Democracia ou continuísmo?

OAB-SP não pode virar instrumento de poder

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6 de março de 2009, 11h39

Temos, a cada três anos, na segunda quinzena do mês de novembro, do último ano do mandato, tanto na OAB Federal quanto em suas seccionais e subseções, eleições dos seus membros. Todos os candidatos são eleitos por voto direto, mediante cédula única e votação direta dos advogados regularmente inscritos, e passam a ocupar os cargos para os quais foram eleitos a partir de primeiro de janeiro do ano seguinte ao da eleição, salvo o Conselho Federal, onde se iniciam os mandatos em primeiro de fevereiro.

O instituto da reeleição faz parte deste processo democrático, na medida em que qualquer pessoa já empossada em cargo na OAB pode pleitear, ao seu final, um novo mandato, de forma consecutiva, continuando no exercício de suas atribuições.

Contudo, é imperativo que analisemos, de forma fria, a partir de qual momento este instituto deixa de servir aos propósitos democráticos e passa a servir meramente ao poder, ou aos interesses de quem o detém. Democracia e poder, eis duas idéias que vivem em constante tensão. O princípio democrático legitima o poder, que, entretanto, pode ser utilizado para a perversão da própria democracia.

Temos como resultado desta tensão o próprio princípio da separação dos poderes — ou princípio da divisão de funções estatais, nomenclatura hodiernamente preferida pela doutrina —, essência da estrutura organizatória do Estado e desenvolvido à luz de um pessimismo antropológico que dominou a Inglaterra no século XVII, o qual deu base à conclusão de que o poder ilimitado, ainda que democraticamente legitimado, tende a corromper-se [1].

Pior: corrompido o poder, é quase que inevitável que se corrompa o próprio processo democrático, tendo em vista que quem detém poder, detém da mesma forma uma série de recursos que os demais concorrentes em uma eleição, v.g., não possuem.

Como assevera Tocqueville [2], “[a] intriga e a corrupção são vícios naturais aos governos eletivos. Quando, porém, o chefe do Estado pode ser reeleito, tais vícios se estendem indefinidamente e comprometem a própria existência do país. Quando um simples candidato quer vencer pela intriga, as suas manobras não poderiam exercer-se senão sobre um espaço circunscrito. Quando, pelo contrário, o chefe do Estado mesmo se põe em luta, toma emprestada para o seu próprio uso a força do governo”.

Não que sejamos contrários ao instituto da reeleição, que possibilita aos eleitores de qualquer disputa eleitoral o livre exercício de sua vontade, ao lhe garantir o direito de manter o governante que desempenhou seu papel com qualidade. Possibilita também a continuidade, perfectibilização e até conclusão de projetos de governo e políticas.

Contudo, não se pode permitir que continuidade se transforme em continuísmo. Ocorre o continuísmo quando mera ambição política fundamenta o desejo do governante de permanência no poder, sendo utilizados pelo governante os meios que o poder lhe disponibiliza.

Nas palavras de Sousa, o termo continuísmo significa “a própria pretensão de permanecer no poder” [3].

A manutenção no poder por longa data possibilita ao governante não apenas a utilização dos mecanismos do Estado ou órgão que dirige, mas também a formação de relações de influência com outros indivíduos que contribuem com os interesses do governante, para que este contribua com os seus. Esta capacidade de induzir outros a agir de acordo com sua vontade é um dos traços mais fortes do continuísmo, e com maior potencial de deturpação da democracia.

Como bem indica Bobbio, “não existe Poder, se não existe, ao lado do indivíduo ou grupo que o exerce, outro indivíduo ou grupo que é induzido a comportar-se tal como aquele deseja. (…) O Poder social não é uma coisa ou a sua posse: é uma relação entre pessoas” [4].

Com o passar do tempo, o continuísmo passa a penetrar de forma cada vez mais acentuada na própria estrutura do Estado, órgão ou instituição governada, podendo-lhe causar prejuízos graves e consequente implosão.

Temos claros exemplos em nosso país do potencial nocivo do continuísmo. Basta que olhemos para um dos maiores clubes de futebol do Brasil, o Club de Regatas Vasco da Gama, que em razão de anos e anos de continuísmo de uma direção mais interessada na manutenção do poder do que na direção do clube, foi rebaixado neste último campeonato brasileiro, sem que tenha boas perspectivas de evolução para este ano de 2009. O próprio Sport Club Corinthians Paulista pode ser listado como exemplo de instituição prejudicada pelos efeitos da manutenção por longa data de uma mesma direção.

Não se pode admitir que a OAB, órgão de importância inquestionável na defesa da democracia em nosso país e cuja função não se limita à atuação corporativa, isto é, à defesa de seus membros, abrangendo também função institucional consistente em “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas” [5], seja utilizada como instrumento de poder, assim transformada por meio do continuísmo de seus dirigentes.

O ministro Eros Grau, em seu voto na ADI 3.026, registrou passagem do parecer da lavra de Dario de Almeida Magalhães, elaborado em 1950, que bem caracteriza a importância do órgão:

“A posição da Ordem, o papel que lhe foi destinado, a autoridade de que se reveste, as responsabilidades que lhe incumbem, não se coadunam, porém, com qualquer forma de tutela administrativa. A sua independência lhe é essencial, não só à dignidade da instituição, como à própria eficiência de sua atividade peculiar. A independência da Ordem protege a independência do advogado; e sem esta a profissão decai de sua grandeza e de sua utilidade social.”

Hialino, portanto, é o potencial destrutivo da má administração do órgão e da desvirtuação de sua função para o próprio Estado Democrático de Direito.

É salutar a alternância de poder, que possibilita (i) a adoção de novos modelos de administração, (ii) a quebra de paradigmas ultrapassados, (iii) a visão da instituição por outra perspectiva e (iv) a auditoria de administrações passadas.

Este último ponto merece atenção especial, tendo em vista que, um governo que tem perspectivas eternas, não teme a sua futura fiscalização, o que contribui para a corrupção do poder. Já a alternância deste, quando vista como futuro próximo, funciona como um freio, inibindo a administração ímproba de seus dirigentes.

Como pôde ser visto em matéria veiculada pela revista Veja [6], assinada por Expedito Filho, que abordou a possibilidade de um terceiro mandato do atual presidente do nosso país, o próprio Lula mostra-se contrário a um terceiro mandato, por considerar a alternância de poder importante para a democracia.

À luz de tais fatos, estando às portas da eleição deste ano para o cargo de presidente da OAB da seccional de São Paulo, não nos parece, portanto, que a (re)reeleição do atual presidente — já em seu segundo mandato, pleiteando um terceiro — seja o caminho que melhor concretize o princípio democrático, mas apenas e tão somente traduza os interesses de quem detém o poder.

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