Carta aberta

E não é para cumprir a Constituição?

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18 de maio de 2009, 15h49

No Brasil são realizados inúmeros simpósios e congressos de Direito a todo ano, dos quais centenas tratam especificamente de Direito constitucional e temas correlatos. Se nos dez anos da Constituição, o tema predominante foi o da “concretização da Constituição”, nos vinte anos o que mais se discutiu foram “as condições de possibilidade para a concretização dos direitos fundamentais (sociais) previstos na Constituição da República”.

Paralelamente, em termos acadêmicos, não se pode desprezar a relevância da pós-graduação em Direito. Com efeito, são 65 programas de Mestrado e 20 de Doutorado que integram o sistema regulado pela CAPES. Produzimos em todo o país e a cada ano centenas de dissertações e teses de doutorado. Dentre os temas mais discutidos, não há dúvidas que a celeuma em torno da concretização dos direitos fundamentais, com crescente destaque para os direitos de caráter prestacional (assim como o vinculado tema do controle das políticas públicas), ocupa um lugar de destaque.

E o que dizer da produção bibliográfica? Qualquer pessoa que desembarcar hoje no Brasil e entrar em uma livraria ou se disponha a assistir às argüições de dissertações e teses na área do Direito, por certo pensará que no Brasil já vivemos uma espécie de “Allgegenwärtigkeit der Verfassung”, isto é, uma “onipresença da Constituição”, para usarmos um jargão recorrente na esfera da assim designada jurisdição constitucional.

Entretanto, no caso de verificarmos se, efetivamente, a Constituição está sendo cumprida/concretizada, por certo chegaremos à confrontação entre a imagem projetada por esse cenário e a realidade. Para sermos mais claros: mesmo uma análise perfunctória já mostraria a efetiva falta de políticas públicas, a inércia do poder legislativo na regulamentação de importantes direitos e matérias constantes da Constituição e, não vamos esquecer, a falta de um maior engajamento constitucional e, até mesmo, de cumprimento da Constituição, por parte das diversas instâncias de administração da justiça.

Observe-se: o que sempre se defendeu na teoria constitucional é que a nossa Constituição é compromissória e que vincula os poderes públicos, sendo que até mesmo as relações privadas encontram-se “atravessadas” pelo direito constitucional, não sendo à toa que também o fenômeno da eficácia dos direitos fundamentais em relação aos sujeitos privados tenha assumido tamanha relevância no cenário doutrinário e jurisprudencial. “Verticalização” e “horizontalização” (por mais que se possa discutir a precisão terminológica) da Constituição são as grandes temáticas tratadas pelo direito brasileiro, cabendo lembrar aqui a significativa assertiva do grande constitucionalista Paulo Bonavides: “ontem os Códigos; hoje, as Constituições”!. Indubitavelmente – e podemos todos nos orgulhar disso -, estamos a construir no Brasil uma teoria constitucional devidamente contextualizada e capaz de dar conta da tão desejada concretização do projeto constitucional, tão decantada nos congressos, nas dissertações e teses, bem como na produção bibliográfica.

O que nos devemos perguntar sem tréguas é o que acontece em solo brasileiro quando o Supremo Tribunal Federal chama para si a responsabilidade de, efetivamente, fazer valer tudo que tanto se tem defendido desde 1988? Ou seja, depois de vinte anos, nunca o STF esteve tão sintonizado com tal processo e tão envolvido na esfera das tensões entre os poderes da República, ainda mais se considerarmos a evolução recente.

Vejamos: o tema das liberdades públicas veio à tona, tendo o STF assumido o papel de garantidor das garantias constitucionais, com a concessão de centenas de habeas corpus, que vão desde simples ladrões de sabonete aos autores de crimes do colarinho branco, demonstrando que a justiça constitucional não é uma justiça de classe, ainda que nem sempre seja esta a imagem difundida pelos meios de comunicação.


Ao mesmo tempo, o STF enfrentou o problema da presunção da inocência, que, além de estar prevista na Constituição (aliás, em qualquer Constituição Democrática e nos pactos internacionais de direitos humanos), é defendida em centenas de dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos de doutrina e livros escritos nestes últimos anos. Recuando um pouco no tempo, antes das tensões mais “contemporâneas”, basta lembrar a histórica timidez na esfera do manejo do mandado de injunção, circunstância que fez com que o STF tivesse que avançar também neste particular, sinalizando que se cuida de ação constitucional apta a cumprir sua finalidade, como ocorreu no emblemático caso do direito de greve dos funcionários públicos.

O Poder Executivo não resolve o problema da demarcação das terras indígenas, foco de intensa tensão, e novamente o STF é chamado a intervir. Cerca-se o STF e os diversos grupos de interesse clamam: queremos demarcação continua; queremos demarcação descontínua ou até “não queremos demarcação alguma”!. Os Ministros do STF se deslocam até a área conflagrada, sobrevindo sentença interpretativa, resolvendo o problema no caso concreto e fixando pauta para uma série de providências futuras.

O sistema de saúde atravessa um problema sem precedentes, em face do excesso de demandas judiciais buscando a realização desse direito (ações em busca de remédios, vagas em hospitais, filas de transplantes), e mais uma vez a tensão acaba desaguando no STF, que, sensível ao necessário diálogo institucional, convoca audiência pública e promove amplo debate, oportunizando a participação intensa da sociedade, no âmbito da figura do amicus curiae.

Deslocando o foco para o Poder Legislativo, seguidamente questionado no que diz com a adequação constitucional da sua produção normativa, ou mesmo (como no caso da greve dos servidores públicos) da falta de atuação, igualmente inevitável e necessária a intervenção do STF em matérias de alta complexidade e repercussão, como, dentre tantos, dá conta a discussão em torno da legitimidade constitucional das pesquisas com células-tronco, objeto de importante decisão em maio de 2008, igualmente após amplo debate e audiência pública.

O Poder Legislativo não tem condições políticas para resolver o problema da união estável entre casais homossexuais? E lá vai essa questão ao STF, que certamente será cercado pela militância a favor e contra, como o foi no caso das células-tronco. O Poder Executivo não enfrenta (seja lá por qual razão) adequadamente o problema dos movimentos sociais, regulando sua atuação nos marcos do Estado Constitucional e Democrático de Direito (sem se recair nos extremos tão comuns nesta seara), e lá vai o Presidente do STF assumir posição na esfera publica, até por força da legítima cobrança neste sentido.

O espetáculo midiático que envolve o sistema de repressão policial e que, em muitos casos, acaba resultando em evidentes abusos e na instauração de uma perigosa “justiça policial dos bodes expiatórios”, novamente pressiona a manifestação do STF, sinalizando que a despeito da necessária autoridade da qual necessita estar investido o sistema policial, tal autoridade está (aqui e em qualquer Estado de Direito) vinculada pela legalidade constitucional.

O que não está dito com a devida clareza? O inconfessável é que o Poder Legislativo e o Poder Executivo têm ficado, no mais das vezes, relativamente imunes às críticas e a salvo das pressões sociais, na medida em que estas são habilmente “transferidas” para o STF. Na verdade, estamos “judicializando” não só a política, mas também o nosso cotidiano. Corremos o risco de construirmos uma cidadania ficta, ao darmos a entender às pessoas que cidadania é simplesmente ter direito de bater às portas do Poder Judiciário, nele, mais especificamente, no STF, depositando todas as esperanças e dele cobrando todas as responsabilidades.

Mais grave ainda que a judicialização da política – da qual o STF não tem culpa, porque não pode deixar de apreciar as demandas que lhe são endereçadas – é o ativismo judicial, que, ao fim e ao cabo, acaba desaguando no STF. Com efeito, na medida em que os juízes em geral também são constantemente demandados a resolver os “problemas da República”, verifica-se que não raras vezes (acionados pelos atores legitimados para tanto) acabam por substituir a legislação por suas convicções pessoais, seja para o bem, seja para o mal. Como resultado, tem-se que o STF acaba sendo obrigado a examinar centenas, senão milhares de Reclamações. Ou seja, o STF se transforma em fiscal das decisões de primeiro e segundo graus. Se não é o caso de discutir aqui as razões desse problema, parece correto afirmar que institutos como o da Repercussão Geral e outros mecanismos de vinculação (por exemplo, as súmulas) são apenas o resultado de uma excessiva judicialização da vida brasileira.


Todas essas tensões acabam, como é natural, chegando a um clímax em determinado momento, resultando muitas vezes na demonização do STF e, principalmente, do seu Presidente.  Ora, o Brasil é um país absolutamente complexo, com uma Constituição que é uma das mais generosas em direitos do mundo, além da existência de um expressivo número de juristas (professores, juízes, promotores, advogados, procuradores, etc.) produzindo doutrina, discutindo e sustentando a necessidade de concretização do projeto constitucional. Ao lado disso, temos os movimentos sociais, no exercício legítimo da sua cidadania, buscando, por meio de ações coletivas, especialmente junto ao STF, a efetivação de direitos que os Poderes Executivo e Legislativo não raras vezes desconsideram ou mesmo violam, por ação ou omissão.

Em face disso, quando o STF – em função das contingências – inicia o enfrentamento de uma série de questões que antes não estavam sendo discutidas e resolvidas adequadamente, preocupa-nos a formação de um imaginário que procura simplificar o problema, como se fosse possível também à Suprema Corte se esquivar da resolução de tão sérias questões. Veja-se a pauta dos assuntos que o STF deve resolver e se terá um retrato da situação.

É como olhar a Constituição: por que colocamos “tudo” na Constituição? Porque desconfiamos dos Poderes da República? Queríamos que tudo estivesse garantido não apenas na lei, mas também na “Lei Maior”. A nossa Constituição democrática de 1988 lançou o STF (e o Judiciário) para esse campo da responsabilidade pelo próprio projeto social ali desenhado. E como evitar que essa Lei Maior não se transforme em uma simples folha de papel? Perguntamos: qual é o custo histórico do esvaziamento de uma Constituição no mundo contemporâneo, quando as grandes democracias européias (para citar apenas estas) se fizeram grandes justamente por cumprirem as suas Constituições? São, entre outras, essas as perguntas que devemos responder; não devemos esquecer o papel histórico desempenhado pelos Tribunais Constitucionais da Alemanha, Espanha, Portugal, assim como, há mais de dois séculos, pela Suprema Corte dos Estados Unidos (lembremos dos direitos civis..!.).

Já pelo que aqui foi pautado, em termos ilustrativos, percebe-se (ou, pelo menos, deveria perceber-se) que não se pode acusar o STF de promover a judicialização da política simplesmente com base no levantamento do número de demandas e na identificação de sua natureza e objeto.

É preciso não esquecer que o STF não atua sem ser provocado, sendo no mínimo cômodo para os (demais) poderes e instituições da República, após provocarem o deslocamento da discussão, demonizarem o suposto protagonismo indevido do STF em uma série de temas de alta complexidade e impacto nacional. Não precisamos ir muito longe, mais uma vez, para encontrar exemplos, como bem revela a falta de vontade para a realização de uma efetiva reforma política, novamente objeto de provocação do Supremo Tribunal.

Deixemos que o desgaste seja dele, ao definir quem perde o mandato ou de quem deve ser o mandato. Importante é que não se trata aqui de avaliar o mérito dos julgamentos, mas sim, de apontar para a natureza da dinâmica que tem levado a uma crescente judicialização da vida política, econômica e social brasileira. E o Presidente do STF, que fala pela Corte, ou silencia, sendo, neste caso, fatalmente acusado de omissão e mesmo de desrespeito, ou se posiciona, como titular da mais alta Corte e como cidadão, mas acaba igualmente sendo “culpado” por contrariar expectativas e anseios.

De tudo isso, o que se pretende extrair é a necessidade de compreendermos que não é instaurando um ambiente maniqueísta e uma República de “bodes expiatórios” que estaremos a construir uma autêntica Democracia. Tensões e embates na esfera pública, a despeito de causarem muitas vezes algum desconforto, sejam elas oriundas dos poderes da República e dos seus agentes, sejam elas advindas do corpo social, certamente acabam contribuindo para uma futura síntese e progresso. Afinal, do STF, do seu Presidente e dos seus Ministros, espera-se que decidam ou se espera que decidam por não decidir?

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