Interpretação equivocada

TCU pode inviabilizar projetos com recurso externo

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29 de maio de 2009, 11h08

Uma questão de interpretação constitucional por parte do Tribunal de Contas da União poderá paralisar centenas de projetos com recursos internacionais, tanto para os projetos em execução como aqueles que estão em preparação. No caso concreto, estão em jogo os recursos do Banco Mundial e outros organismos multilaterais de crédito. Conforme publicação do Acórdão 2.690/08 do TCU, no Diário Oficial da União de 1/12/08, Seção 1, página 151, o artigo 42, parágrafo 5º, da Lei 8.666/93, que se aplica às licitações financiadas com recursos de organismos internacionais, é, sob alguns aspectos, inconstitucional.

O artigo 42, parágrafo 5º prescreve que “para realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior”.

Ocorre que os contratos do Banco Mundial preveem a denominada “cláusula de confidencialidade” nos editais, estabelecendo o sigilo do procedimento licitatório desde a abertura das propostas até a outorga – assinatura – do contrato. Essa regra está clara e inequivocamente expressa nas diretrizes do Banco Mundial, especificamente no Capítulo 2.47 – Confidencialidade das Diretrizes para Aquisições Financiadas por Empréstimos do BIRD e Créditos da AID – Agência de Investimento Internacional, com a seguinte redação:

“Confidencialidade. Após a abertura das propostas, qualquer informação relativa ao exame, esclarecimento, e avaliação de propostas, bem como informação relativa a recomendações de adjudicação do contrato só serão fornecidas aos licitantes e a terceiros não envolvidos oficialmente neste processo de avaliação das propostas, após o recebimento da notificação da adjudicação pelo licitante vencedor”.

Vale dizer que o Brasil integra o Banco Mundial, concebido em 1944 em Bretton Woods, que atualmente tem como principal meta a redução da pobreza no mundo em desenvolvimento. O Brasil assinou espontânea e livremente a Convenção de Bretton Woods, aprovada pelo Decreto-Lei 8.479, de 27/12/1945 e promulgada pelo Decreto 21.177, de 27/05/1946. Chamamos a atenção para a redação final do Decreto 21.177: “ficam promulgadas a Convenção sobre o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento, firmadas em Bretton Woods N.H., E.U.A., a 22 de julho de 1944 e apensas, por cópia, ao presente Decreto, as quais serão executadas e cumpridas tão inteiramente como nelas se contêm”.

Nessa direção, o artigo VII, Seção 10, da Convenção de Bretton Woods assinala que “cada membro deverá tomar as medidas necessárias dentro de seu próprio território com o propósito de tornar efetivos, em termos de sua própria lei, os princípios estabelecidos neste convênio e informará o Banco a respeito”.

Ao longo desses 64 anos de criação do Banco Mundial, é o que sempre ocorreu, sem problema algum. Diga-se de passagem que o Brasil foi bastante beneficiado, pois como as regras foram tornadas efetivas, enfim, sempre foram cumpridas, centenas de projetos e bilhões de dólares em investimento com recursos externos desembarcaram em solo pátrio, fomentando o nosso desenvolvimento econômico.

Os tratados internacionais têm os seus pressupostos e um deles é o do consentimento mútuo. Em caso de erro, o Estado que contribuir para o erro não pode invocá-lo. O Brasil assinou o tratado (a Convenção). Portanto, que não se alegue, agora, que desconhecia os seus termos, decorridos 64 anos de Bretton Woods, sob pena de sua violação, implicando em graves consequências à sua imagem perante a comunidade internacional.

O Brasil não pode adotar comportamento similar aos de alguns Estados sul-americanos que, recentemente, se autoatribuiram o direito de quebrar e violar contratos, pois tal procedimento – mudar as regras do jogo – não condiz com a sua crescente respeitabilidade no cenário internacional. É um procedimento inconcebível e pequeno para uma nação que deseja fazer parte do Conselho de Segurança da ONU, assunto que aparentemente nada tem a ver com o tema que se aborda nesta exposição de ideias. Só aparentemente, pois qualquer diplomata ou pessoa com conhecimento mediano conhece o impacto que decisões como essa influem, e muito, no plano internacional.

Enfim, decorridos 64 anos da Convenção e de bilhões de dólares terem aportado nas plagas brasileiras, o TCU passou, subitamente, a entender que a cláusula de “confidencialidade” está em inobservância aos princípios constitucionais da publicidade, do contraditório e da ampla defesa.

Discordando do TCU, não vislumbramos qualquer prejuízo, pois a confidencialidade do procedimento licitatório ocorre apenas da abertura até a publicação da adjudicação do contrato. Nada impedirá que após a adjudicação da proposta os interessados exerçam todos os seus direitos de defesa, se for o caso. O sentido da cláusula de confidencialidade, restrita à fase processual de análise das propostas, tem a finalidade apenas de evitar tumulto processual ou influências indevidas sobre os membros da comissão. Esses fatos são bem conhecidos pela administração pública no Brasil, pois reiteradamente acontecem, prejudicando licitações em curso e impondo atrasos inaceitáveis, em prejuízo da própria sociedade que, em tese, seria a destinatária dos supostos benefícios das regras da licitação brasileira.

A propósito, as diretrizes aplicadas pelo Banco Mundial representam o aperfeiçoamento da experiência acumulada pelo Banco de práticas comerciais internacionalmente aceitas. Suas disposições são obrigatórias porque estão incorporadas ao Acordo de Empréstimo, tornando-se, assim, integrante dele; esse acordo de empréstimo é decorrente de uma série de tratados vigentes, recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro, como o Tratado de Bretton Woods e o Acordo Constitutivo do BID. Importante lembrar que os procedimentos e exigências do Banco Mundial e o de outros organismos internacionais sempre foram adotados e aceitos pelo Brasil que, fazendo parte das Diretorias dos organismos, também participa da elaboração de suas regras.

Assim, como pode o Brasil questionar uma regra que ele mesmo ajudou a fazer? A paralisação desses contratos resultará em grande prejuízo para a União, Estados e municípios brasileiros que tem ou pretendem ter financiamentos com o banco mundial e demais organismos, que têm suas próprias normas. É certo que serão diretamente afetados ou prejudicados Estados que estão com projetos no âmbito do Programa Proágua Nacional, como Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe, pois a idéia é que os procedimentos licitatórios em curso terão que ser adequados às normas de natureza constitucional, segundo o entendimento do TCU, mediante a exclusão da cláusula de confidencialidade. Diz o brocado que “onde há mesma razão, há mesma disposição”.

Como consequência, na prática isso será a suspensão de todos os projetos com recursos do Banco Mundial, pois é certo também que outros programas (além do Proágua) do Banco serão afetados, assim como outros Estados e Municípios (além da própria União) que se habilitaram ou estão se habilitando à obtenção de financiamentos externos, pois o Banco Mundial e os outros bancos multilaterais não aceitarão mudar as suas regras, nem rasgar o Tratado de Bretton Woods. Projetos do PAC que envolvam recursos internacionais poderão ser afetados.

Importante lembrar que essas regras não são feitas exclusivamente para o Brasil, mas para todos os seus países membros. Imagine-se, ademais, o que significa uma carteira internacional, como a brasileira, de cerca de US$ 50 bilhões, parada, sem executar e pagando a comissão de compromisso aos bancos, por um dinheiro emprestado e não desembolsado. Vale dizer, não utilizado pelo Brasil. Perguntamos: de quem é a responsabilidade por esse prejuízo? O Brasil pode se dar ao luxo de pagar por recursos não utilizados, por conta de um problema que ele mesmo está causando?

Por outro lado, jamais se alegou afronta ao primeiro artigo da Constituição, o da soberania, por ocasião da sujeição do Brasil às regras do FMI, organismo que impunha uma série de obrigações que os Estados eram obrigados a cumprir. Essas obrigações eram interferências diretas nas políticas internas, indo verdadeiramente de encontro com o artigo 1, I, da Carta Magna, onde está plasmado o mais importante dos princípios fundamentais: o da soberania.

Não me recordo de nenhuma medida concreta, objetiva, questionando a inconstitucionalidade daquela sujeição ao FMI. Assim, há que se adotar, no presente caso, os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade que, apesar de não se encontrarem expressamente previstos na Constituição de 1988, não é possível afastá-los do sistema constitucional brasileiro, após uma leitura sistemática da Constituição que os permite auferir sua existência. Mais ainda: tratados e acordos internacionais devem ser cumpridos.

Ante o exposto, cabe ao TCU rever sua posição. Segundo o teor do Acórdão 2.690/08, foi dado ciência da decisão, acompanhada do relatório e do voto que a fundamentam, ao Congresso Nacional, por meio de sua Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização. Até o momento, a Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional não tomou qualquer providência que o caso merece. Provavelmente seus técnicos não se deram conta da gravidade do assunto, que é, na prática, a suspensão dos financiamentos do Banco Mundial para o Brasil.

Caso o TCU persista com o entendimento objeto do Acórdão 2.690/08 – equivocado, a nosso ver – caberá ao Congresso Nacional a revisão, com urgência, daquela decisão, sustando-a, por meio do devido decreto legislativo.

Caso contrário, os prejuízos para o Brasil serão enormes, seja na paralisação dos programas, seja no pagamento da comissão de compromisso.

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