O padre e a opinião

Contra ideias estapafúrdias melhor antídoto é o debate

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2 de março de 2009, 16h17

A polêmica entrevista concedida pelo bispo Richard Williamson, contrariando a versão oficial sobre o holocausto, reacendeu a discussão sobre a criminalização de algumas condutas, como a tipificação penal na Alemanha da chamada “mentira de Auschwitz”.

Como os boatos ajudam a agigantar a polêmica, é salutar ler ou ouvir a entrevista para verificar que não se trata propriamente de negar o assassinato de judeus na Alemanha nazista; a controvérsia suscitada pelo bispo refere-se às câmaras de gás, as quais, na opinião dele, há evidências históricas de que não existiram.

Há neste episódio questões a serem distinguidas. Os fatos históricos são parte integrante da personalidade do homem, sua lembrança é muitas vezes a razão de existir de um povo, é o traço que marca sua identidade cultural. Um povo sem memória não é povo; não há cultura sem história, de modo que, para existir, o homem necessita acreditar em algumas verdades históricas indubitáveis, aquelas verdades históricas que assumem a mesma certeza dos fatos naturais. Não se pode eliminar esta prerrogativa do homem sem mutilar-lhe o espírito.

Como o holocausto, em poucas décadas, se tornou um fato inerente à história judaica, qual a escravidão no Egito e o suicídio coletivo em Massada, é natural que, ao se depararem com um bispo negando a existência das câmaras de gás, milhares de judeus e também de não judeus espalhados por todo o mundo se indignem com o clérigo. Com suas teses, o sacerdote não só ofende um povo, para quem a lembrança do holocausto já é parte indissociável da sua cultura — há até data para lembrá-lo — como investe também contra alguns homens e mulheres ainda vivos cujos pais e até filhos viraram cinzas em campos nazistas, dupla agressão a um povo que não abre mão de enterrar seus mortos.

Os afro-descendentes sentir-se-iam igualmente ofendidos se alguém se atrevesse a negar a escravidão no Brasil, assim como os índios se sentiriam se lhes dissessem que seus antepassados não foram dizimados na América espanhola.

Há duas coisas, porém, a se distinguir. Entre ser o representante do Vaticano persona non grata — ou, como virou moda falar, um sujeito politicamente incorreto — e haver crime na sua conduta, há uma enorme diferença.

Em pleno século XXI não podemos admitir o crime de opinião, por mais vil e torpe que possa ser a idéia manifestada. Não há melhor antídoto contra as idéias estapafúrdias do que o debate, amplo, aberto e democrático. As verdades históricas, assim como os fatos da natureza, estão aí para serem contestados, basta que se apresentem argumentos convincentes, capazes de infirmar as verdades pré-existentes. Não podemos esquecer que a construção do mundo moderno, os avanços tecnológicos, a descoberta do espaço só foram possíveis graças à possibilidade do homem contestar dogmas e verdades pré-estabelecidas.

Pelo fato de ainda estarem abertas as feridas do holocausto, parece difícil aceitar democraticamente a sua contestação, mas basta um distanciamento histórico para percebermos que só o debate democrático permitiu a contestação do dogma milenar de que os judeus mataram Cristo. Sem o debate, os judeus estariam até hoje sendo expiados pelo crime que não cometeram (o Concílio do Vaticano II rompeu com a tradição cristã de atribuir a culpa pela morte de Cristo aos judeus).

Poder-se-á dizer: o que uma coisa tem a ver com a outra? Por que reviver esta questão que parece estar esquecida (embora do filme do Mel Gibson não seja tão antigo assim…)? A correlação entre os dois episódios da história não é tão sem sentido. O anti-semitismo nasce porque os judeus passam a ser acusados de ter matado Cristo. Antes disto, os conflitos entre o povo judeu e seus invasores, não tinham conotação anti-semitica, mas traduzia apenas o movimento de expansão territorial da época pelos povos mais militarizados.

Os pretextos podem ter se diversificado ao longo dos mil e quinhentos anos que vão da morte de Jesus à inquisição, mas a origem do anti-semitismo é indiscutivelmente a morte do judeu de Nazaré. O holocausto, por sua vez, é o ponto culminante de uma onda de anti-semitismo moderno surgida na Europa em meados do século XIX (cujo maior símbolo é sem dúvida o processo contra o capitão Dreyfus). Ambos os eventos, o holocausto e a morte de Cristo, sempre são negados, no caso do primeiro, ou afirmados, no caso do segundo, quando se pretende camuflar um sentimento anti-judaico.

Não queremos confundir alhos com bugalhos. Holocausto é uma coisa e morte de Cristo é outra. Fato é, porém, que mostrar as conseqüências funestas de um fato histórico mal interpretado, como a morte de Cristo (neste sentido, vide a obra de Chaim Cohn, juiz da Suprema Corte israelense “Julgamento e Morte de Jesus”), ajuda a entender como é importante para todos nós, judeus, negros, alemães, enfim, para todos os povos, aceitar o debate em torno das verdades históricas, sem intimidação de ordem jurídico-política aos partidários de qualquer uma das versões.

Os judeus sobreviventes fizeram a sua parte, registrando milhares de depoimentos e testemunhos sobre os horrores nos campos. Prender o bispo não fará vencer o debate; melhor é ouvi-lo e confrontá-lo.

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