Turbilhão na Justiça

Tempo dirá se Supremo acertou em relação a juiz

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21 de maio de 2009, 15h03

O cronista completa cinquenta anos de advocacia criminal exclusiva. Embrenhou-se na ciência jurídica, umbigo encostado no balcão de cartórios, pelos idos de 1957, ainda estudante de Direito. Naquele tempo o estagiário tinha o nome de “solicitador acadêmico”. No fundo era a mesma coisa, com um início diferente: a carta de solicitador era passada pelo presidente do Tribunal de Justiça. Vigorava o regulamento. O estatuto da advocacia só veio em 1964. Curiosamente, a vigência coincidiu com a implantação da ditadura no país.

Dizem as más línguas que antiguidade é posto, independentemente das maiores ou menores qualidades do sobrevivente. Dentro do contexto, o cronista se transforma em uma espécie de feiticeiro do passado perdido no amanhã. É porque, realmente, já viu quase tudo. Tem o privilégio de, já ultrapassados os 70 anos, estar ainda trabalhando, e muito, sem perder a energia e a agressividade indispensáveis ao espírito critico. Assim, não pode deixar de manifestar perplexidade frente a fenômeno extravagante a se concretizar na Justiça Federal – 3ª Região. Não se pense que tal apreciação significa intrometimento em assuntos inadequados ao advogado. Este, com certeza, integra a administração da Justiça. Assim, o que acontece no cômodo ao lado faz parte da própria casa.

O acidente de percurso na Justiça Federal da 3ª Região começou quando, decretada a prisão preventiva de acusado importante, a Suprema Corte lhe concedeu habeas corpus, pondo-o em liberdade. Em sequência e depois da libertação, o juiz responsável pela captura decretou novamente a prisão daquele acusado, motivando nova determinação de soltura, porque o presidente do Supremo Tribunal Federal entendera que aquele despacho constituía insulto ou ofensa à prevalência da denominada “instância máxima”.

A partir dali as coisas se complicaram. O nome do eminente magistrado posto na berlinda não é importante. E nem vem a pelo qualquer censura, isso é coisa de família. O cronista já se habituou, há muito, a examinar turbulências judiciais friamente, pois, no fim de tudo, aquilo é apenas um entrechoque do próprio poder que tanto pode estar nas mãos do vagalume do cinema como no colo do presidente da República. O bicho é o mesmo; a roupagem é diferente…

No meio da confusão, o magistrado em questão revestiu, para uns, características heroicamente moralizadoras. Outros, entretanto, o entenderam partidário de medidas inquisitoriais ilegais acompanhadas de encangamento com órgãos da polícia e do Ministério Público. Tudo assumiu proporções mais sérias em função de conflitos de competência em uma ou outra ação penal, agasalhando o juiz procedimentos atribuíveis, em tese, a outros órgãos de jurisdição. Concorrendo para a complicação, muitos órgãos da imprensa se dispuseram a agigantar a disputa, dando-se a um ou outro jornalista, no contexto, o privilégio de acompanhar as investigações e divulgar antecipadamente seus resultados. Houve outro fator enredando a análise. Realmente, os redutos censórios da jurisdição regional tomaram conhecimento, oficial ou não, daquele turbilhonamento no primeiro grau, não se devendo esquecer que o Ministério Público e a defesa, cada qual a seu turno, travavam, à margem, verdadeira queda de braço, uns endossando a conduta do magistrado posto na berlinda, mesmo porque ele lhes deferia as pretensões, outros reagindo também agressivamente, refratários à desigualdade manifestada.

Houve tempo, muito lá atrás, em que juízes, representantes da acusação pública e advogados, enquanto corporações, se mortificavam, mantendo com discrição seus conflitos político-ideológicos. Aquilo passou, sendo superado pela garantia constitucional do direito de critica. Assim, as associações de classe começaram a interferir nas tremulações do sistema, pondo-se abertamente ao lado ou contra os segmentos sobrenadantes. Correndo o risco de desequilibrar a indispensável hierarquia, tais entidades tornaram públicas suas opções. Aqui, a pedra de toque das incursões era o denominado domínio dos juízes sobre as próprias repartições da competência, atividade esta vulgarmente denominada “princípio da independência”. Coroando tais alternativas, procuradores da República e juízes federais diversos, uns personalizados, outros representados por associação de classe, empunharam bandeira em prol do juiz referido, engordando-lhe, então, a legitimidade das posturas processuais já sintetizadas. Enquanto isso acontecia, os setores responsáveis pelo disciplinamento de magistrados travavam também seus debates intestinos, havendo certamente, dentro dos reposteiros da jurisdição superior, áspero conflito entre estes e aqueles membros do colegiado. Deve haver, no Conselho Nacional de Justiça, um restolho dessa altercação.

No entretempo, os advogados, perplexos, examinam o mérito e o demérito da extravagante pendenga, pois nunca se viu, na história do direito brasileiro, o enfrentamento extra-processual da soberania dos veredictos advindos das denominadas competências superiores. Explique-se: o juiz em questão continua na postura de origem, quieto no seu canto, mas defensores ardorosos da sua conduta procuram revesti-lo de aceitabilidade a maior, numa espécie de “blindagem”, expressão muito na moda. Afirmou-se, em período anterior do texto, que o comportamento dessas entidades é destoante do passado. Nos idos vetustos, sequer existiam. Constituem hoje agremiações muito poderosas, atuando desveladamente dentro dos bastidores das crises. Incidentalmente, enquanto se desdobravam as questiúnculas, houve tentativas de esgarçamento das becas dos advogados intervenientes, sabendo-se que múltiplas reações da defesa caíam no vazio.

Disso tudo sobra uma dose enorme de assombro, pasmo, estupefação, espanto mesmo, pois a figura do magistrado, psicanaliticamente equiparada à do pai, tem sua intangibilidade posta no desvario dos eventuais excessos e das acusações de perda da equidade, encostando-se o juiz, por hipótese, nas pretensões daqueles que pretendem transformá-lo no juiz de instrução à moda européia, ele que, no fim das contas, há de julgar a procedência das acusações. Sobrelevando a tudo, o Supremo Tribunal Federal, abrindo-se à censura nas telas das televisões, expõe suas feridas em escaramuças nem sempre comprimidas no hermetismo da linguagem forense. O povo, vendo-o desnudado, sente a dessacralização dos ícones, sabendo-se que a relação entre lideres e liderados é quase sempre entranhada no conceito do “totem”. Certa vez, assistindo a um filme chamado “O Gladiador”, o cronista separou uma cena: o personagem, deixando o “Coliseu” depois de uma luta, recebe do servo Cícero, posto no meio da turba, uma pequena escultura em marfim, cabente na mão, representativa do pai do gladiador. Este, mais tarde, beija aquela imagenzinha, contrito, enquanto pronuncia seus votos.

A jurisdição era discreta, no passado. Precisa desesperadamente voltar às suas origens. Os advogados, de seu lado, acreditam na Justiça como entidade onipresente, embora ofendida vezes sem conta. Tocante àquele magistrado que é, entre outros, o pináculo dos dissabores atravessados pelo Poder Judiciário Federal, deve contas sim, aos degraus superiores da jurisdição. Haja o que houver, os níveis ascendentes dirão se aquele pretor agiu corretamente ou não, independentemente de aplausos urdidos no meio do caminho. E quando vier a decisão final, ou uma ordem advinda de patamar mais elevado, há de se curvar, obedecendo. O enfrentamento é inadmissível. É raríssima, diga-se bem, na jurisprudência pátria, censura a quem manteve encarceramento injusto. Mais frequente é o castigo do libertário…

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