Teoria política

Ativismo judicial só é admissível para as minorias

Autor

  • Eduardo Appio

    é juiz federal na 2ª Turma Recursal dos JEFs do Paraná em Curitiba e pós-doutor em Direito Constitucional pela UFPR (2007).

21 de maio de 2009, 2h30

Em data recente, o Plenário do Supremo Tribunal do Brasil vivenciou um momento de intenso debate entre seu presidente, ministro Gilmar Mendes e um de seus membros, ministro Joaquim Barbosa. Em linhas gerais, o ministro Barbosa disse que Mendes estava destruindo a imagem do Judiciário, ao adotar uma postura elitista ao que Mendes respondeu que Barbosa estava agindo como um populista. O ativismo judicial não foi discutido neste momento.

Independente das questões de ordem prática naquele caso, o que realmente me interessa é um debate que se estabelece dentro do Supremo Tribunal do Brasil na atualidade e que raramente chega até a comunidade jurídica. Geralmente as decisões do Supremo Tribunal Federal são cifradas de modo que somente com grande dose de atenção é possível perceber que trabalham no terreno da pura ideologia.

Julgamentos recentes no Supremo Tribunal, tais como o da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (relator ministro Marco Aurélio). Nesta ocasião, os ministros Ellen Gracie, Eros Grau, Peluso e Carlos Velloso acataram a questão de ordem suscitada pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, um notório “ativista” do chamado movimento pró-vida, ou seja, disseram, em linhas gerais, que eventual regulação de um suposto direito ao aborto deveria se dar no Congresso Nacional e não no STF. Esta tese foi vencida já que a maioria no Supremo decidiu que esta questão será decidida no mérito pelo Judiciário. Não se pode conhecer de antemão o resultado deste julgamento que tudo indica ocorrerá ainda no ano de 2009.

Note-se que aí se encontra uma das mais importantes características políticas de nossa Suprema Corte, qual seja a de que detém a prerrogativa de definir os limites de sua própria jurisdição. Enquanto que as demais funções do Estado — Executivo e Legislativo — têm suas respectivas competências interpretadas pelo Supremo Tribunal, através do chamado controle de constitucionalidade, o Judiciário é responsável por definir os limites de sua própria competência. Bem por isto resulta importante destacar em que medida a ideologia individual de cada um de seus membros contribui na definição dos limites desta competência.

Um juiz do Supremo Tribunal pode-se apresentar em alguns casos como um fervoroso ativista e em outros como um defensor da auto-contenção judicial. Veja-se o caso da ministra Ellen Gracie, por exemplo, uma das mais importantes integrantes da corte e hoje candidata a uma vaga na OMC (Organização Mundial do Comércio). No caso da lei que anistiava as multas aplicadas contra os partidos políticos, sustentou a tese da inconstitucionalidade desta lei, uma posição claramente ativista, muito embora tenha decidido de modo contrário no caso da ADPF 54 (caso do aborto do feto anencéfalo).

Com exceção dos poucos casos em que se desenvolve um debate franco e aberto, do ponto de vista ideológico, como o que ocorreu entre Mendes e Barbosa, esta discussão se dá em um terreno de silêncio e mistério. Somente nas falhas do sistema é que o não-dito acaba sendo pronunciado. Mesmo quando o Supremo Tribunal, através de um de seus membros, afirma literalmente, que não está atuando como verdadeiro legislador positivo, ou seja, criando direito, ainda assim é justamente nestes casos que faz exatamente o oposto, ou seja, existe uma grande diferença entre o discurso oficial pronunciado e a prática dos tribunais.

Como já lembrava o mestre argentino Luiz Warat, “há muito mais no não-dito do que no dito”. Teorias psicanalíticas e comportamentais à parte, o fato é que o discurso mais importante de todo o debate judicial raramente emerge, porque enclausurado — dirão alguns, seqüestrado — em um universo cercado por ritos e formas imerso em uma suposta assepsia técnica. Se a função de proteger a Constituição representa um poder político de grande envergadura, nada mais natural que deixemos esta função — a mais importante em uma República — aos cuidados de técnicos apartidários e apolíticos, juízes acostumados a renunciar às paixões em seus julgamentos.

Esta é uma peça fundamental do discurso oficial dos juízes e se funda, em última análise, em um debate acerca da legitimidade política dos juízes. Os juízes do Supremo Tribunal seriam verdadeiros guardiões do Santo Graal constitucional, imunes às paixões e até mesmo à vontade das maiorias. Digo isto para fixar de modo correto o ponto central do debate, ou seja, existe uma diferença substancial entre juízes populistas e elitistas ou, dito de outro modo, quem é mais ativista, Barbosa ou Mendes?


O pluralismo judicial

Alexander Hamilton (Federalist Papers 78) sustentava que a vontade legítima de um povo estava sintetizada na Constituição e que as vontades transitórias estavam situadas nas legislaturas. Este pensamento conflita com uma concepção fundante do próprio racionalismo francês — e, portanto, da própria Revolução de 1789 — qual seja a de que a lei expressa e galvaniza a vontade geral. Hamilton defendia que, em certas situações, os juízes poderiam declarar uma lei como nula, quando ela conflitasse com a Constituição, o que de modo algum representava uma superioridade do Judiciário em relação ao Legislativo, já que ambos deviam obediência à Constituição. Esta posição serviu de base para a celebre decisão do Justice Marshall em Marbury v. Madison, a qual inaugurou o chamado sistema de “judicial review” nos Estados Unidos que acabou sendo incorporado por nossa primeira Carta Republicana.

Neste contexto, os juízes devem interpretar a democracia em um sentido muito amplo, pois caso contrário não teriam condições de invalidar, através do controle de constitucionalidade, leis aprovadas por membros eleitos pela população. Esta versão da democracia está diretamente relacionada com um outro autor norte-americano James Madison, o qual repudiava as facções, afirmando que a Constituição está vocacionada a prevenir o faccionismo, ou seja, o movimento de opressão praticado por alguns grupos de interesse. Esta versão tem sido associado com um baixo grau de participação destes grupos na democracia, sob o argumento de que a apatia dos grupos de interesse incrementa, ao invés de enfraquecer, a democracia. Esta visão dita elitista privilegia, por óbvio, uma maior participação dos juízes e, via de consequência, o próprio ativismo judicial.

Neste sistema, os juízes estariam vinculados a uma visão originalista da Constituição, o que significa dizer que seriam uma expressão da vontade do constituinte originário. Esta é uma corrente ainda hoje majoritária na Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo, como ficou claro em uma recente decisão (2008) sobre o direito constitucional de portar armas. Com este sentido, os juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos adotaram uma postura fortemente ativista quando do julgamento do caso Lochner v. New York (1905), declarando inconstitucional uma lei editada para fazer frente aos problemas econômicos que a nação enfrentava, mas que tocava com a liberdade de mercado e de contratos.

Ficou claro, desde Lochner, que o ativismo não estava associado diretamente às correntes ditas progressistas e que defendiam transformações sociais. Muito embora o ativismo judicial seja identificado, pela grande maioria das pessoas, com as decisões tomadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos durante as décadas de 50 e 60 no século XX (com especial ênfase em Brown v. Board of Education — segregação racial nas escolas públicas estaduais dos Estados Unidos) o fato é que este ativismo pode, ou não, estar associado a transformações sociais e políticas no país. Nem todo ativismo é progressista e, via de consequência, nem toda a modéstia judicial é conservadora.

Uma visão populista

Para a versão dita populista da democracia, a vontade da nação não está exclusivamente inserida em uma Constituição editada e aprovada muitos anos através, mas sim na vontade atual das pessoas que vivem e buscam um ambiente democrático. A geração atual não estaria necessariamente vinculada à vontade das gerações passadas, naquilo que se convencionou como um dos defeitos das Constituições contemporâneas, o chamado problema da “mão-morta”. Esta versão está fortemente ancorada nas revoluções francesa e norte-americana e se baseia em um destacado papel dos membros eleitos pela população, o que culminou com aquilo que Marinoni define como o “apogeu do Estado legislativo”, ou seja, uma enorme deferência à lei e uma grande resistência ao uso indiscriminado do controle de constitucionalidade. Não sem razão, a França se utiliza de um controle preventivo da constitucionalidade das leis, tudo no intuito de reafirmar a confiança no Legislativo e no papel de uma democracia representativa.


Os populistas consideram a apatia política como um defeito da democracia, ao contrário do que defendem os chamados elitistas que a consideram uma verdadeira virtude. Esta concepção de democracia está amparada em autores como Rosseau e Paine, os quais sustentam, em linhas gerais, que esta participação pressupõe uma sociedade mais igualitária, sem o risco das facções, pois a fragmentação da sociedade a impede de reconhecer e colocar em pratica a vontade geral (interesse comum).

Esta concepção populista de democracia traz para dentro do debate judicial questões como redistribuição de renda e direitos sociais. A visão dita elitista, por seu turno, considera que estes temas são alheios ao debate judicial, devendo ser decididos pelo constituinte ou pelo legislador. Note-se, por conseguinte, que existe uma distinção ideológica bastante evidente entre os juízes ditos populistas e os elitistas, já que estes últimos se baseiam na concepção de que a redistribuição de renda somente pode-se dar a partir de princípios de liberdade plena de mercado.

A corrente política liberal norte-americana, a partir das décadas de 50 e 60 (Corte de Warren) passou a identificar o ativismo judicial como um elemento positivo da agenda democrática, o que deflagrou um imenso debate em torno de questões como o direito ao aborto nos Estados Unidos. Os chamados liberais na política econômica querem menos Estado nas nossas vidas privadas e mais Estado na economia, ou seja, exatamente o contrário dos ditos conservadores.

Liberalismo econômico não guarda relação com liberalismo político. O partido Democrata nos Estados Unidos defende, em linhas gerais, o ativismo judicial em áreas sensíveis da moral como no caso do direito ao aborto, derivado do direito à privacidade, mas também defende uma maior participação do Estado na economia. Os Republicanos, por seu turno, rejeitam esta versão e dizem que decisões como as tomadas pela Suprema Corte em Roe v. Wade (aborto) são claramente antidemocráticas, pois retiram da população o direito de decidir. Juízes ditos liberais do ponto de vista político hoje são associados com o ativismo — um erro comum e justificável — e intensamente criticados por seu suposto elitismo. Autores como Mark Tuschnet e Jeremy Waldron, por exemplo, criticam a chamada “aristocracia constitucional”.

A visão procedimental

Em 1980 John Hart Ely publicou o livro Democracy and Distrust através do qual criticava o ativismo judiciário da chamada Corte de Warren. Muito embora um liberal convicto, Ely sustentava que os juízes tinham ido longe demais na decisão acerca do direito ao aborto e que somente nos casos de proteção das minorias é que o ativismo judicial poderia ser justificado, especificamente no direito de participação no processo político-eleitoral. Esta versão (procedimental) de democracia ganhou vários adeptos, seja entre os liberais ou entre os conservadores, todos ansiosos por limitar a atividade política de juízes não eleitos pela comunidade, ou seja, imunes às consequências de seus próprios erros.

No plano político, Habermas sustenta a ideia de que é a própria comunidade que deve decidir acerca das questões sensíveis em termos da moral e da política, ou seja, que devemos primeiro focar no incremento dos instrumentos de participação para depois nos preocuparmos com o resultado efetivo do processo democrático, visão esta em tudo oposta a de Ronald Dworkin, que parte de uma concepção substancial de democracia.

Sustento que somente nos casos de tutela dos direitos das minorias é que se revela admissível, do ponto de vista da teoria política, o ativismo judiciário. Ou seja, que a comunidade deve decidir, de forma direta ou indireta, acerca de políticas públicas, inclusive em áreas sensíveis como do direito à saúde e à educação, o mesmo valendo para a exata extensão dos direitos correlatos à Previdência Social.

O Supremo Tribunal brasileiro, ao contrário do que muitos (a maioria) sustentam, não está dividido, do ponto de vista ideológico, acerca do papel e importância da atribuição judicial. Todos concordam que o ativismo judicial se revela importante para preservar o núcleo da Constituição de 1988, mesmo que aceitas teorias acerca da mutação constitucional, ou seja, de que o Supremo pode alterar o texto expresso da Constituição sob o argumento de estar atuando em uma zona de “mera” interpretação. Assim decidiu, em data recente quando se admitiu o chamado efeito transcendente das decisões tomadas pela corte no controle difuso, a qual dispensaria decisão do Senado da República visando suspender a eficácia de lei declarada (incidentalmente) inconstitucional pelo Supremo Tribunal ou mesmo quando alterou toda a jurisprudência da corte acerca dos limites do mandado de injunção.

Existe hoje uma certeza no sentido de que a corte mudou sua abordagem ao longo dos últimos anos, avançando sobre território até então reservado aos demais poderes da República. O ativismo é aceito e por vezes até mesmo confessado pelos juízes do Supremo Tribunal.

Qual, então, a diferença entre Mendes e Barbosa se ambos defendem que é necessário que as decisões do Supremo se adaptem às novas realidades e que o papel de intérprete da Constituição é bastante amplo? Ambos são, em verdade, ativistas, apenas que Barbosa quer expandir novas interpretações no Supremo, fazendo a corte alterar uma posição histórica acerca da necessidade do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para o início da execução da pena imposta, enquanto que Mendes é ativista no sentido de expandir os efeitos das declarações incidentais de inconstitucionalidade no controle difuso. O ativismo nada mais é o que isto, uma ferramenta através da qual se expressam ideologias, não possuindo um conteúdo verdadeiro, mas antes permitindo que o debate político se dê, de forma exclusiva e irrecorrível, dentro do Supremo e não no Congresso Nacional.

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    é juiz da Turma Recursal Federal do Paraná e pós-doutor em Direito Constitucional. É também autor do livro Controle difuso de constitucionalidade: modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada.

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