Público infantil

Liberdade de expressão não protege propaganda

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7 de março de 2009, 9h03

Na lida diária da promotoria do consumidor em São Paulo, tenho me deparado frequentemente com a questão da extensão da liberdade publicitária em confronto com os direitos do consumidor e, de um modo amplo, com direitos inerentes à cidadania. Dentre estes, os direitos de crianças e adolescentes, feridos ou ameaçados pela publicidade, são cada vez mais recorrentes nas pautas de discussões. Dispensados os rodeios, creio que esse debate pode ser proposto em termos objetivos: impor limites à publicidade (para impedi-la de se dirigir a crianças) significa violação da liberdade de expressão prevista no artigo 5º, IX, da Constituição da República?

A resposta adequada — que desde logo adianto ser negativa — requer reflexão sobre duas premissas básicas: O que é liberdade de expressão? E o que é e faz a publicidade dirigida ao público infantil? Há constitucionalistas, como José Afonso da Silva, que vêem na liberdade de expressão um “aspecto externo” de outras liberdades, como as liberdades de pensamento ou de credo. Diremos, então, que a liberdade de expressão é instrumental de outras liberdades. Afinal, inútil que eu possa pensar livremente se não puder expressar ou comunicar esses pensamentos de modo igualmente livre.

No entanto, a própria Constituição estabelece limites substanciais dessa liberdade, ao identificá-la como “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. Todos somos livres para expressar nossos pensamentos em geral, qual a nossa produção intelectual, científica, artística, filosófica e religiosa. Faz-se fundamental verificar se uma peça publicitária é ou não um exemplar dessa expressão.

Aqui a resposta é simples, porque a publicidade que nos interessa, para efeito desta singela análise, é a publicidade comercial. Não tratamos aqui, afinal, de coisas ontologicamente distintas, como a propaganda eleitoral, o anúncio de um culto ecumênico ou a divulgação de um evento científico. O foco de nossa atenção, por agora, é exclusivamente a publicidade comercial, assim entendida toda forma de comunicação social massificada tendente a persuadir o maior número de pessoas ao consumo de determinado produto ou serviço.

Dada a sua finalidade precípua, a publicidade não tem a finalidade de promover o debate de idéias, a contraposição de opiniões díspares, o confronto de análises sobre determinado objeto. Ao contrário, a publicidade trabalha, por definição, baseada em uma idéia única: a concepção de que o destinatário da mensagem deve adquirir o produto ou serviço do anunciante.

Como anotou Yves de La Taille, ilustre professor do Instituto de Psicologia da USP, em parecer que emitiu sobre o Projeto de Lei 5.921/2001, o objetivo da publicidade é “penetrar a psique alheia” para “transformá-la em benefício próprio”. Nela, portanto, o autor da publicidade não externa um pensamento seu, não professa um credo pessoal, não manifesta sua intimidade sensível por meio da linguagem artística. Não se trata de expressão na acepção do artigo 5º, IX, da Constituição. Portanto, não é possível cogitar a violação dessa garantia constitucional quando se pensa em sustentar a ilicitude ou em, ao menos, regulamentar a publicidade no que concerne ao público infantil.

Essa ontologia da atividade publicitária recomenda outra sorte de reflexão, que deve agora tomar por foco o seu destinatário. O pensamento, em todas as dimensões, deve estar livre. Isso é garantia constitucional, como se sabe (artigo 5°, IV). A invasão da psique do indivíduo, com a manipulação de seu pensamento, pode ser, então, a antítese da liberdade do pensamento.

Os mais autorizados especialistas no assunto garantem que a criança é desprovida da plena capacidade de percepção, cognição e juízo de valor sobre as mensagens publicitárias. A depender da idade, sequer está apta, por exemplo, a diferenciar a publicidade de programação televisa. Resulta que a invasão de sua psique (para incutir-lhe o desejo e impulso de consumo), mais que influenciar, vem lhe tolher substancialmente a liberdade de pensamento, para lhe impingir sorrateiramente idéias, vontades e valores que não são genuinamente seus ou de seus responsáveis. Em palavras breves, quando dirigida ao público infantil, é a publicidade que viola a garantia constitucional da liberdade de pensamento da criança.

No conflito aparente (Carlos Maximiliano ensina que o Direito não encerra reais antinomias) entre a garantia de uma liberdade da criança e qualquer outra garantia, ainda que de grandeza constitucional, aquela prevalece sobre esta, segundo critério estabelecido pelo próprio Poder Constituinte, para quem a proteção à criança goza de “absoluta prioridade” (artigo 227).

Mesmo que outras abordagens conduzam igualmente à ilicitude da publicidade dirigida ao público infantil (por exemplo, a aplicação do princípio da identificação, previsto no artigo 36 do Código do Consumidor), os fundamentos de ordem constitucional aqui resumidos bastam para afirmá-la.

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