Ágora tributária

Núcleo de estudos fiscais une fisco e contribuintes

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19 de maio de 2009, 11h02

A visão de quem está na proa de uma embarcação e, diante do mar revolto e do céu encoberto, não tem à sua frente qualquer ponto de referência que lhe mostre em que direção seguir, mas conduz a nau de acordo com o açoite das ondas. É dessa forma que se resume a situação de milhões de contribuintes e do próprio fisco diante da má qualidade e da falta das leis que regem assuntos tributários no país e das inconstantes decisões do Judiciário, na opinião do professor e pesquisador Eurico Marcos Diniz de Santi, da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

A alegoria feita pelo professor foi inspirada em uma das fotografias de Ancar Barcalla, pendurada na sala de reuniões do recém criado Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Direito GV. Velejando, Barcalla cruzou oceanos durante dez anos e algumas de suas obras compuseram a exposição Praça Pública, que agora decora as paredes do NEF. De frente para a imagem, Santi, idealizador do núcleo, afirmou que os estudos iniciais já feitos por sua equipe mostraram que o problema do elevado número de disputas judiciais envolvendo temas tributários não é o apetite arrecadatório do fisco e tampouco uma forma de as empresas se desviarem da obrigação de pagar impostos. “O problema é a falta de instrumentos que nos digam onde exatamente nós estamos e o que temos de fazer para chegar onde queremos.” Para o professor, esses instrumentos são leis tributárias de boa qualidade que o NEF tem o objetivo de propor. “A razão por que há quem não acredite na saída legislativa é que as normas são ruins e voltadas para interesses, o que gera desconfiança e obriga o Judiciário a legislar”, resume.

O núcleo começou a funcionar oficialmente nessa segunda-feira (18/5). Sua inauguração, no entanto, aconteceu na última quarta (13/5), dia em que se celebra a assinatura da Lei Áurea — norma que concedeu liberdade a todos os escravos negros no país. “A data foi escolhida de propósito”, diz o professor. A proposta do grupo de trabalho explica a comparação. “É a retomada da nobre função da universidade, colaborando na produção de projetos legislativos de relevância nacional, mas livre das pressões do ‘poder’ e dos lobbies políticos.” 

Para o professor, o meio acadêmico é o que hoje tem maior legitimidade para propor mudanças tributárias, já que não defende interesses de qualquer lado. “Formamos uma equipe com 12 membros vindos tanto do fisco quanto das empresas, além de professores”, explica o professor Santi. A ideia já atraiu o interesse de empresas privadas e dos próprios agentes fiscais e procuradores da fazenda.

O professor afirma manter conversas com o Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) e com procuradores da Fazenda, para que as futuras propostas de leis sejam estudadas a assinadas também pelos representantes do fisco. De outro lado, o NEF já recebeu o apoio de oito empresas que financiam o projeto e garantiram um investimento inicial de R$ 250 mil. “Isso permitiu que contratássemos tributaristas de peso para trabalhar nas pesquisas por tempo integral, com salários de mercado”, comemora o professor.

A equipe já conta com um auditor da Receita que atua no Conselho Administrativo da Recursos Fiscais — tribunal administrativo onde são discutidas cobranças federais —, uma procuradora da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e um membro do Tribunal de Impostos e Taxas do estado de São Paulo. “O desafio do projeto é a formação de consenso”, afirma Santi. Ele explica que a ajuda dos fiscais é imprescindível. “O agente, quando autua, fica constrangido ao ver sua decisão ir para o tribunal administrativo. Quando o caso vai à Justiça, ele às vezes tem de enfrentar grandes tributaristas, sem ter uma lei clara a que possa se apegar.”

Os primeiros alvos do NEF já foram travados e devem consumir os próximos dois anos em pesquisas: reforma do Processo Administrativo Fiscal e do Código Tributário Nacional, além de reforma fiscal. Prioridade para Santi, a revisão da forma de discussão ainda na esfera administrativa ocupará a equipe nos primeiros seis meses. “É o meio mais rápido, mais técnico e mais respeitado para resolver as questões”, explica. Os tribunais administrativos, na opinião do professor, são mais atraentes tanto para empresas — por causa da celeridade e da irrecorribilidade ao Judiciário nos casos de decisões favoráveis ao contribuinte — quanto para o próprio Estado, que elimina custos com o acompanhamento de ações na Justiça.

O trabalho, que já começou, terá como foco as discussões federais. Julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — antigo Conselho de Contribuintes da Receita Federal — estão sendo analisadas um a um para que os pesquisadores identifiquem quais as falhas legais que motivam tanta briga. Só em 2007, foram duas mil decisões. “A ideia é ver se existe um padrão para as decisões em cada caso”, explica Santi. Os estudos abordarão também a estrutura desses tribunais, “inclusive se os mandatos e possíveis salários dos conselheiros seriam adequados.”

Na esfera judicial, porém, um trabalho prévio semelhante do grupo não chegou ao resultado esperado. “Não há padronização nas decisões dos magistrados, já que, embora discorram sobre as doutrinas existentes, eles acabam tomando muitas decisões com base em questões formais”, esclarece. “Não há um padrão de jurisprudência a partir da aplicação das leis em casos concretos.” Isso fez com que as pesquisas deixassem de lado o Direito material e passassem a abordar o Direito formal, como explica Santi.

A constatação foi feita a partir do estudo em particular da responsabilização dos sócios nos casos de não pagamento de impostos pelas empresas. “O Código Tributário Nacional, desatualizado, não fala sobre responsabilização, e o Código Civil, que menciona a responsabilização, não é aceito por muitos em matérias tributárias”, diz, exemplificando o impasse. “Há decisões para ambos os lados, criando uma ‘não-jurisprudência’ que traz insegurança jurídica.” Nesses casos, nem a doutrina dá o apoio necessário, de acordo com o professor. “É como alguém que, no barco à deriva, diz que sabe em que direção seguir, mas que não tem os instrumentos para certificar-se”, compara.

O CTN, depois do processo administrativo, será o próximo passo do NEF. As pesquisas se voltarão a descobrir atualizações necessárias. Também será proposta a integração com o Código Financeiro Nacional e a vinculação entre tributação e os gastos públicos. Por último, uma reforma fiscal tentará rever a incidência de tributos e isenções fiscais. Mensalmente, os resultados serão discutidos em workshops públicos no auditório da Direito GV. “Apresentaremos as pesquisas feitas para que os envolvidos digam se estamos no rumo certo”, diz o professor, que conta com a participação dos chefes do fisco federal. “Pagaremos até mesmo as passagens aéras dos representantes que atuam em Brasília”, garante.

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