Compromisso internacional

É imprudente manter Sean em situação irregular

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14 de março de 2009, 17h55

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, conversa sobre a custódia de um menino norte-americano de oito anos cujo drama conheceu quando ainda era senador, e o faz, segundo a imprensa e de acordo com fontes do Departamento de Estado norte-americano, durante o encontro agendado para este sábado na Casa Branca com o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.

Com efeito, chegaria o momento em que o Brasil teria mesmo de ser chamado às falas por algum Estado portentoso em razão de sua crônica falta de compromisso para com os tratados e convenções internacionais que subscreve e a eles se obriga legitimamente.

Sem pretender generalizar, fixo o argumento deste artigo na Convenção de Haia sobre Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, promulgada no Brasil pelo Decreto 3.413, de abril de 2000, instituto que nem o governo federal e nem a Justiça brasileira parecem estar muito a par, antes pelo contrário. Nem mesmo o grupo de trabalho que oficia junto à presidência do Supremo Tribunal Federal para esse fim tem sido capaz de sinalizar para soluções realmente convencionais diante de perturbadoras iniciativas produzidas pelas partes interessadas e que não raro inibem toda racionalidade na composição desses conflitos.

Do mesmo modo, a Autoridade Central brasileira, sob encargo da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da presidência da República, sobre ser o responsável pela fiel execução da norma convencional entre nós, tem se limitado, após tratativas para composição amistosa das contendas regidas pela Convenção de Haia, a solicitar da Advocacia-Geral da União que deduza ações de busca e apreensão dos eventuais menores ali envolvidos, trazidos ao país mediante sequestro, ilicitamente, por um de seus progenitores ou parente próximo e aqui fixado manu militari.

Parece muito pouco e, de fato, têm sido irrisórios os resultados que mais agravam o cenário de injustiças em que o povo brasileiro está igualmente submetido. O trágico é que esse histórico tem sublevado interesses de outros povos ao olho desse furacão tropicalístico.

As conhecidas suscetibilidades e mazelas da administração da Justiça em nosso país, que a tornam morosa e enfastiada, também em face da falta de exemplos que partam das cúpulas, uma Justiça que vai pouco além de por ladrão de galinha na cadeia, encontra o seu paroxismo justamente nas matérias de Direito Internacional.

Quando essas matérias envolvem cenários subjetivos, interpessoais, os desdobramentos podem ser desastrosos e levar o país até mesmo a sofrer uma denúncia em Foro Internacional com sérios riscos à sua reputação de Estado independente e soberano, regido por uma ordem interna capaz de guarnecer pessoas e instituições em seus anseios por previsibilidade jurídica e que, do mesmo modo, se aparelhe para um exercício sobranceiro de cooperação internacional. No caso, essa cooperação é do tipo direto, daí que cada Estado-parte mantém uma Autoridade Central que guarda os objetivos da Norma Convencional em foco para uma pronta e expedita solução dos casos (atitude que não se tem observado no Brasil).

O caso do menino norte-americano é apenas mais um dentre uma legião de situações dramáticas que têm sido perpetradas por pessoas de diversas condições sócio-econômicas que voltam ao país na companhia de seus filhos estrangeiros, geralmente mediante subterfúgios, sem querer pretender submeter-se à ordem jurídica do domicílio daqueles e, sobretudo, sem respeitar os direitos do próprio filho à filiação em relação ao progenitor agravado. Este fica privado, de inopinado, da companhia de seu próprio filho e passa a enfrentar dificuldades formidáveis para resgatar a legitimidade da guarda sobre o mesmo.

Razões inúmeras explicam essa atitude ilícita de determinados pais ou mães. É contra esse desalinho moral e cívico que os Estados, entre eles o Brasil, em livre comunhão, resolveram editar a Convenção de Haia para que crianças não caíssem nos jogos oriundos dos diversos tipos de paternidade/maternidade irresponsável a distâncias por vezes intercontinentais.

Trata-se de um menino filho de pai norte-americano e mãe brasileira, concebido de uma união conjugal ocorrida nos Estados Unidos e lá persistindo até uma inocente viagem de férias ao Brasil dessa mãe em companhia do filho no ano de 2004. Aqui estando, a mãe, por telefone (como o fizera o presidente da República ao demitir o ex-ministro da Educação, senador Cristovão Buarque), comunicou ao pai da criança que o relacionamento teria se encerrado e que ela e seu filho não mais retornariam ao lar. Pode-se imaginar a sensação que esse pai, até então inteiramente ignorante dos objetivos de sua companheira, recebeu desse impacto cruel.


É irrelevante que a mãe tenha permanecido no país para se unir a uma terceira pessoa. Importa considerar que ela não detinha o direito de subtrair, irresponsavelmente, o filho de nacional estrangeiro até então residente no estrangeiro. Para agravar a história e torná-la ainda mais kafkiana, eis que a mãe faleceu e o menino, sobre não ter ainda regressado ao país de origem onde residia com o pai biológico na companhia de sua mãe, ora falecida, aqui permanece, curiosamente, na companhia do padrasto que passou a deter, por decisão da Justiça nacional, a guarda da criança.

A passos largos, a repulsa do Estado norte-americano, expressa pela voz da secretária de Estado, Hillary Clinton e da vasta maioria de seus legisladores, passa a se tornar um fato político de proporções até então inimagináveis, mas previsíveis. Pediram que a Casa Branca intervenha para que o garoto possa voltar a seu país sob a guarda do pai.

A crise está estabelecida. Se ela vai ou não ser composta de modo compatível com os princípios da cooperação internacional, isto vai depender da atitude do governo brasileiro ou da administração judicial interna, o que primeiro tomar a dianteira nesse propósito já tardinheiro e inteiramente legal de devolver ao seu domicílio (residência habitual) o menor que de lá fora indevidamente subtraído.

Convém ressaltar que a residência habitual de alguém não pode ser jamais o lugar para onde esse alguém foi levado à força ou mediante subterfúgio que tornasse ilícita a transposição de domicílio. Afinal, o cativeiro, mesmo em aberto, nunca é o domicílio do cativo.

Ademais, a criança em foco não chega a possuir dupla nacionalidade, justamente porque seu domicílio no Brasil (complementar ao registro de nascimento em repartição consular acreditada no estrangeiro) foi resultado de um sequestro que, noutros termos, levaria o sequestrador à cadeia. A mera consanguinidade, portanto, não é supedâneo automático da nacionalidade de quem tenha nascido no estrangeiro, salvo quando seus pais estejam em missão oficial do país. Outrossim, o que é ilícito não gera senão mais ilicitude.

Ora, o discurso defendente de quem busca a permanência de menor que fora sequestrado do país de origem é um misto de tumulto lógico e desinformação que faz supor, razoavelmente, que as circunstâncias dessas causas merecem desconfiança quanto à boa cepa de intenções de parte de seus proponentes.

As questões de Estado se transformam em questiúnculas da afetividade e o emocionalismo toma o espaço da razão para lançar o destino do país à própria sorte assim como o da criança vitimada desse represamento inconsequente e ilegal. João Grandino Rodas, juiz federal aposentado e ex-reitor da Universidade de São Paulo, desmente, categoricamente, a alusão que se dirige a caracterizar como brasileiro o infante sequestrado de sua residência habitual (salvo cidadania que se dispunha anteriormente ao evento), descrevendo, ao contrário do que falaciosamente se estima, o seguinte:

“O princípio do jus soli, que hoje se constitui em tradição constitucional com mais de cento e cinquenta anos, foi plantado entre nós pelo artigo 6º, inciso I, da Constituição Imperial de 1824, que dispunha serem cidadãos brasileiros ‘os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua nação’”[1]

Deste modo, sobre secularmente subvertido o argumento de que a nação brasileira priva, na sua Teoria da Nacionalidade[2], como fator determinante o jus sanguinis, e isso não é rigorosamente verdadeiro, salvo para a hipótese de prestigiar o corpo funcional brasileiro acreditado no estrangeiro (não é o caso), ainda quando esse critério obtempere a dicção constitucional hodierna (artigo 12, inciso I, alíneas “b” e “c”), mas não exclusivamente, sucede que a tese de fantasia objetiva, justamente por isso, fins diversos do que está proposto pela ordem constitucional em torno do assunto, haja vista uma plêiade de óbvios e já de todo capturados intentos de conservação de um status quo que vem sendo construído, manu militari, acerca da guarda do pequeno norte-americano, nascido além-fronteiras, consoante descrito linhas atrás, sem a observância das regras do jogo civilizatório assim da República dos Estados Unidos da América do Norte (onde o infante veio a nascer e lá viveu até ser suquestrado pela própria mãe de sua residência habitual) como da República Federativa do Brasil (onde o mesmo se encontra, atualmente, sem lastro jurídico algum e na companhia de terceiro, sequer de parente próximo).


Sobre isto, Brasil e Estados Unidos são Estados contratantes da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, concluída em Haia, em 25 de outubro de 1980 e promulgada internamente, entre nós, pelo Decreto 3.413, de 17 de abril de 2000, e que estão, neste exato instante, sendo chamados a esse compromisso de Direito Internacional, a ser já serodiamente executado, mediante a devolução do menor ao seu país de origem, porque lá tem a sua residência habitual, queira ou não a parte resistente.

Aliás, a resistência de fato ao intento convencional vem sendo produzida pelo Estado brasileiro, a despeito da plataforma de uma questão de Estado em que está atuando timidamente, em favor de uma clara dissimulação de propósitos que toma esse assunto como uma simples questão menorista e interpessoal que vem se arrastando há anos. Também neste ponto, o fato é incontroverso.

No Brasil, ainda, à luz da norma constitucional vigorante à data da promulgação da Emenda Constitucional 54, de 20 de setembro de 2007, que reescreveu o comando do artigo 12, inciso I, al. “c”, da Constituição Federal, somente são brasileiros natos e, por isso, dispõem ou podem vir a dispor de nacionalidade originária, as seguintes pessoas: 1) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço do Brasil (pessoal da carreira diplomática, trabalhadores em missão de serviço oficial como as obras de ajuda humanitária, comissões legislativas e de observação internacional, militares etc.), ex vi da alínea “b”, do mesmo dispositivo; 2) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente (Serviço Consular acreditado no estrangeiro) ou venham a residir no país e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade (plena capacidade civil), pela nacionalidade brasileira, ex vi da alínea “c”, do mesmo comando constitucional.

Sobre isto:

“A Constituição em vigor igualmente não explicita a maioridade a que se refere. Entretanto a evolução doutrinária e a jurisprudencial havida desde 1934, quando da introdução do instituto da opção entre nós, permite afirmar indubitavelmente se tratar da maioridade civil(…).”[3]

Tendo em vista, porém, a possibilidade de um outro fastidioso argumento, consistente no fato de que o menor em apreço, tendo chegado ao Brasil, bem ou mal, e aqui sofrido retenção indevida em 2004, possa não estar enquadrado na regra constitucional da alínea “c”, inciso I, do artigo 12, da Carta, eis que à época do seu ingresso no país, vigia, para o dispositivo, o modelo preconizado pela Emenda Constitucional de Revisão 3, de 7 de junho de 1994, ainda assim a situação não se altera. O que a regra antiga descrevia era tão só o problema da opção dos nascidos no estrangeiro de pai ou mãe brasileiros que, vindo residir no país, optassem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira.[4]

O traço distintivo entre o dispositivo anterior (determinado pela ECR 3/1994) e o atual (determinado pela EC 54/2007) é tão somente quanto ao fato acrescido do registro daquele nascido em repartição brasileira competente (Serviço Consular), que a redação anterior não previa. O objetivo do novo regime jurídico é possibilitar, de modo claro, que os brasileiros nascidos no estrangeiro e registrados originalmente em Repartição Consular acreditada no local do nascimento, goze da nacionalidade originária desde logo, portanto, independentemente de opção posterior. Este, evidentemente, tampouco é o caso do menor em debate.[5]

Com ou sem o registro desse elemento na norma constitucional em foco, a situação do infante em comentário não sofre, desse modo, a menor alteração. Seu enquadramento é, portanto, exatamente o mesmo: artigo 12, inciso I, alínea “c”, da Constituição Federal. Vamos a ele:

“os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira”


De modo que não faz o menor sentido, tecnicamente falando, que o menor seja duplo-nacional como dito pelos interessados em sua permanência no Brasil. A Autoridade Central Administrativa Federal brasileira há muito já deveria saber dessa circunstância e tomar as providências adequadas em torno do fato.

Parece mesmo muito estranho que ninguém até agora, dentre todos os operadores que vêm atuando incessantemente no caso, tenha se dado conta de que a criança não é realmente um nacional brasileiro e que sequer poderia optar pela nacionalidade brasileira nas atuais condições, segundo a fórmula constitucional já referida, e que teria sido garantida ao mesmo em razão do mencionado “registro consular”. Ocorre que o tal registro teria o condão de valer como prova de nacionalidade desde que o interessado opte, a qualquer tempo, validamente, pela nacionalidade brasileira. Isso não aconteceu e nem poderia ter acontecido em face das circunstâncias (ver nota n. 5).

Parece fora de dúvida que o direito de optar pela nacionalidade brasileira dos que, tendo nascido no estrangeiro de pai ou mãe brasileiros e sido registrados em repartição consular ou virem a residir, validamente, no Brasil, garantem a nacionalidade originária e são, portanto, natos. É o que estabelece a Constituição Federal (artigo 12, inciso I, al. “c”).

Entretanto, aqui começam os problemas, tão sugeridos quanto anunciados linhas atrás.

Ora, como não se divisa que o menor em alusão é filho bastardo[6], produto das aventuras de jovens pouco afeitos à previdência de seus atos, embora tão em voga nos dias de hoje em que predominam o consumismo, a cultura do corpo e a do prazer, parece igualmente estranho que não se tenha lançado firme fiscalização ao tal “registro consular” quando de sua trasladação pelo Ofício do 1º Distrito dos Registros Públicos das Pessoas Naturais, caso tenha sido suscitado a fazê-lo, nos termos do artigo 32, parágrafo 2º, da Lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos) e demais regras provimentais aplicáveis.

Essa fiscalização consiste em analisar rigorosamente o preenchimento dos requisitos constitucionais, dentre os quais se destaca a prova do domicílio definitivo do registrando (menor), porque: “O predicado ‘residir’ cristaliza condição essencial para a opção”.[7] Portanto, trata-se de uma condição substantiva para o lançamento do “traslado” em comentário, como instituto jurídico, que as evidências demonstram, não obstante, que está nulo de pleno Direito, acaso existente.

Outrossim, em não se confundindo registro originário (possível de ser lançado em Repartição Consular acreditada no estrangeiro) com registro provisório (ou traslado) de certidão estrangeira de nascimento (chancelada pelo agente consular do local do nascimento, traduzida e registrada no Cartório de Títulos e Documentos para, somente após, ser levada a traslado no Registro Civil) de filho de brasileiro ou brasileira, nascido fora do país, cujos pais não estavam a serviço do Brasil, sucede que tal declaração traduz uma inverdade monumental.

O menino teria sido realmente registrado e nasceu nos EUA, levando-se também a “registro consular”, na decorrência, essa assentada. É evidente a condição de nacionalidade exclusivamente norte-americana do menor em exame, muito embora também filho de brasileira não a serviço do Brasil no estrangeiro, onde o concebeu, como está amplamente reconhecido e deve constar do processado administrativo e dos demais elementos de convicção que constaram no expediente de requisitar o seu retorno entre as respectivas autoridades centrais norte-americana e brasileira, ora em tratativa para o mesmo fim. Além do mais, tampouco se comenta, a propósito da legitimidade desses papéis, de que o documento respectivo teria sido, antes, levado a registro no Cartório de Títulos de Documentos da circunscrição como medida de segurança e precaução, consoante tem sido exigido da prática notarial brasileira.[8]


Toda tentativa, por outro lado, de levar a registro de trasladação de nascimento no estrangeiro de filho de brasileiro(a) não a serviço do Brasil, sem o consentimento do outro progenitor é inválida, conquanto materializada a sorrelfa e avesso à disciplina constitucional da espécie. É atitude que negligencia a paternidade/maternidade do filho e, portanto, da condição pessoal e subjetiva deste em relação à própria nacionalidade e ao progenitor agravado.

A obra de etiologia ilícita que não se iniciou exatamente aí, tampouco nesse ponto estancou. É que, nos termos da Constituição Federal (artigo 12, inciso I, “c”), o filho de brasileiro ou brasileira nascido no estrangeiro não a serviço do país que, não tendo sido originalmente registrado em repartição consular e desde que venha residir validamente no Brasil, é brasileiro nato porque pode adquirir a nacionalidade originária, nessas condições, se optar por ela a qualquer tempo, depois de atingida a maioridade. A opção não pode ocorrer antes de concluir-se esse termo constitucional rígido, que não admite inflexões e nem interpretações extensivas ou analógicas, conquanto personalíssimo o ato de formular opção de nacionalidade, para permitir que a pessoa possa tornar-se nacional, agindo por meio de terceiros, ainda quando esses terceiros sejam os progenitores. Esse tipo de intermediação não é tolerado pela ordem constitucional brasileira. A manifestação em exame, como dito, é personalíssima e só pode ser veiculada, logicamente, pelo próprio nacional interessado, espontaneamente, uma vez atingida a condição ou termo (maioridade) e também por haver ido viver no Brasil com animus residendi.

Ocorre que para se ter lançado o registro desse traslado (e não do nascimento em si), cumpriria à parte interessada fazer a prova da residência e ao Oficial do Registro Civil, exigi-la firmemente. Ora, a situação complicada e fugidia da mãe do garoto não permitiria jamais que uma tal atitude pudesse ser observada como mandam a Constituição e as leis. Quanto à dúvida sobre saber o que ela fez, então, para escapar desse jugo do destino, com ou sem a ajuda de terceiros, só a análise cuidadosa do processado será capaz de elidir sem exclusão da iniciativa ex-officio quanto à produção da prova (artigo 130, do Código de Processo Civil), notadamente em face desse cenário de imaginação criativa cujo escopo é a perpetuação de uma ilicitude, ou seja, a permanência irregular no país do menor em apreço.

No mínimo a omissão quanto à realidade dos fatos traduz um outro perfil do cometimento que diz respeito ao insensato propósito de fazer esconder ao Estado brasileiro, ou de ludibriá-lo de algum modo, quanto às informações que eram essenciais para a geração de atos públicos pretendidos (registro civil).

Esse imaginário como tal sistematicamente operado em causas que tais é capaz de processar uma formidável e também paradoxal carga de resultados positivos, todos eles trágicos e inteiramente inaceitáveis, tanto do ponto de vista do ordenamento jurídico interno quanto na abrangência do Direito Internacional, tem causado espécie. É como se um folhetim novelesco ganhasse a realidade dos processos e ocupasse os seus espaços, causando perplexidade aos operadores jurídicos de formação genuína e vergonha ao Estado brasileiro, conquanto incapaz de realizar-se a si mesmo em seus compromissos legais.

O que sucede é que o menino não reside e não residiu jamais em território brasileiro, senão de modo forçado, aqui não aportando senão por forma ilegal, ainda que “nos braços da mãe”. Esta é uma outra tônica do folhetim melodramático que está sendo rodado. Com efeito, ninguém vem a residir em lugar algum, quando privado da própria liberdade de ir-e-vir. No caso, essa liberdade é objeto de proteção, assistência e vigilância do progenitor do infante de nacionalidade estrangeira e de quem se discute, em razão de decisão da Justiça daquele país e da própria nacionalidade da criança.


Já se disse alhures ser impossível afirmar de qualquer modo que o cativeiro é a residência habitual do cativo, ainda quando a vítima não disponha das condições para avaliar a gravidade da ação que está sofrendo. É o caso de um menor que sofre sequestro de um de seus progenitores em detrimento do outro e da nação a qual pertence um e outro.

Ainda que nenhuma dessas desventuras estivesse conspirando contra a coerente administração do Direito entre nós, na espécie, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, antes ou depois do advento da EC 54/2007, de modo hialino, não permite acreditar que seja possível a coexistência subnormal de dupla nacionalidade sob a égide do seu próprio ordenamento.

O menor arrolado, no caso, como objeto de disputa de Direito Internacional, é cidadão norte-americano e, à luz da ordem constitucional brasileira, priva unicamente dessa nacionalidade.

De fato:

Sob a Carta de 1988 o filho de pai ou mãe brasileira não registrado, no exterior, em repartição brasileira competente mantém apenas a nacionalidade de seu registro de origem. Pode, porém, a qualquer tempo, optar pela nacionalidade brasileira, o que, em ocorrendo, lhe dá a condição de brasileiro nato.”[9] (grifos não constam do original)

No entanto e a despeito de todos esses achados altamente comprometedores de situações jurídicas, até então tidas como perfeitas e acabadas, e também de personagens nelas envolvidas, o maior de todos os impactos que resulta do exame atento e criterioso deste caso é perceber que a cada nova investida, mais irregularidade se perscruta, muito embora essas noções somente ao custo de gestões de governo, provocadas de modo particularmente eloquente de parte de líderes dos Estado norte-americano, fossem possíveis cogitar finalmente em desprestígio do sistema de cooperação internacional direta levado a efeito pela Convenção de Haia que, até aqui, no caso e em tantos outros, simplesmente não funcionou.

Pois, foi justamente de uma manifestação pró-ativa desses líderes estrangeiros que está permitindo encontrar uma solução definitiva e justa para o caso, consoante se divisa proximamente para dar cabo de vez às denominadas “ciladas dialéticas”[10] cujo escopo é desviar as atenções da essência das coisas em favor de argumentos puramente estéticos e nada pacificadores.

Explico. Todas as causas referentes à nacionalidade, efetivas ou potenciais, atuais ou iminentes, principais ou preparatórias e, ainda, judiciais ou administrativas, carecem sempre de desaguar perante um juiz federal, nos termos do artigo 109, inciso X, da Constituição Federal. É cediço dizer que o disposto no artigo 32, parágrafo 4º, da Lei 6.015/1973 (Registros Públicos), que trata, em concreto, da competência da Justiça Federal para conhecer dos pedidos de opção de nacionalidade brasileira, deve ser interpretado à luz da norma constitucional de regência, acima referida, para alcançar todo o espectro de causas que digam respeito ao mesmo assunto; de sorte que a dúvida registral que se venha a instalar a respeito do ato de trasladação de certidão estrangeira de nascimento para viabilizar futura opção de nacionalidade deve ser levado à consideração daquela Jurisdição (federal comum) e jamais ao Juízo do Estado, salvo unicamente se para retificar, meramente, o que já se acha registrado de forma legítima. Fora disso, a competência é do juiz federal e a sua ausência em algum processo de registro do tipo não apenas invalida a assentada, de pleno Direito, como a torna juridicamente inexistente.

E não é por uma razão interpretativa de caráter mais ou menos ousado, ou mesmo corporativo, que se vai justificar esse entendimento que favorece a Justiça Federal diante dessas causas contra toda uma tradição que se vinha observando no país na matéria registral, ordinariamente submetida ao controle corrigente e jurisdicional da Justiça dos Estados-membros da Federação brasileira. A solução, antes, é encontrada pela própria Lei (artigo 32, parágrafo 2º, Lei 6.015/73), lida sob a inafastável influência da Constituição Federal de 1988 (artigo 109, incisos III e X).


Assim sendo, consistindo a “trasladação” de que trata a mesma disposição da Lei dos Registros Públicos (já agora pelo seu parágrafo 1º) num procedimento prévio, ou preparatório, de natureza administrativa, que vai suportar e servir de base para um futuro pedido de opção de nacionalidade a ser enfrentado perante a Justiça Federal, sucede que também compete a essa Jurisdição, exclusivamente, conhecer dos expedientes que, por meio de procedimento de dúvida, devam ser considerados para fins da prática do ato registral antes referido. Portanto, só um juiz federal poderia ter determinado o registro de uma tal trasladação para garantir o exercício da opção de nacionalidade brasileira, a tempo e modo.

Ademais, a abalizada e mais recente jurisprudência aplicável à matéria é precisamente nesse sentido, a saber:

Competência. Transcrição do termo de nascimento ocorrido no estrangeiro. Mãe brasileira que não estava a serviço da pátria. Menor residente no Brasil. Opção provisória. Artigo 12, I, “c”, Constituição.

Compete à Justiça Federal a apreciação de pedido de transcrição do termo de nascimento de menor nascida no estrangeiro, filha de mãe brasileira que não estava a serviço do Brasil, por consubstanciar opção provisória de nacionalidade a ser ratificada após alcançada a maioridade (artigos 12, I, “c”, e 109, X, da Constituição)”

(STJ – CC 18.074/DF [96/0051450-0] – 2ª Seção – Rel. Min. César Asfor Rocha, DJU 17/11/97)

Desse modo e conforme resulta evidente que a trasladação de que se trata é nula ou juridicamente inexistente, sucede que a situação do menor em apreço, nacional norte-americano, é inteiramente ilegal no país e assim não deixou de sê-lo desde o instante em que se houve retido indevidamente no território nacional desde o ano de 2004.

Ademais, falar em consolidação de situação sócio-afetiva gerada do e no cativeiro é um completo non-sense. Não cabe sequer comentar, salvo por alguma hipótese psicanalítica que sugerisse algum tipo de patologia da mente (Síndrome de Estocolmo, por exemplo). Aqui, porém, não se tem esse foco.

Estabelecido, então, o reconhecimento do fato segundo o qual não há espaço lógico-jurídico e nem ético-moral para considerar que o menor em apreço é um duplo nacional, mas somente um nacional estrangeiro e que, mantido mediante sequestro (Convenção de Haia) em território brasileiro, pela própria genitora, ora falecida, contra todas as solicitações suasórias de retorno daquele que, pela razão da própria nacionalidade e também da paternidade, o reivindica de modo firme e determinado (atitude que o Estado brasileiro corrobora, mas sob certas dificuldades institucionais), tem residência habitual no Estado norte-americano, resta avaliar sua situação como estrangeiro em território nacional.

Pois bem. Certo que o ingresso do infante, ainda que junto de sua mãe brasileira, em férias, não duraria mais do que o prazo regulamentar de presença estrangeira, a título de turista, em território nacional (90 dias), ocorre que sua condição de “pequeno turista” já se encerrou, não sendo o caso de conceder-lhe visto para permanência sob qualquer condição, em face do que preceitua a regra do artigo 7º, inciso I, da Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980 (Estatuto do Estrangeiro). Em outras palavras, o Brasil não valida a admissão de menores de 18 (dezoito) anos em seu território sem que esteja acompanhado do seu responsável legal ou de uma autorização expressa para esse fim que o supra.

Ora, conforme a parte que exercita a guarda provisória do menor em território brasileiro não reúna aptidão legal para exercer, exclusivamente, esse poder-dever sobre a criança sob seus cuidados de fato, repita-se, de nacionalidade norte-americana, é o caso, pelo menos em tese, de posse irregular de menor. Esse quadro retoma o debate sobre a sua subtração do ambiente habitual e da pátria bem como, principalmente, do então corresponsável e hoje guardião exclusivo do mesmo (por força de decisão da Justiça do seu país, adotada após a retenção ilícita aqui debatida), de quem o menor jamais deveria ter sido levado e aqui permanecido em situação inteiramente ilegal, à luz da Convenção de Haia.


É claro que não se pode esperar muito de um cenário estabelecido sob tais circunstâncias. Deve-se avançar. Porque não é razoável que as instituições se petrifiquem ao talante dos ímpios e de quantos se arvorem ao voluntarismo de achar que podem mais do que a organização social estabelecida, apesar de nossos medos, de nossos preconceitos e até de nossas cavilações. Tudo isso tem de ceder às conveniências de Estado que não são minhas, não são dos procuradores, não são dos constituintes e nem dos advogados, realmente não são de ninguém e são de todos ao mesmo tempo. Um país à deriva de ordem é primitivismo.

Bem por isso, se as cláusulas da Convenção de Haia são civis para preferir, no combate ao sequestro internacional de crianças, as soluções pacíficas e voluntárias, deixando de enxergar certas delinquências associadas a esse pano de fundo, de outro lado o Estado requisitado não tem como e porque abandonar seu próprio ordenamento jurídico para deixar de aplicar as sanções legais enquadráveis às variadas espécies que se tornaram conhecidas, provadas e passam a reclamar solução própria que possa ser exigível da espécie, de acordo com as suas circunstâncias apuradas caso-a-caso no devido processo legal.

Outrossim, parece duro descrever – e de fato o é -, que a hipótese versada no caso é de imediata deportação do menor ao seu país de origem sem prejuízo das demais implicações legais em compensação ao vexame do qual foi vítima o infante. A hipótese é a dos arts. 57, parágrafo 2º, e 7º, inciso I, do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80), c/c os artigos 98, parágrafos 1º e 2º, e 99, do Decreto 86.715, de 10 de dezembro de 1981. A hipótese também se coaduna com a regra do artigo 7º, alínea “h”, do Decreto 3.413, de 14 de abril de 2000, que trata da promulgação no Brasil da Convenção sobre Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, concluída em Haia no ano de 1980, desde que adotadas providências, tidas como indispensáveis, que assegurem o retorno da criança em foco sem perigo ou maiores constrangimentos. Aliás, um dever ao qual solenemente se obrigou o Estado da República Federativa do Brasil.

Eis a única alternativa, realmente eficaz, de compatibilizar as necessidades urgentes pela devolução do menor em foco ao seu Estado natal, que lhe confere uma nacionalidade e onde se acha estabelecida a sua residência habitual, seu ambiente sócio-educacional e os seus familiares paternos (o genitor atualmente detém a guarda exclusiva do mesmo), nada obstante a injustificada resistência da parte materna, representada pelos seus sucessores em colaborar com o Brasil no sentido de cumprir a sua parte na Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, concluída em Haia, bem como a burocracia judiciária de nosso país.

É o que se deve proceder de imediato, em face dos termos dos artigos 98, parágrafos 1º e 2º, e 99, do Decreto 86.715/81, também e principalmente pelo bem da criança em foco, atendendo ao caráter administrativo do ato.[11]

Deste modo, o Estado brasileiro só não cumpre a norma convencional se não o quiser, certo de que possui instrumento legal bastante para proceder com a deportação do menor estrangeiro em situação irregular no país, além de plena justificação moral e também jurídica. Não fazê-lo pode significar motivo a retaliações internacionais e até denúncia por descumprimento de cláusula de cooperação a que se obrigou.

Para um país que tem a pretensão de ser líder na América Latina e até assentar no Conselho de Segurança da ONU, parece imprevidência acumular episódios de descumprimento da Convenção de Haia e, no caso em particular, deixar de proceder com o ato sugerido.


[1] Rodas, João Grandino (1990): A nacionalidade da pessoa física. Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 20.


[2] Conjunto de princípios e regras que tratam do “…vínculo jurídico-político de direito público interno, que faz da pessoa um dos elementos componentes da dimensão pessoal do Estado” (Pontes de Miranda (1970): Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969. 2ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, T. 4, p. 352)

[3] Rodas, João Grandino (1990): A nacionalidade da pessoa física. Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 40.

[4] A opção de nacionalidade tem sido entendida pela Doutrina como sendo a cláusula constitucional “potestativa” que dá ensejo ao cidadão adquirir originariamente, por seu desejo próprio, a nacionalidade brasileira, como se nascido no Brasil fosse.

[5] O menor aludido, tendo nascido no estrangeiro e contando, hoje, oito anos de idade, está abrangido pela regra do artigo 95, do ADCT, redação do artigo 2º, da EC 54/2007. O quadro, porém, não se altera porque, afinal, o mesmo não foi registrado, originariamente, em repartição diplomática ou consular brasileira acreditada no estrangeiro, mas na sucessão do ofício de registro local (país do nascimento), sendo, por isso, nacional estrangeiro, enquanto não vier a residir, legitimamente e com animus residendi, em território nacional e a qualquer tempo opte pela nacionalidade brasileira. Ora, cativo, pelo sequestro a que se vitimou, nem pode, ante a menoridade, optar validamente pela nacionalidade brasileira, nem há quem, no Brasil, legitimamente, possa fazê-lo em sua representação.

[6] No sentido de desprezado pelo genitor, porque não é de modo algum razoável sugerir esse acontecimento diante das circunstâncias da matéria as quais, inclusive, gerou um cenário de cooperação internacional à luz da Convenção de Haia. E que periclita agravar-se, ante a suposta recusa do Brasil em fazer retornar, de imediato, o menor ao seu país de origem (EUA, onde mantém residência habitual) que aqui se encontra ilegalmente por iniciativa de sua genitora, ora falecida.

[7] Ceneviva, Walter (1999): Lei dos registros públicos comentada. 13ª edição. São Paulo, Saraiva, p.85.

[8] Como consta, por exemplo, da Norma 149 e do Provimento 23/99, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo (Loureiro F, Lair Silva; Loureiro, Claudia Regina Magalhães (2007): Notas e registros públicos. São Paulo, Saraiva, p. 176.); e, no Estado de Pernambuco, o Provimento 3/2004, da Corregedoria Geral da Justiça (publicado no DOE em 11/11/2004)

[9] Ceneviva, Walter (1999): Lei dos registros públicos comentada. 13ª edição. São Paulo, Saraiva, p. 86.

[10] Nogueira, Roberto Wanderley (2006): O problema da razoabilidade e a questão judicial. Porto Alegre, FABRIS Editor, p. 129-133.

[11] A dicção de Gilmar Ferreira Mendes e outros é a seguinte: “A medida [deportação] é de caráter administrativo e não impede que o estrangeiro, desde que satisfeitas as condições regulares, volte a entrar no País.” (Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet (2008): Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo, p. 723.

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