imprecisões e infortúnios”, diz. Para Toron, a OAB e órgãos da sociedade civil deveriam ser chamados para fiscalizar os acordos de delação.

A sensação de insegurança é compartilhada pelo advogado Maurício Zanóide. Para ele, no Brasil, a delação premiada não vai dar certo até que haja uma legislação específica para tratar do assunto. “As leis que existem prevêem a delação, mas não a regulam.” Zanóide, que é professor de Processo Penal na USP, sustenta que a delação é um meio de prova típico, já que previsto em lei. Em relação ao procedimento para colocá-la em prática, é atípico porque não está regulamentado. O advogado defende que apenas o juiz pode propor acordo de delação. Delegados e representantes do MP, por não terem como garantir benefícios, não poderiam fazê-lo.

A defensora pública Juliana Belloque também acha que o instrumento não funcionará no país enquanto não estiver regulamentado. “A delação premiada é muito perigosa porque gera uma prova frágil e pode ensejar um resultado falso.” Para ela, assim como para Toron, são grandes os riscos de policiais fazerem falsas promessas e usarem a prisão como moeda de troca, quando não podem garantir a liberdade.

Em cinco anos de atuação como defensora pública, Juliana conta nunca ter visto um juiz reduzir a pena com base na delação premiada. Ela defende que o uso do instrumento seja restrito para casos de crime organizado. “Este instrumento deve ser o meio de encontrar provas para a condenação, e não o fim.”

Regras do sigilo

Em fevereiro de 2008, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal analisou pedido de Habeas Corpus em favor do advogado e ex-conselheiro da estatal Itaipu Binacional Roberto Bertholdo, condenado pelos crimes de interceptação telefônica ilegal e exploração de prestígio. Ele também é acusado de tráfico de influência junto à CPMI do Banestado e constrangimento ilegal.

Bertholdo pedia acesso aos acordos de delação premiada que serviam de fundamentação para a Ação Penal que corria na 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, do juiz Sérgio Moro.

A 1ª Turma entendeu que o sigilo nos casos de delação premiada não pode ser quebrado, mesmo que os acusados e os autores do acordo sejam pacientes no mesmo processo. No entanto, os ministros permitiram que as autoridades judiciais e o Ministério Público que propuseram e homologaram os acordos fossem conhecidos.

A decisão não foi unânime. O ministro Menezes Direito votou pelo sigilo absoluto. Marco Aurélio, pelo acesso da defesa a todas as informações do acordo de delação. Os demais, puxados pelo relator Ricardo Lewandoski, votaram pelo acesso apenas dos nomes dos responsáveis pelo acordo.

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