Família de Sean

Disputa envolve lei brasileira, americana e tratado

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10 de março de 2009, 10h42

Para julgar quem é a verdadeira família do garoto Sean Goldman — disputado pelo pai americano e pelo padrastro brasileiro —, as Justiças do Brasil e dos Estados Unidos terão que resolver um impasse jurídico, que mistura as legislações do Brasil, dos Estados Unidos e os tratados internacionais. Estão em jogo leis que tratam do sequestro internacional de menores, da consanguinidade, da paternidade socioafetiva e da proteção psicológica e emocional da criança, entre outras. Os elementos a serem considerados no caso são tão complexos que dividem opiniões até mesmo de especialistas que trabalham juntos no mesmo escritório.

Os advogados Jamil Abdo e Estela Franco, do escritório Abdo, Abdo & Diniz Advogados Associados, são um exemplo disso. Especialista em Direito Internacional, Jamil Abdo aposta que o pai biológico, o americano David Goldman, deve ficar com a criança. “O direito do pai é consanguíneo, ninguém pode tirar isso dele”, afirma. Além disso, o fato de a falecida mãe do garoto, Bruna Bianchi, ter sequestrado a criança em 2004 e a trazido ao Brasil sem o consentimento do pai, exige a análise do caso à luz da Convenção de Haia, que qualifica o crime.

A especialista em Direito de Família Estela Franco discorda. Ela acredita que o garoto Sean já tem no padrastro, o advogado João Paulo Lins e Silva, a figura paterna, e que tirá-lo desse contexto poderia causar danos psicológicos. “O Direito de Família e da Infância brasileiros, desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, vem primando pelo interesse superior da criança e pelo princípio da dignidade”, diz.

Apesar de sua posição, Jamil Abdo afirma ser próximo dos avós maternos de Sean. “Muitos ficaram surpresos com o que penso, mas sou pai e defendo o que é justo”, afirma. Para ele, nem mesmo o pior tipo de processo que um pai pode sofrer — uma ação de destituição de pátrio poder, que tira do genitor a responsabilidade pela criança — tem o poder de anular a paternidade. “É por isso que muitas mães presas criam os filhos no presídio”, explica.

Até o pedido de indenização feito por David Goldman contra a família no Brasil tem uma explicação para Abdo. Como o valor pedido teria sido baixo para os padrões americanos nesse tipo de ação — Goldman pediu US$ 150 mil, quando são frequentes processos de mais de US$ 2 milhões nesses casos —, a intenção seria a de forçar que Sean fosse levado aos EUA, onde uma medida cautelar expedida no país poderia dar ao pai a guarda do filho. “Esse valor só cobriria o custo judicial. Foi uma ação estratégica”, diz. A tática poderia dar certo, já que, em território americano, não dependeria de uma chancela da Justiça brasileira, mas a suposta tentativa não vingou e terminou em um acordo.

Hoje com oito anos, Sean já passou três com o padrasto. Esse tempo, segundo a advogada Estela Franco, foi o suficiente para criar laços socioafetivos entre os dois. “Por esse motivo, uma mudança radical seria marcante para o garoto, que tem uma rotina, uma língua e vínculos afetivos como referenciais”, explica. Para ela, analisar o caso apenas do ponto de vista da consanguinidade é um retrocesso. “A socioafetividade é uma construção baseada na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Não é um pai o que a criança procura, mas uma figura paterna”, diz.

A questão criminal, no entanto, ainda pode prejudicar as intenções da família brasileira, segundo a advogada. “Pela Convenção de Haia, essa criança estaria irregular no Brasil.” Porém, como há um conflito de normas, o caso pode parar nos tribunais internacionais. “Algo tem que ser feito rapidamente, caso contrário a criança será retirada do país devido a um requisito formal”, alerta. A advogada lembra, porém, que é contraditório os EUA falarem sobre a convenção. “Eles não assinaram acordos sobre adoção, por exemplo.”

Quem é o pai

Sean nasceu em 2000 nos Estados Unidos, onde David Goldman e Bruna moravam. Em junho de 2004, Goldman autorizou Bruna e o filho a passarem férias no Rio de Janeiro. A passagem de volta estava marcada para 11 de julho de 2004. Dois dias depois, ela ligou dizendo que não retornaria com o filho aos EUA e disse que o pai só veria a criança novamente se aceitasse o divórcio na Justiça brasileira. Bruna entrou então com uma ação na Justiça do Rio para ter a guarda do filho e contratou o advogado João Paulo Lins e Silva para conduzir o processo. Casou-se com ele em 2007, mas morreu durante o parto da filha deste casamento no final de 2008.

O pai biológico moveu então um processo judicial pela guarda da criança, já que, com a morte da mãe, seu direito como pai seria líquido e certo. Ele também registrou o sequestro do filho nos termos da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, de 1980 — a Convenção de Haia. Por esta convenção, o Brasil deve localizar a criança e promover sua devolução para que o caso seja julgado pela Justiça do país onde o menor morava antes. É por força dessa convenção que a União atua no caso e defende que Jean volte a morar com o pai nos Estados Unidos.

O padrasto também entrou com uma ação, pedindo o reconhecimento da paternidade afetiva e a substituição do nome do pai biológico pelo seu na certidão de nascimento de Sean. O advogado conseguiu a guarda provisória do menor, além de obter uma liminar na 13ª Vara Cível do Rio proibindo o jornal Folha de S.Paulo e o site criado por David, Bring S. Home, de veicularem qualquer coisa sobre o caso.

Brecha internacional

Esse tipo de disputa internacional é mais frequente do que se pensa, como diz o advogado Jamil Abdo. Só no escritório são conduzidos mais de 20 casos semelhantes. A maioria é de pais que, propositalmente, levam os filhos sem o conhecimento do companheiro para países onde a lei não considera o sequestro do filho uma contravenção. “O mais comum são os Emirados Árabes Unidos. Tenho sete casos envolvendo sequestros para lá”, conta. Por considerar a autoridade do homem superior à da mulher, a Justiça do país não concede pedidos de busca de menores emitidos por outros países, a pedido das mães.

Na Alemanha, a dificuldade é a falta de assinatura da Convenção de Haia. Em um caso defendido por Abdo, uma mãe brasileira pedia à Justiça a devolução do filho levado pelo marido. Mesmo sendo a apreensão de menores considerada prioridade no mundo todo, como não havia acordo firmado entre os países nesse sentido, a ação acabou arquivada. “Depois que cresceram, as meninas voltaram ao Brasil e hoje moram com a mãe”, conta o advogado.

Um dos casos que ainda dão trabalho ao escritório é o de um pai que viajou em férias para os EUA, levando os três filhos, todos menores. Ao desembarcar, uma discussão deu início a uma guerra judicial entre ele e a mãe das crianças. Mesmo tendo assinado uma autorização permitindo a viagem dos filhos — exigência legal internacional —, a mãe denunciou à polícia que eles haviam sido sequestrados pelo pai. A Justiça gaúcha mandou o pai trazer as crianças de volta, mas ele recorreu aos tribunais americanos, que rejeitaram a ordem brasileira, alegando soberania. No entanto, a mãe conseguiu o que queria. “Autoridades policiais daqui abordaram as crianças nos EUA na casa do pai durante sua ausência e as trouxeram sem passaporte, o que é irregular. Foi tipicamente um sequestro”, afirma Abdo. O caso ainda tramita no Judiciário.

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