Aula de Direito

Especialista traça histórico do Direito Constitucional

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7 de março de 2009, 5h21

O advogado Luís Roberto Barroso, mestre em Direito pela Yale Law School e professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, participou do programa Aula Magna da TV Justiça para falar sobre “O novo Direito Constitucional e a Constitucionalização do Direito”. O programa será reprisado neste sábado, às 21h30.

Durante a palestra, o professor traça um histórico do constitucionalismo no Brasil. “O Direito Constitucional alçado ao centro do sistema jurídico passou nas últimas décadas por um conjunto vertiginoso de transformações que mudou o modo como o Direito é pensado e é praticado no mundo romano-germânico de uma maneira em geral”, explica.

Segundo ele, nos últimos 20 anos, aconteceu em diversos países romano-germânicos e no Brasil a aproximação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional. “A verdade é que o Direito Civil, nos últimos anos, atirou-se apaixonadamente nos braços do Direito Constitucional e foi correspondido. Na vida, melhor que um grande amor só um grande amor correspondido.”

Barroso observa, no entanto, que o Direito Constitucional não pode ser aplicado a todas as relações da vida. Se isso acontecer, brinca, “as moças bonitas e os rapazes bonitos, quando quiserem namorar, vão ter que abrir uma licitação, pois esta é a forma que o Direito Público impõe quando a oferta é menor que a procura”.

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Sou professor de Direito Constitucional desde o tempo em que isso não dava prestígio a ninguém. O Brasil era um país no qual antes se valorizava a lei ordinária, o regulamento, a portaria, o aviso ministerial. Quando alguém queria minimizar um problema, dizia: “Essa é uma questão constitucional”. Meu pai, preocupado com o meu futuro também costumava dizer: “Meu filho, precisa parar com esse negócio de fumar, ser flamengo, e o Direito Constitucional também não vai levá-lo a parte alguma. Estuda Processo Civil”. A verdade, no entanto, é que nós demos a volta por cima. Hoje em dia, já não há mais nada de verdadeiramente importante que se possa pensar ou fazer em termos de Direito no Brasil, que não passe pela capacidade de trabalhar as categorias do Direito Constitucional. E, portanto, na introdução dessa minha exposição é assinalando este fenômeno que foi a passagem da constituição para o centro do sistema jurídico. Nos últimos 20 anos, aconteceu no Brasil um fenômeno que na Alemanha aconteceu logo depois da 2ª Guerra Mundial. Na Espanha e em Portugal, ao longo da década de 70, que foi a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, onde ela passa a desfrutar não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, de uma supremacia axiológica.

Quando a Constituição passa para o centro do sistema jurídico, dali é deslocado o bom e velho Código Civil, que por décadas a fio figurava no centro do sistema jurídico com o verdadeiro Direito comum. A própria dualidade radical entre Direito Público e Direito Privado se atenua a partir do momento em que a Constituição passa para o centro do sistema jurídico. Esta entronização da Constituição faz com que ocorra um fenômeno conhecido como “Filtragem Constitucional”, ou como “Constitucionalização do Direito”, que é a leitura de todo o Direito infraconstitucional, de todo o ordenamento ordinário à luz da Constituição que, portanto, passa a ser uma lente, um filtro através do qual se deve ler e interpretar as categorias e os institutos de todos os ramos do Direito.

Neste ambiente, neste universo toda a interpretação jurídica passa a ser, direta ou indiretamente, interpretação constitucional. Interpreta-se a constituição diretamente sempre que uma determinada pretensão é fundada em um dispositivo constitucional. Para solucionar aquela demanda o intérprete terá de aplicar a Constituição. Porém, aplica-se também indiretamente a Constituição em toda operação de aplicação do Direito infraconstitucional. Por duas razões. Ao aplicar uma norma ordinária o intérprete sempre realizará incidentalmente uma operação de controle de constitucionalidade, e em segundo lugar, porque o sentido e o alcance de qualquer norma infraconstitucional deverá ser fixado à luz dos valores e dos princípios constitucionais. Portanto, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional.


Para quem vem de onde eu venho esta é a vitória total e absoluta do Direito Constitucional. Mas devemos ser humilde na vitória, devemos ser janela e não espelho. Portanto, o Direito Constitucional passa a ser a janela pela qual se olha para o mundo e para o Direito de uma maneira geral, e não um espelho que é uma forma de olhar para si próprio.

O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do Século XX. É nele que se condensam as grandes promessas da modernidade, poder limitado, dignidade da pessoa humana, centralidade dos direitos fundamentais, justiça material, tolerância e, quem sabe até, felicidade. Nós vivemos uma era em que o constitucionalismo democrático passou a ser um modo de observar o Direito, um modo de desejar o mundo. A Constituição passou a ser um instrumento operacional indispensável para todos os operadores jurídicos, sejam os juízes, sejam os ministros, sejam os advogados, sejam os membros do Ministério Público.

A importância do Direito Constitucional pode ser ilustrada por uma passagem que me foi narrada pela professora Cármen Lúcia Antunes Rocha, hoje ministra do Supremo Tribunal Federal. O episódio é da época em que ela era professora na PUC de Minas. Ela contou que saía da faculdade e havia deixado a sua constituição no banco do carona, parou no sinal, veio um malfeitor, um meliante, meteu a mão pela janela e furtou a Constituição da professora Cármen Lúcia, porque essas coisas não acontecem só no Rio não. Pois ela me narrou: “Sr. Roberto, aquilo me deu uma alegria, já se furtam Constituições no Brasil. Antigamente a gente deixava a Constituição em cima da mesa e apareciam uma, duas, três, quatro. Todo mundo aproveitava para se livrar da sua. Agora não, agora a Constituição já é um objeto de cobiça, um objeto de desejo”. Este é um bom exemplo alegórico de como a Constituição passou a desempenhar um papel fundamental na vida dos operadores jurídicos de uma maneira em geral. O Direito Constitucional alçado ao centro do sistema jurídico passou nas ultimas décadas por um conjunto vertiginoso de transformações que mudou o modo como o Direito é pensado e é praticado no mundo romano-germânico de uma maneira em geral.

Essas transformações do Direito Constitucional contemporâneo podem ser narradas tendo como marcos três pontos bem definidos: um marco histórico, um marco filosófico e um marco teórico. O marco histórico deste novo Direito Constitucional tem início com a redemocratização da Europa, logo depois da 2ª Guerra Mundial na Alemanha, depois na Itália. Tem como marcos ainda a redemocratização da Espanha e de Portugal ao longo da década de 70. O marco histórico deste novo Direito Constitucional no Brasil é a Constituição de 1988, que completou 20 anos, e que ajudou a se fazer uma travessia extremamente bem sucedida entre nós, de um estado autoritário para um estado democrático de direito.

O marco filosófico deste novo Direito Constitucional é o pós-positivismo, é a superação da filosofia jurídica positivista, muito característica dos sistemas romano-germânicos e muito arraigada no pensamento jurídico brasileiro. No entanto, nos últimos 20 anos vive-se no Brasil um processo de superação dessa visão positivista, não para desprezar a relevância da lei escrita, não para desprezar a importância da segurança jurídica, mas para constatar que nós vivemos uma época de reaproximação entre o Direito e a Ética, entre o Direito e a Filosofia. É neste ambiente, neste universo que se vive no Brasil um momento de reconhecimento de normatividade a princípios como o da dignidade da pessoa humana, como justiça, como o devido processo legal, que são na verdade a porta de entrada dos valores no sistema jurídico, de modo que o pós-positivismo nos liberta da dependência absoluta do texto legislado para reconhecer que há normatividade nos valores e nos princípios ainda quando não escritos. O pós-positivismo identifica também uma era em que a dignidade da pessoa humana passa a ser um princípio fundamental do qual se irradiam os diferentes direitos fundamentais. O ambiente do novo Direito Constitucional é este ambiente pós-positivista de normatividade dos princípios de centralidade dos direitos fundamentais de reaproximação entre o Direito e a Ética.


E, por fim, o marco teórico do novo Direito Constitucional identifica três grandes mudanças de paradigmas que revolucionaram a prática do Direito Constitucional nos últimos 50 anos no mundo, e nos últimos 20 anos no Brasil.

A primeira dessas mudanças de paradigma foi o reconhecimento de força normativa à Constituição, que é uma norma jurídica. Superamos, portanto, com atraso, mas não tarde demais, o modelo europeu tradicional em que a Constituição era compreendida como um documento político, uma convocação a atuação do legislador ou do administrador, um documento que não era dotado de aplicabilidade direta e imediata. Neste modelo superado, os direitos não eram irradiados diretamente a partir da Constituição, mas somente a partir do momento em que havia a intermediação do legislador regulamentando o que estava previsto na Constituição. Esta visão é hoje inteiramente derrotada do ponto de vista histórico, e as normas constitucionais são aplicáveis direta e imediatamente no limite da sua densidade jurídica. Isso pode parecer uma obviedade para as novas gerações, mas esta é uma revolucionária novidade no Brasil dos últimos 20 anos.

A segunda mudança de paradigma situada dentro desse marco teórico foi a expansão da jurisdição constitucional, no mundo de uma maneira geral e no Brasil de um modo particular. No mundo, depois da 2ª Guerra Mundial venceu o modelo norte-americano de constitucionalismo, que é fundado na centralidade da Constituição, no controle de constitucionalidade e, portanto, na supremacia judicial, porque o controle de constitucionalidade é feito por um órgão judicial. O modelo europeu tradicional era de centralidade da lei e de supremacia do parlamento, porque como não havia controle de constitucionalidade. A última palavra acerca da interpretação da Constituição era dada pelo parlamento. Portanto, a partir de 1948, 50, na Europa, de uma maneira geral, este modelo de centralidade da lei e de supremacia do parlamento é historicamente derrotado pelo modelo de centralidade da constituição e de supremacia judicial na interpretação da constituição.

Todos os países europeus democráticos, um a um, praticamente, com algumas exceções como o Reino Unido e Holanda, passaram a adotar Tribunais Constitucionais e a permitir o controle de constitucionalidade das leis. Este modelo na Europa é processualmente diferente do modelo adotado nos Estados Unidos, mas o conceito de que a última palavra na interpretação da Constituição é dada pelo Poder Judiciário foi o que prevaleceu. No Brasil, desde a primeira Constituição republicana vigorava o modelo norte-americano de controle incidental de constitucionalidade por todos os órgãos judiciais. O controle de constitucionalidade torna-se verdadeiramente importante no Brasil a partir da Constituição de 1988 que manteve o controle incidental, mas expandiu notavelmente o controle por via das ações diretas dos processos objetivos notadamente pela ampliação dos legitimados ativos previstos no artigo 103. Sob a Constituição de 1988 houve um boom de controle de constitucionalidade que torna o modelo brasileiro muito peculiar, porque algumas das grandes questões controvertidas postas ao debate público no Brasil chegam direta e rapidamente ao Supremo Tribunal Federal por meio de ações diretas. Esta é a segunda grande transformação teórica. A jurisdição constitucional passa a desempenhar um papel de grande distinção no mundo, de uma maneira geral, e aqui no Brasil de uma maneira particular.

A terceira e última mudança teórica que revolucionou a prática do Direito Constitucional e do Direito de uma maneira geral foi o desenvolvimento de uma nova interpretação constitucional, de novas categorias para a interpretação constitucional. Aqueles elementos tradicionais da interpretação jurídica gramatical, histórico, sistemático e teleológico, embora não estejam derrotados, se relevaram insuficientes para a interpretação constitucional e, neste âmbito da dogmática, da hermenêutica constitucional, foram desenvolvidas ou aprofundadas novas categorias como o emprego da técnica de cláusulas gerais, a normatividade dos princípios, o reconhecimento das colisões de normas constitucionais sejam normas de princípios, sejam normas de direitos fundamentais, a necessidade da ponderação como técnica de decisão e a reabilitação da argumentação jurídica como fundamento de legitimidade das decisões criativas do Poder Judiciário.


A aula de hoje não versa o tema da interpretação constitucional e consequentemente não vou aprofundar essas categorias, porque seria um desvio impossível, mas gostaria de enfatizar que quem passou os últimos 20 anos sem estudar o Direito, especialmente o Direito Constitucional, não vai entender nada do que está acontecendo. As categorias mudaram, as pré-compreensões mudaram e, portanto, quem não dominar estas novas ideias e estes novos conceitos não vai compartilhar da pré-compreensão e não vai conseguir ter uma interlocução adequada. Pouco como uma passagem que li recentemente, um pouco rude a alegoria, mas ela é bem expressiva. A namorada virava para o namorado e dizia: “Você acha que eu tenho pouco peito?” E ele responde: “Não. Acho que dois está bom.” Esta é tipicamente a situação em que duas pessoas estão falando a mesma língua, mas não estão dizendo a mesma coisa. Por quê? Porque a pré-compreensão do que estava sendo tratada era verdadeiramente diferente. Portanto, e aqui encerramos o segundo capitulo da minha exposição, o Direito Constitucional no mundo romano-germânico passou por um conjunto vertiginoso de transformações que tem como referências estes três grandes marcos. O marco histórico, que no Brasil é a Constituição de 1988. O marco filosófico, que é o advento de uma cultura filosófica pós-positivista. E como marco teórico essas três grandes mudanças de paradigma a que me referi, a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de novas categorias para a interpretação constitucional.

É neste universo e neste ambiente que se situam dois fenômenos que muito marcadamente assinalam o Direito Constitucional no Brasil contemporâneo, que são a constitucionalização do Direito e a judicialização das relações sociais e das grandes controvérsias políticas da sociedade, um fenômeno muito típico dessa era que nós vivemos no Brasil. Eu gostaria de começar pela constitucionalização do Direito identificando o significado dessa expressão. Constitucionalização do Direito significa a irradiação dos valores, dos princípios e das regras da Constituição por todo o sistema jurídico. A expressão não significa propriamente o fato de que a Constituição brasileira tem uma série de normas de Direito Administrativo, de Direito Penal, de Direito Civil, de Direito Processual. Essa é uma face do fenômeno. Estou me referindo ao fenômeno da ida da Constituição ao Direito Civil, ao Direito Administrativo, ao Direito Processual, modificando o sentido e o alcance das normas desses domínios e, portanto, modificando o modo como estas normas são interpretadas.

Nos tempos modernos toda interpretação jurídica é interpretação constitucional e interpretam-se todos os ramos de Direito conforme a Constituição. Isto vale para o Direito Civil, para o Direito Administrativo e para o Direito Penal. Esses são os três ramos que eu gostaria de brevemente utilizar como exemplos. O Direito Civil foi o que talvez tenha sofrido mais intensamente o impacto da constitucionalização. O professor Paulo Bonavidez tem uma frase feliz: “Ontem os Códigos, hoje a Constituição.” Frase que foi complementada pelo professor Eros Roberto Grau, quando disse: “A vitória da Grécia sobre Roma, a revanche da Grécia sobre Roma.” Foi a volta do Direito Público, os gregos foram os grandes criadores do espaço público e do Direito Público, ao passo que os romanos foram os que desenvolveram o espaço privado e o Direito Privado. Vivemos uma época de constitucionalização do Direito de uma maneira geral e, especialmente, a constitucionalização do Direito Civil.

Nos últimos 20 anos aconteceu em diversos países romano-germânicos e no Brasil, muito particularmente, esta aproximação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional. A verdade é que o Direito Civil nos últimos anos atirou-se apaixonadamente nos braços do Direito Constitucional e foi correspondido. Na vida, melhor que um grande amor só um grande amor correspondido. Há um fenômeno na paisagem jurídica contemporânea que é a constitucionalização do Direito Civil, na dupla vertente, seja a da vinda de institutos e categorias do Direito Civil para a Constituição, seja a ida da Constituição para a reinterpretação destes institutos. Como exemplos da primeira afirmação, a Constituição revolucionou os modos de constituição de família. Já não é mais apenas o casamento, mas existe a família da união estável, existe a família monoparental e logo ali na esquina do tempo vai haver as famílias resultantes das uniões homoafetivas, a matéria inclusive já está posta perante o Supremo Tribunal Federal. Vieram para a Constituição a função social da propriedade, da onde se extrai, também, a ideia de função social do contrato, a igualdade entre os cônjuges. O homem já não é mais o chefe da sociedade conjugal. A igualdade entre os filhos está na Constituição. A ideia de boa-fé objetiva foi extraída do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Há na Constituição uma revisão de inúmeros conceitos tradicionais do Direito Civil, inclusive três dos conceitos mais clássicos: família, propriedade e contratos.


Além disso, a Constituição com o princípio da dignidade da pessoa humana determina novo sentido e alcance para institutos tradicionais do Direito Civil, opera-se aquilo que a doutrina tem referido como sendo uma re-personalização do Direito Civil consequente a uma despatrimonialização. Ser, volta a ser mais importante do que ter. Este é o processo histórico da constitucionalização do Direito Civil e da incidência do princípio da dignidade da pessoa humana. Na lição Kantiana as coisas têm um preço, as pessoas têm dignidade e, consequentemente, o Direito, antes de assegurar a subsistência dos valores patrimoniais, ele existe para assegurar a prevalência dos valores existenciais. Alguém poderá olhar à realidade a volta e ter dúvidas que o ser tenha verdadeiramente passado a ser mais do que o ter. É preciso ter em linha de conta o momento em que os direitos fundamentais passam para o centro do sistema jurídico, que as ideias, inclusive as grandes ideias, levam um tempo razoalvemente longo, desde o momento em que elas conquistam corações e mentes até o momento em que elas se tornam realidade concreta. A centralidade dos direitos fundamentais e a própria dignidade da pessoa humana no centro do sistema, inclusive do Direito Civil, não significa que um dia as coisas passaram a ser assim. Significa que o processo civilizatório e o espírito humano chegaram a um novo patamar ético e que, portanto, agora é uma questão de concretização. Essas vitórias históricas levam muito tempo para se concretizar. A igualdade racial levou séculos, a igualdade da mulher não tem 50 anos em mais de 10 mil anos de civilização. É preciso ter uma certa indignação para fazer o processo social avançar e uma certa resignação para não ficar amargo. O princípio da dignidade da pessoa humana passou para o centro do sistema e hoje em dia ele condiciona, verdadeiramente, a interpretação do Direito Civil.

Outro desenvolvimento doutrinário importante ligado a constitucionalização do Direito Civil é a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas. Este é um dos grandes temas da atualidade, saber se e em que medida os direitos fundamentais previstos na Constituição condicionam as relações privadas. Pode uma escola judaica recusar a matrícula de crianças não judias? Pode uma escola católica tradicional recusar a matricula de filho de pais divorciados? Pode o locador despejar o locatário, porque ele pratica no imóvel cultos umbandistas? Pode um contrato de trabalho prever que um empregado não fará nenhum tipo de manifestação política? Pode um clube de futebol proibir o ingresso nas suas dependências dos jornalistas dos veículos “a” e “b”, porque estão fazendo muitas críticas ao clube? Está é uma questão concreta que foi posta perante a Justiça do Rio de Janeiro. Um clube de futebol invocando a circunstância de que o estádio é propriedade privada e que o grande princípio do Direito Privado é o da autonomia da vontade, o clube de futebol disse: “Eu não quero que os jornalistas dos veículos “a” e “b” entrem aqui”. E pela cultura tradicional privatista esta é a regra que deveria prevalecer. Quais são os direitos fundamentais afetados neste exemplo que acabo de dar? São o direito de trabalho do jornalista, a liberdade de expressão do jornalista, o direito de informação do público. E aqui é uma questão de saber: em uma relação privada que se estabelece a partir do direito de propriedade e da autonomia da vontade, é possível alguém invocar em seu favor um Direito Constitucional fundamental previsto na Constituição?

A resposta me parecerá afirmativa, mas aqui há um ponto de equilíbrio que só pode ser estabelecido caso a caso. O quanto de direitos fundamentais serão aplicados às relações privadas terá de ser determinado com ponderação, levando em conta o direito fundamental em jogo e o princípio da autonomia da vontade, que é um princípio igualmente constitucional e que rege o Direito Privado. Embora a constitucionalização do Direito seja um fenômeno positivo, ninguém acha bom constitucionalizar todos os espaços da vida. Há espaços que devem ser reservados à intimidade e à vida privada sem intromissão do Direito Constitucional, aliás sem intromissão de direito algum. E, portanto, ninguém imaginará que um pai que encontre um livro de interesse de um de seus quatro filhos não possa levar só um livro para casa, tenha que levar quatro senão estaria violando o princípio da isonomia. Não parece razoável. Se formos aplicar a todas as relações da vida o Direito Constitucional e o Direito Público as moças bonitas e os rapazes bonitos quando quiserem namorar vão ter que abrir uma licitação, pois está é a forma que o Direito Público impõe quando a oferta é menor que a procura, e, consequentemente, ninguém imaginará que esta seja a forma adequada de se estabelecerem relações pessoais. Quem imaginava evocar a Constituição para este fim, vai ter que caprichar na oratória, em outros atributos, beleza interior. Mas ninguém achará que a constitucionalização possa ocupar todos os espaços da vida. Estes, portanto, são alguns exemplos do impacto do Direito Constitucional sobre o Direito Civil com o fenômeno repersonalização e da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privada.


No Direito Administrativo a constitucionalização e a centralidade dos direitos fundamentais produziram igualmente um impacto que merece ser assinalado. Os mais antigos aqui presentes foram educados no Direito Administrativo levando em conta três grandes princípios: o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, o princípio da legalidade e o princípio da incindicabilidade do mérito do ato administrativo. Éramos felizes e não sabíamos, porque nada disso funciona como funcionava antes. O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, ainda quando se possa defender que ele subsiste, e até isso se tornou polêmico, jamais poderá significar a supremacia do interesse duerário da pessoa jurídica de Direito Público. A única supremacia que se admite no estado democrático é a supremacia do interesse público primário, que identifica os valores constitucionais. A supremacia do interesse público sobre o direito privado ainda vale, desde que o estado seja o protagonista dos direitos constitucionais ou de interesses constitucionais. O interesse patrimonial do estado, o interesse da pessoa jurídica — União, estado ou município — não desfruta de nenhuma supremacia. Ele vai disputar e ser ponderado com o interesse privado. À luz do quê? À luz dos valores da constituição. E atender a um direito fundamental privado contra um interesse público será prestigiar os valores constitucionais, de modo que a lógica autoritária da supremacia do poder público sobre um indivíduo já não prevalece. Hoje em dia o poder público só desfruta de supremacia se e na medida em que esteja atuando em nome da Constituição. Segundo princípio, que era o princípio da legalidade, pelo qual o administrador só pode fazer aquilo que a lei autoriza e determina. Este princípio já também não subsiste como antes. Em primeiro lugar, porque, como vimos anteriormente, existe normatividade fora da norma legislada. Mas, sobretudo, porque independentemente da lei, o administrador público pode e deve fazer valer a Constituição. Portanto, a ideia de legalidade vem sendo substituída por uma ideia de juridicidade. O administrador deve atuar em nome do Direito e, mesmo quando não haja legalidade expressa, ele pode e deve atuar em nome da Constituição.

Quem acompanhou a Ação Declaratória de Constitucionalidade sobre a proposta resolução do Conselho Nacional de Justiça que vedava o nepotismo, o emprego de parentes até o terceiro grau em cargos em comissão e funções gratificadas, quem for ver este acórdão relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto, verificará que está era a discussão. Os Tribunais Estaduais alegavam que o Conselho Nacional de Justiça sem lei, portanto, sem observar o princípio da legalidade, estava criando uma restrição de Direito. A tese que prevaleceu Supremo Tribunal Federal foi a de que a vedação do nepotismo não precisava de lei, porque o núcleo essencial do princípio da moralidade e do princípio da impessoalidade já traziam como consequência imensurável aquele tipo de restrição. Independentemente de lei, o administrador agiu certo ao aplicar Direto e imediatamente a Constituição estabelecendo em nome do princípio da moralidade uma vedação de conduta. A ideia de legalidade já não transmite com propriedade a extensão em que o Direito passou a afetar a atividade administrativa e, portanto, fala-se hoje em um princípio da juridicidade, que inclui a Constituição e até mesmo os princípios que não estejam escritos em lugar nenhum, mas que estejam incorporados ao processo civilizatório e a percepção da comunidade jurídica de uma maneira em geral. Por fim, a ideia de que apenas os aspectos legais formais do ato administrativo eram controláveis pelo Poder Judiciário também não subsiste mais em uma era em que princípios da razoabilidade, da moralidade, da eficiência permitem sim o controle da discricionariedade do ato administrativo, o controle do mérito, um controle que deve ser exercido com parcimônia para que o Judiciário não sobreponha a sua vontade política à do administrador, mas certamente não vigora mais a máxima de que apenas matéria os aspectos de legalidade podem ser controlados.


Em matéria de Direito Penal a constitucionalização produz imensas consequências. Uma está posta e outra chegou ao Supremo Tribunal Federal. A discussão posta perante o Supremo Tribunal Federal acerca da legitimidade ou não da interrupção da gestação na hipótese de feto anencefálico, de feto inviável, envolve a ideia e o fenômeno da constitucionalização do Direito Penal. O que se pede é que o Supremo interprete conforme a Constituição os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto para declarar que eles não incidem nesta hipótese. Por quê? Criminalizar a interrupção da gestação neste caso violaria o princípio da dignidade da pessoa humana. Esta é a tese da ação, pelo princípio da dignidade humana não se deve obrigar uma mulher que faz o diagnóstico da inviabilidade fetal no terceiro mês de gestação, a levar aquela gestação até o 9º mês fazendo com que passe por todas as transformações físicas e psicológicas por quais passam uma mulher durante a gestação preparando-se para ter um filho que ela não vai ter. Pede-se que o Supremo resguarde o direito de quem queira levar a gestação a termo, mas também assegure o direito de quem queira interrompe-lo. Ninguém pede para declarar a inconstitucionalidade da norma que criminaliza o aborto. O que se pede é para dizer que ela não deve incidir neste caso, porque se incidir estaria violando ou estará violando a Constituição.

Segundo exemplo interessante de matéria penal, esse também chegou ao Supremo, diz respeito a seguinte situação: um diretor teatral encenou, no teatro municipal do Rio de Janeiro, a peça “Cristão e Isolda”. Atrasou muito, parece que a encenação não foi muito feliz e ao final dessa encenação no teatro municipal, quase três horas da manhã, o público vaiou estrepitosamente aquela montagem. Quando o diretor subiu ao palco, que é própria dessas edições, a vaia aumentou e ecoava pela Cinelândia, pelo centro do Rio de Janeiro, naquela madrugada silenciosa. O diretor indignado com a reação do público virou-se de costas para a platéia, abaixou as calças e exibiu as nádegas para uma platéia que achava já ter visto tudo de ruim que era possível ver naquela noite. Havia membros do Ministério Público presentes na exibição. O diretor foi denunciado criminalmente por ato obsceno, a denúncia foi recebida e houve um Habeas Corpus contra o recebimento da denúncia, que não foi concedido. Foi-se ao segundo grau e não foi concedido, foi-se ao STJ e não foi concedido. Nesse incrível sistema brasileiro chegou-se ao Supremo Tribunal Federal que, ao contrário das outras instâncias decidiu pelo trancamento da Ação Penal. A decisão foi conduzida pelo Ministro Gilmar Mendes, hoje presidente do Tribunal. Segundo ele, aquele fato era atípico, para o meu gosto até bem atípico, mas a linha de argumentação desenvolvida pelo Supremo foi a de que aquela hora da noite, naquelas circunstâncias, e para um público adulto aquela manifestação não deveria ser interpretada como um ato obsceno, mas como um exercício de liberdade de expressão e, consequentemente, o direito fundamental a liberdade de expressão paralisava naquele caso específico a incidência do dispositivo do Código Penal que tipificava o ato obsceno. Esta é a normatividade dos princípios, sobretudo dos princípios constitucionais em que um princípio constitucional paralisa a incidência concreta da norma constitucional, sem declará-la inconstitucional. Naquele caso, se a norma incidisse produziria um resultado constitucionalmente inaceitável.

Portanto, e aqui eu encerro estes três domínios que queria demonstrar o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, do Direito Administrativo e do Direito Penal, as categorias tradicionais desses ramos como dos demais ramos do Direito, todas elas foram afetadas de maneira drástica pela leitura constitucional do Direito infraconstitucional. Lê-se o Direito infraconstitucional à luz dos valores, dos princípios, das regras, das categorias básicas do Direito Constitucional. Com isso, chegamos ao fenômeno seguinte, subsequente ao da constitucionalização, que é o da judicialização das relações sociais e das questões controvertidas, que como disse, é uma circunstância muito brasileira do tempo presente. Eu falei alguns minutos atrás do querido professor Paulo Bonavides, e há dias atrás eu o encontrei e ele me narrou uma história deliciosa, que vale a pena compartilhar. Ele disse que estava em um aeroporto, o professor Paulo Bonavides que é um ícone do Direito Constitucional brasileiro, talvez esteja caminhando para os 90 anos, com grande vitalidade intelectual e física ainda, disse que estava no aeroporto e veio na direção dele um cavaleiro já bem idoso, apoiado em uma bengala com muita dificuldade, e virou-se para ele e disse: “Professor Paulo Bonavides, eu fui seu aluno.” Ele disse: “Não. Não. Deve haver algum engano aqui.” Um fenômeno da atualidade brasileira é a judicialização das grandes questões nacionais, das grandes, das médias, e das pequenas questões nacionais, a vida brasileira se judicializou de uma maneira em geral. Há muitas razões que explicam este fenômeno, penso que a democratização, a recuperação de prerrogativas pelo Poder Judiciário, que vive um momento de vertiginosa ascensão política e institucional. A Constituição criou novos direitos, criou novas ações, criou novas hipóteses de legitimação ativa, tudo isso aumentou a demanda por Justiça na sociedade brasileira e, em uma sociedade civilizada, a Justiça deve ser procurada perante o Pode Judiciário. Devo dizer, mas essa seria uma outra discussão, que parte da demanda por Justiça da sociedade brasileira que não é atendida pelo Poder Judiciário é atendida por outras instâncias, a imprensa no Brasil, as comissões parlamentares de inquérito, e pior ainda, os grupos de extermínio.


Há no Brasil um conjunto de processos, mais ou menos, patológicos que decorrem, ainda, da incapacidade do Judiciário de atender a toda a demanda por justiça da sociedade. Mas o Judiciário vem se aparelhando e vem procurando se capacitar para ocupar esses espaços, não é um processo fácil, é um processo que precisa enfrentar muitos obstáculos. Hoje no Brasil as grandes questões, algumas grandes políticas públicas de governo tiveram seu último capítulo no Supremo Tribunal Federal. A Reforma da Previdência, uma emenda constitucional importante do governo, foi decidida a constitucionalidade ou não da cobrança da contribuição dos inativos pelo Supremo Tribunal Federal, a Reforma do Poder Judiciário, a criação importante do Conselho Nacional de Justiça teve seu último capítulo perante o Poder Judiciário. Questões relacionada a separação de poderes, o que podem e o que não podem fazer as comissões parlamentares de inquérito, podem quebrar sigilo, mas não podem decretar indisponibilidade de bens. Quem demarcou esses espaços foi o Supremo Tribunal Federal. Se o Ministério Público pode ou não pode conduzir diretamente a investigação criminal quem vai decidir vai ser o Supremo Tribunal Federal. Questões importantes associadas a direitos fundamentais como a progressão de regime no caso de crime hediondo, pesquisas com células-tronco embrionárias, interrupção de gestação, liberdade de expressão e manifestação de ódio racial, todas essas são ou foram questões já postas perante o Supremo Tribunal Federal.

Questões do dia-a-dia da vida, legitimidade ou não da cobrança de assinatura básica de telefonia, tarifa de transportes públicos, mensalidade dos planos de saúde, a vida brasileira se judicializou amplamente e isto trás uma questão importante, e que era negligenciada no Brasil, mas agora passou à ordem do dia que é a da legitimidade democrática do Poder Judiciário. O que o Judiciário pode e deve, e o que o Judiciário não pode e não deve. A eterna disputa em todos os países que têm jurisdição constitucional entre o ativismo judicial e a alto-contenção judicial. Sempre observando que a grande objeção que se faz a atuação do Judiciário, sobretudo quando declara uma norma inconstitucional é, a assim chamada, dificuldade contra-majoritária. O quê que quer dizer isso? Quer dizer que o Judiciário, que é composto de membros não eleitos, atua para invalidar atos do poder legislativos cujos membros foram eleitos, e do Presidente da República, por vezes eleito por mais de 50 milhões de voto. Há uma tensão entre a atuação do Judiciário e o processo político majoritário nessas situações. O Judiciário vive no Brasil um momento importante de expansão, porque a democracia não é apenas a garantia do governo da maioria, não é apenas o princípio majoritário, a democracia é também o respeito aos direitos fundamentais, inclusive os das minorias, e a preservação das regras do jogo democrático. Portanto, no debate acerca da legitimidade democrática da atuação do Poder Judiciário é preciso ter em conta que o Judiciário deve ter a auto contenção para respeitar o processo político majoritário, mas deve ter a ousadia de assegura os direitos fundamentais mesmo contra a vontade abusiva das minorias.

Preciso concluir. Conta-se que George Washington fez o menor discurso de posse da presidência dos Estados Unidos, com 130 palavras, e que William Harrison fez o maior discurso de posse, com oito mil palavras pronunciadas em uma noite fria e tempestuosa em Washington. Willian Harrison morreu trinta dias depois de uma gripe gravíssima que contraiu naquela noite. Esta é a maldição que recai sobre os oradores que falam além do seu tempo. Constitucionalização do Direito e a judicialização que ocorre no Brasil, elas são legítimas na medida em que o Judiciário atue para suprir o déficit de legitimidade dos outros poderes para assegurar direitos fundamentais e para assegurar as regras do jogo democrático. O Judiciário, no entanto, não pode suprimir o jogo político nem a prevalência da vontade majoritária quando ela seja legitimamente manifestada. Uma frase feliz do Gilberto Amado: “Querer ser mais do que se é, é ser menos”. Portanto, o Judiciário deve ter ousadias e deve ter prudências. O difícil é saber quando é que se deve ter a ousadia e quando é que se deve ter prudência. A vida, a jurisdição constitucional, a vida institucional, é um permanente equilíbrio, é como a vida das pessoas, dos professores, dos advogados, dos cidadãos, a vida institucional é um equilíbrio permanente. Estamos sempre atravessando uma corda bamba, às vezes inclina um pouco para cá, às vezes se inclina um pouco para lá, mas está sempre se equilibrando. Às vezes, a platéia vendo de baixo pode achar que o equilibrista está voando. Não tem problema. A vida é feita de algumas ilusões. Mas o equilibrista, ele tem que saber que ele está se equilibrando, porque se ele achar que está voando ele vai cair, e na vida real não tem. Portanto, a jurisdição constitucional deve ser exercida como a vida deve ser vivida, com valores, com determinação, com uma dose de senso de humor, com humildade. Muito obrigado.

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