Ornitorrinco legal

Veto à lei antifumo no ES tem motivos errados

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26 de maio de 2009, 14h00

O veto do governo estadual do Espírito Santo à lei anti-fumo foi tema recente na imprensa local. O governo entendeu que a lei estadual que daria fim aos fumódromos e espaços reservados para fumantes em qualquer ambiente público ou privado seria inconstitucional, pois entraria em conflito com a Lei Federal 9.294/96 que também proíbe o fumo em locais coletivos, mas garante a existência de ambientes reservados aos fumantes e, ainda, que em tema de proteção à saúde a competência para estabelecer normas gerais seria da União.

Mas poderia a insalubre benevolência estabelecida pela Lei 9.294/96, que consente com a existência de fumódromos, preencher com exatidão a dicção constitucional que diz que, no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-ia a estabelecer normas gerais?

Penso que não. O que diz o texto constitucional é que proteção e defesa da saúde, no âmbito da legislação concorrente, outorga competência à União para estabelecer normas gerais. Assim, não há outorga constitucional legislativa concorrente para tolerância de vício danoso à saúde, por óbvio. A causa de inúmeras doenças e sua tolerância ou manutenção não se confundem com proteção e defesa da saúde.

Quando o texto constitucional refere-se à competência da União para estabelecimento de normas gerais a respeito de proteção e defesa da saúde, por certo, está se referindo a normas não exaustivas, mas sim a regras que não tracem pormenores, limitando-se à positivação de princípios abertos, sempre sob o interesse da proteção e defesa da saúde.

A Lei 9.294/96, quando consente o fumo em ambientes reservados aos fumantes, vai além da obrigatória generalidade desejada pela Constituição Federal, travestindo-se, em verdade, de lei ordinária comum relacionada à competência legislativa privativa de ente federado, e não de condomínio legislativo (competência concorrente), muito menos na categoria de “normas gerais”.

Insisto. O estímulo ou consentimento ao fumo não se confunde com o tema “proteção e defesa da saúde”. O capítulo do texto constitucional que trata desta matéria, em condomínio legislativo, não é o adequado para o desate e solução interpretativa da proposta feita pela lei vetada. E, se assim fosse, o estado do Espírito Santo, quando dá fim aos fumódromos e espaços reservados para fumantes em qualquer ambiente público ou privado, promovendo a saúde preventiva de todos, está a preencher lacunas e vazios dentro de sua competência legislativa concorrente de proteção e defesa da saúde.

Tomando-se por parâmetro o Supremo Tribunal Federal, a resolução da questão não seria desconfortável. Indaga-se: o consentimento parcial da União para fumar, ainda que em espaços delimitados, atende ao interesse constitucional sublime de proteção e defesa da saúde dos cidadãos? E, ainda, o estabelecimento de norma de conduta primária (obrigação de não fazer), tolerando-se o fumo, deixa ao estado a possibilidade de secundar a norma supostamente geral, suplementando a legislação federal, ou ela seria mesmo imbatível, de natureza privativa da União? Em suma: a inconstitucionalidade formal (extravasamento do âmbito normativo geral) e material (tolerância do fumo em tema de proteção e defesa da saúde) da Lei 9.294/96 é irremediável na parte destacada.

A Lei 9.294/96, na tentativa de regulamentar o parágrafo 4º, do artigo 220, da Constituição Federal, que cuida da comunicação social e da propaganda comercial do tabaco, no ponto atacado, nada tem que haver com esse mandamento constitucional, indo além da regulamentação publicitária do produto para estabelecer regra físico-espacial de tolerância de comportamentos (obrigação de não fazer). Diz esse dispositivo constitucional, tão-somente, que a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

A tolerância de fumódromos em nada se relaciona com propaganda comercial de tabacos, não pertinência temática com o mandamento constitucional delimitador. Na tentativa de regulamentar essa dicção constitucional relativa à comunicação social do artigo 220 da CF, a lei ordinária foi além da matéria publicitária. Fumódromos e sua tolerância não se confundem com propaganda comercial, a não ser que todos os cidadão fumantes e consumidores comuns se transformem em inconscientes modelos ou manequins. A legenda expressa da Lei 9.294 dispondo sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do parágrafo 4º do artigo 220 da Constituição Federal é clara, não “dá outras providências”, e nem poderia.

Compete privativamente à União legislar sobre propaganda comercial, sem limitação à normas gerais. Compete à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde, limitando-se a União a estabelecer princípios gerais e abertos. As coisas não se confundem. Não se pode convolar a Lei 9.294 em espécie de ornitorrinco jurídico, que vale lá e cá, para a publicidade do tabaco e para a defesa da saúde.

O estado do Espírito Santo, quando que dá fim aos fumódromos e espaços reservados para fumantes em qualquer ambiente público ou privado, promove a dignidade da pessoa humana, garantindo o bem de todos. Aí não há um espaço para o condomínio legislativo concorrencial, mas comunhão de esforços de todos os entes federativos visando a redução do risco de doenças.

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