Clientes que se virem

Imprensa dá as costas a problemas importantes

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27 de maio de 2009, 14h36

Tudo bem, são assuntos importantíssimos, que merecem figurar com destaque nos meios de comunicação. Mas em que é que sua vida diária será afetada com a solução da disputa entre Petrobras e Receita Federal? Se Cesare Battisti for extraditado ou ganhar refúgio no Brasil, qual a mudança no seu dia-a-dia? Se a Porsche e a Volkswagen se fundirem ou não, fica mais fácil ou mais difícil pagar as contas no fim do mês?

Já temas que interferem diretamente na vida do consumidor de notícias, do cliente dos meios de comunicação, esses costumam ficar mais escondidos — afinal de contas, são temas menores, sem grande charme, e nunca envolvem personalidades de glamour, grandes fortunas ou milionários falidos. Seguro-saúde, por exemplo: fora a distorção que leva os mais velhos, que vivem de aposentadoria e não têm como aumentar sua renda, a pagar muito mais do que os jovens, há outras injustiças que não entram na mídia.

Um caso interessante é o da Interclínicas, que fechou há algum tempo. A carteira de associados foi vendida á Saúde ABC, depois à Avimed, agora à Itálica. A cada mudança de empresa correspondeu um rebaixamento do plano de atendimento do cliente. Quem estava no plano mais alto da Interclínicas hoje está quase no SUS. As mudanças, claro, foram aprovadas pela Agência Nacional de Saúde, ANS; e os clientes, claro, não tiveram o direito de dar qualquer palpite. E, para que não piassem muito, o atendimento ficou suspenso enquanto o plano não foi mudado. São 236 mil pessoas prejudicadas — seis vezes o público do Pacaembu em grandes jogos. E muitos, pela idade, já são discriminados pelos novos planos.

Portabilidade? Nome bonito, né? Mas só existirá a portabilidade se os meios de comunicação se debruçarem sobre o assunto. Se continuarem achando que doença, velhinhos e reclamações não têm charme, não valem matéria, não pagam o custo de mobilizar repórteres, os clientes dos planos — que, por acaso, são também os consumidores de notícias — continuarão nas mãos de quem não tem competência, ou vontade, para cumprir os compromissos que assumiram.

Igualdade perante a lei
A propósito, essa história de portabilidade nos planos de saúde é um pouco esquisita. Não tem sido muito destacado nos meios de comunicação um singelo problema: o de que a portabilidade só vale para quem entrou no plano de saúde de 1999 para cá. Quem entrou antes, para usar a linguagem de Monteiro Lobato, que se fomente. E como quem entrou antes de 1999 tem mais idade, que pague e não bufe. Quem manda não ter escolhido aquele plano excelente que só o Senado pode proporcionar?

Vale a pena respirar?
O empresário Eike Batista, que se orgulha de ser um dos homens mais ricos do Brasil, está instalando uma usina termelétrica a carvão mineral no porto de Pecém, no Ceará. O dinheiro, naturalmente, sairá do BNDES: R$ 1,4 bilhão.

Puxa, há repórteres tão ativos lutando contra o aquecimento global e a poluição! Mas até agora esse trabalho não apareceu. Ninguém vai publicar nada sobre a tremenda poluição causada pelo carvão mineral? Nem vai lembrar que, quando Londres era aquecida a carvão, uma terrível neblina preta, o fog, cobria a cidade, e o índice de moléstias respiratórias era altíssimo? Nem que não tem sentido queimar carvão quando o Brasil enfrenta problemas por não conseguir consumir todo o gás natural que os contratos com a Bolívia nos proporcionam?

Uma usina termelétrica a gás natural não é tão pouco poluente como uma hidrelétrica. Mas, comparada à usina elétrica a carvão, é muito menos nociva. Se o empresário Eike Batista fosse construir com seus próprios recursos uma termelétrica a carvão, caberia aos meios de comunicação criticar a iniciativa, procurar técnicos que oferecessem alternativas menos agressivas ao meio ambiente e pedir ao governo que agisse contra a poluição. E, se é com dinheiro do governo, com o nosso dinheiro, como é que a imprensa silencia?

O gás e o carvão
Exemplifiquemos. Vamos imaginar que, nos fogões domésticos, o gás natural ou o gás engarrafado sejam substituídos por carvão mineral. As casas ficariam inabitáveis. Jornais, TV, rádio e Internet protestariam. E como é que a imprensa aceita que o patrimônio de todos seja mais maltratado do que o patrimônio de cada um?

Maísa
Nesse carnaval todo que se arma contra a presença da garota Maísa no SBT, uma dúvida: algum dos autonomeados protetores de Maísa conversou com ela? Estará a menina se sentindo mal ao fazer TV? Este colunista não assistiu ao programa, apenas leu os comentários; aparentemente, não é nada que uma conversa com o próprio Silvio Santos, uma pessoa inteligente e razoável, recomendando-lhe mais tato, não resolva — e isso sem prejudicar a carreira da menina, sem impedi-la de ganhar uma boa quantia que, mais tarde, lhe será muito útil.

Outra dúvida: nas novelas, há garotinhos e garotinhas que também choram, que também são submetidos a situações de estresse, que enfrentam jornadas de trabalho estafantes — e isso é típico do trabalho na televisão, e inevitável. Há algum deles sendo protegido? Ou a proteção atinge apenas quem trabalha em emissoras menos bem posicionadas em termos de audiência e poder político?

As desprotegidas
Ah, a memória! Shirley Temple (cuja figura os estilistas do SBT procuram repetir em Maísa) ganhou um Oscar com seis anos de idade — era mais nova que a garota do SBT. Aos 21, aposentou-se. Ser uma estrela com tão pouca idade lhe fez mal? Vejamos sua vida mais tarde: foi delegada dos Estados Unidos na ONU, chefe de protocolo da Presidência da República, duas vezes embaixadora, membro da força-tarefa do Governo americano que procurou resolver problemas de refugiados africanos.

Judy Garland começou a carreira no teatro musical com suas irmãs, no grupo Gumm Sisters, aos quatro anos de idade. Fez seu papel mais famoso, a Dorothy do Mágico de Oz, com 16 anos (e ganhou o Oscar). O sucesso lhe fez mal? Até certo ponto, sim; mas sua dependência de drogas (acabaria morrendo por overdose) começou por ordem médica, quando se imaginava que as anfetaminas não fizessem mal.

Liza Minelli, filha de Judy Garland e do diretor Vincente Minelli, foi a recordista da precocidade: participou de seu primeiro filme com um ano e dois meses. Filha de um diretor famoso, filha de uma atriz e cantora famosa, foi estrela a vida toda. Isso lhe fez mal? Liza ganhou seu Oscar por Cabaret e é sucesso até hoje.

E se o Ministério Público de lá tivesse interferido e impedido que Shirley Temple, Liza Minelli e Judy Garland começassem tão cedo sua carreira (ainda mais num lugar tão cheio de drogas e álcool como Hollywood), elas teriam sido mais felizes? "Se” é uma palavra imensa, a maior de todas: nela cabem todas as alternativas, cabem todos os rumos possíveis de uma vida.

Por que, então, não deixar que os pais de Maísa cuidem dela, como é de seu dever e direito?

Olha o preconceito!
A notícia era de uma trombada séria, mas que não provocou grandes ferimentos. Num dos carros, uma moça famosa. E como é que foi identificada?

"(…) a publicitária Maria Christina Mendes Caldeira — ex-mulher do deputado federal Valdemar Costa Neto (PR-SP), envolvido no escândalo do ‘mensalão’, em 2005 (…)”

Acontece que Maria Christina Mendes Caldeira tem vida própria: não pode ser definida pelo ex-marido — a menos que se considere, como antigamente, que mulher só existe em função do pai, do marido ou do filho. Justo ela, que sempre se caracterizou pela independência?

E, embora seja verdade que Valdemar Costa Neto esteve envolvido no escândalo do "mensalão”, que é que tem o mensalão a ver com o caso?

Lembra um pouco aquela história atribuída a um jornal do Interior, que não tinha nenhuma foto do local de um crime que emocionava a cidade. Publicou então um retrato do Duque de Caxias, e esclareceu na legenda: "O Duque de Caxias, em cuja praça ocorreu o crime”.

A função da imprensa
A imprensa americana, a mais rica do mundo, está em crise: até o lendário e centenário The New York Times está vergado sob dívidas. A imprensa européia também sofre: o The Independent, da Grã-Bretanha, está à venda por uma libra (e ninguém até agora fez esta oferta). A imprensa brasileira, muito menor, anuncia fechamentos, demissões, cortes, enxugamentos (como se os jornalistas fossem gotas de suor, removíveis com o passar de um lenço). Há gente que, para sobreviver, busca desesperadamente o apoio do Governo — chegando a oferecer assinaturas pela metade do preço para membros do principal partido governista.

Nestas horas, é bom lembrar uma frase histórica do repórter David Simon, que trabalhou no Baltimore Sun e hoje cria séries de sucesso na TV: "O jornalismo de excelência pode e deve morder qualquer mão que tente alimentá-lo. E deve morder a mão do governo com mais força ainda."

Os vira-casacas
Mudar de partido político pode ser uma coisa razoável. Plínio de Arruda Sampaio, por exemplo, deixou o PT por achar que o partido se tornou conservador demais. Mas, quando um político entra em cinco partidos diferentes em menos de 30 anos, aí não há divergência ideológica que explique. O ex-governador fluminense Anthony Garotinho está chegando agora ao quinto partido, o PR, depois de passar por PT, PDT, PSB e PMDB.

Há certos fatos que a imprensa não pode deixar que passem em branco. Este colunista sugere que, em casos como este, a identificação do político seja completa, com seu partido, Estado e partidos em que já militou. Garotinho seria então identificado nas reportagens como Anthony Garotinho (PR – Rio, ex-PT, PDT, PSB e PMDB). Não é tendencioso, não é ataque pessoal, não é nem uma crítica: é uma maneira de oferecer ao eleitor e consumidor de notícias um retrato preciso da evolução da carreira política do cavalheiro citado.

[Coluna publicada originalmente no site Observatório da Imprensa nesta terça-feira, 26 de maio de 2009.]

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