Voto judicial

Cassação de mandato não sacrifica a democracia

Autor

  • Walter Ceneviva

    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor entre muitas outras obras do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas na Folha de S. Paulo.

7 de março de 2009, 13h03

Um cidadão é eleito para o Legislativo e para o Executivo pelo voto do povo. O juiz, não. É nomeado, depois de concurso público ou por indicação do Executivo aprovada pelo Senado.

Tem sido questionado se o juiz pode destituir o eleito, já que o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna diz que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição". Mais dois incisos do artigo 60, parágrafo 4º, devem ser transcritos para que, depois, seja possível sugerir ao leitor que medite a respeito.

Nesse parágrafo, está escrito que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico" e a "separação dos Poderes". Essa última regra nos faz retornar ao artigo 2º ("são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo o Executivo e o Judiciário").

Chega de citar dispositivos. É hora de duas perguntas: se todos os textos acima forem para valer, é possível que um dos poderes constitucionais interfira na ação de outro? Se isso acontecer, teremos de reconhecer que a democracia está sendo sacrificada? Minha resposta, de bate-pronto, é direta: sim, para a primeira questão, e não, para a segunda.

A razão lógica está na condição de poderes harmônicos. A harmonia só se explica se houver intromissões aceitas, bem resolvidas e sem desrespeito no exercício pleno, mas cauteloso, dos poderes que cabem a cada um dos segmentos da estrutura imaginada por Montesquieu, na chamada tripartição dos poderes.

O defeito da resposta, em tese, está em que, admitida a intromissão, torna-se inevitável a tendência ao abuso. Mesmo nos Estados Unidos, onde a democracia formalizou as estruturas mais sólidas do governo do povo, pelo povo e para o povo, os abusos aconteceram ao longo do tempo, sendo recente o exemplo de George W. Bush.

É possível conter o abuso? Não. Não é, conforme definiu Lord Acton, há mais de cem anos: o poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente. Nesse caso, o leitor vai desanimar: a situação criada é impossível de remediar. Talvez seja, mas há certas intromissões impossíveis de serem evitadas se quisermos manter a dignidade da vida democrática.

A Justiça Eleitoral pode cassar o mandato de senadores, deputados, governadores e até do presidente da República, pessoas eleitas pelo povo. Como admitir que um juiz retire do cargo, aquele que o povo – em cujo nome todo o poder é exercido – elegeu? Em parte a resposta se acha, outra vez, na harmonia. Mas não é só. Imaginemos uma hipótese bem típica. Um governante de Estado é eleito após se envolver em processo de corrupção eleitoral, devidamente comprovada, mostrando que a escolha popular pôs um eventual delinquente no governo.

O povo nem sempre acerta. Tanto que o clamor popular, no exemplo mais extremado, preferiu Barrabás, embora o outro indicado fosse claramente melhor. Se não houve a possibilidade de compensar o entusiasmo do voto pela punição dos criminosos, poderemos incorrer no erro de eleger uma desproporcional maioria de delinquentes. Por isso, o Judiciário tem o poder de julgar. Julgar todos, em condições de igualdade. Sem conflito.

Artigo publicado originalmente neste sábado (7/3), no jornal Folha de S.Paulo.

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    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor, entre muitas outras obras, do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas, na Folha de S. Paulo.

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