Ensino atrapalhado

Professor é condenado por fazer piada racista

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18 de maio de 2009, 16h01

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região publicou o acórdão com a decisão de sua 3ª Turma que condenou, no dia 28 de abril, um professor da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul a pagar multa por ato de racismo. O professor foi denunciado pelo Ministério Público Federal por ter feito em aula comentários racistas. As informações são do Espaço Vital.

Somente com a publicação oficial do acórdão é que veio a público o nome do professor: José Antonio Costa. Embora o processo não tramite em segredo de Justiça, o TRF-4 não havia disponibilizado o nome do réu.

Conforme a denúncia do MPF, o acusado — durante o primeiro dia de aula da disciplina Leguminosas de Grãos Alimentícios, em março de 2000 — pronunciou duas frases polêmicas: “os negrinhos da favela só tinham os dentes brancos porque a água que bebiam possuía flúor” e “soja é que nem negro, uma vez que nasce é difícil de matar”.

Tais manifestações, conforme apuração do MPF provocada pelo aluno Ronaldo Santos de Freitas – que é negro e estava presente, provocaram constrangimento e indignação em todos os presentes, de forma generalizada.

Ainda segundo a inicial, em reação à denúncia dos fatos ao Centro Acadêmico — que encaminhou carta ao diretor da Faculdade e ao chefe de departamento — o professor Costa, na aula posterior, lançou pergunta dirigida à turma — "Alguma dúvida da aula anterior? Ficou claro?" – "com nítido olhar intimidatório direcionado ao aluno Ronaldo, tentando evitar que os fatos fossem levados adiante".

À época, foi aberta uma comissão de sindicância na faculdade, que concluiu que não havia uma conotação racista nas afirmativas do professor e que este tinha “o intuito de criar um ambiente mais descontraído no primeiro dia de aula”. A sindicância também concluiu que o professor fizera "uso de expressões informais usuais no meio rural relacionadas à raça negra".

A ação foi ajuizada contra o professor da Faculdade de Agronomia e também contra o co-réu Sérgio Nicolaiewsky, na condição de diretor da Faculdade de Agronomia, por omitir-se quando foi comunicado do fato ocorrido em aula e, também, pelo uso indevido de recursos públicos (no valor de R$ 550) para pagar a festa de confraternização dos servidores da faculdade em 1998. A ação foi julgada improcedente pelo juiz Altair Antonio Gregório, da 6ª Vara Federal de Porto Alegre (RS).

O apelo do MPF insurgiu-se somente quanto à improcedência relativa ao cometimento de ato discriminatório por parte de José Antônio Costa. Na apelação, disse o Ministério Público estar provado que "houve ação discriminatória e racista" e que esta "provocou constrangimento e indignação em todos os presentes e principalmente no único aluno negro presente".

O professor José Antonio Costa defendeu-se alegando "ter dito as frases sem intenção pejorativa" e que "valera-se de ditado corrente na zona rural, costumeiro em agricultores de origem italiana, com um conteúdo positivo, relativo ao vigor da raça negra".

Entretanto, segundo o entendimento do TRF-4, conforme alunos que testemunharam o fato, o professor Costa se retratou ao final da aula e em aulas posteriores tentado intimidar o aluno ofendido.

O relator do processo, o juiz federal Roger Raupp Rios, convocado para atuar na corte, entendeu que “é inequívoca a violação dos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade”. Segundo o juiz, um professor com o grau de intelectualidade do réu não teria como ignorar o conteúdo racista nas expressões utilizadas.

Conforme o relator, expressões como as que foram usadas, "na reflexão da filosofia política contemporânea são manifestações de injustiça simbólica, que violam direitos por meio de padrões de representação, interpretação e comunicação".

Leia o acórdão:

APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.71.00.025177-7/RS
RELATOR:Juiz ROGER RAUPP RIOS
APELANTE:MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
APELADO:JOSE ANTONIO COSTA
ADVOGADO:Celso Santos Rodrigues e outro
APELADO:SERGIO NICOLAIEWSKY
ADVOGADO:Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira e outros
INTERESSADO:UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS
ADVOGADO:Claudio Moraes Loureiro
EMENTA
DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO. PRECONCEITO RACIAL. DECLARAÇÕES DISCRIMINATÓRIAS EM SALA DE AULA. PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS DA LEGALIDADE, IMPESSOALIDADE E MORALIDADE. ATIVIDADE DE MAGISTÉRIO SUPERIOR. IMPOSIÇÃO DE MULTA CIVIL. APELO PROVIDO.

1. Cabível ação civil pública por improbidade administrativa, uma vez que o artigo 11 da Lei nº 8.429, de 1992, alcança atos violadores dos princípios da administração pública, dentre estes a imparcialidade, a legalidade e a lealdade às instituições, cujo conteúdo abarca a vedação constitucional de discriminação por parte do agente público.
2. A legalidade, entendida de modo amplo, destaca o imperativo jurídico de não-discriminar, presente de modo explícito no texto constitucional (art. 3º, IV, e art. 5º, XLII), bem como em instrumentos internacionais de direitos humanos incorporados ao direito brasileiro (Convenção Internacional para a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial). A legislação infraconstitucional, por sua vez, registra no artigo 20 da Lei nº 7.716/89 (com a redação da Lei nº 9.459/97) incriminação dos atos de ""praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".
3. No que diz respeito direto e imediato aos deveres inerentes ao magistério e aos princípios basilares da atividade de ensino, a Lei nº 9.394, de 1996, arrola a preparação para a cidadania (artigo 2º) e o apreço à tolerância (artigo 3º, IV), cujo conteúdo engloba, de modo evidente, a vedação à discriminação racial.
4. O princípio da impessoalidade, por sua vez, se relaciona com o imperativo legal antidiscriminatório, ao proscrever tratamento favorecido por parte da Administração a determinada pessoa, bem como ao vedar tratamento detrimentoso. A veiculação de expressões racistas por servidor público no exercício de seu múnus de magistério público, portanto, viola a impessoalidade, na medida em que reproduz tratamento detrimentoso à negritude que identifica parcela fundamental da comunidade nacional, sem falar no efeito direto a aluno ali presente.
5. Violação à moralidade administrativa, entendida seja como expectativa de conduta civilizada e correta do agente público, seja como dever de proceder conforme as exigências da instituição, de acordo com a disciplina interna da instituição e suas finalidades.
6. Presença do dolo de expressar frases efetivamente preconceituosas em detrimento da raça negra, não sendo crível que indivíduo com o grau de formação intelectual, experiência e histórico funcional tais quais o apelado não perceba o explícito e textual conteúdo racista na expressão utilizada.
7. Apelo provido, para o fim de condenar o apelo ao pagamento de multa civil.
 

ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao apelo, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
 

Porto Alegre, 28 de abril de 2009.
Juiz Federal ROGER RAUPP RIOS
Relator

RELATÓRIO
Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público Federal contra sentença que julgou improcedente ação civil pública de improbidade administrativa aforada contra José Antônio Costa e Sérgio Nicolaiewsky, tendo a Universidade Federal do Rio Grande do Sul como litisconsorte.
A sentença examinou destacadamente os atos de improbidade imputados aos réus, quais foram: a) uso de dinheiro público para finalidades privadas, por parte de Sérgio Nicolaiewsky; b) cometimento de ato discriminatório por parte de José Antônio Costa; c) omissão administrativa por parte de Sérgio Nicolaiewsky diante do ato discriminatório imputado a José Antônio Costa.
O provimento judicial recorrido considerou improcedente o pedido veiculado nesta ação civil pública em toda a sua extensão.
O apelo insurge-se somente quanto à improcedência relativa ao cometimento de ato discriminatório por parte de José Antônio Costa (item b).
Houve contrarrazões. O parecer ministerial é pelo provimento do recurso. É o sucinto relatório.
Peço dia.

VOTO
1. Preliminares suscitadas pela defesa no curso do processo
1.1. Intempestividade do recurso de apelação
Rejeito a alegação de intempestividade da apelação interposta pelo Ministério Público Federal. Conforme consta das certidões à fl. 1151 (verso), os autos foram remetidos ao Ministério Público Federal, que conta com o direito à intimação pessoal, em 06 de dezembro de 2006 e devolvidos, com apelação protocolada, cinco dias depois, em 11 de dezembro de 2006.
Longe, portanto, do esgotamento de qualquer prazo recursal.
1.2. Inviabilidade da ação civil pública por improbidade administrativa por não se tratar de ato versando enriquecimento ilícito, vantagem econômica indevida ou prejuízo ao erário
Afasto a preliminar de não cabimento da ação civil pública por improbidade administrativa. Com efeito, o caput do artigo 11 da Lei nº 8.429, de 1992, aponta como atos de improbidade administrativa aqueles que violem os princípios da administração pública, dentre os quais se destacam a imparcialidade, a legalidade e a lealdade às instituições, cujo conteúdo abarca, sem dúvida, a vedação constitucional de discriminação por parte do agente público.
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de assentar que a observância da igualdade se relaciona diretamente aos ditames da legalidade, impessoalidade e da moralidade (Ag. Reg. no Mandado de Segurança nº 22.509/SP, j. 26.09.1996; Mandado de Segurança nº 22.493/RJ, j. 26.09.1996).
Ademais, a enumeração dos incisos do artigo 11 é exemplificativa, como deflui diretamente da redação da norma ("constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:")
Não bastasse essa disposição, o artigo 4º da Lei de Improbidade Administrativa é claro ao reprimir toda prática que se choca com a moralidade administrativa:
Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.
Moralidade administrativa, neste contexto, há de ser entendida como dever de observância a um padrão de conduta ética no seio da Administração, cujo conteúdo, sem dúvida, inclui o dever de não discriminar, especialmente quando há acusação de violação da proibição constitucional de discriminação racial. Trata-se, na lição de Guilherme Giacomuzzi (Moralidade Administrativa e Boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa), de uma das dimensões da moralidade administrativa, consubstanciada na expectativa de conduta civilizada e correta do agente público, por parte do cidadão.
Neste sentido, aliás, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que vislumbra na ofensa à igualdade violação aos princípios da legalidade e da moralidade administrativas (Recurso Especial nº 579.541/SP).
1.3. Ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal
Versando a lide sobre suposta conduta violadora dos princípios da administração pública, por parte de agente administrativo, servidor público professor universitário federal, legitima-se o agente ministerial federal para o manejo de ação civil pública por improbidade administrativa.
Rejeito, deste modo, a alegação de ilegitimidade ativa.
2. Mérito: discriminação racial e improbidade
O objeto de análise deste recurso foram manifestações do Professor José Antônio da Costa, em sala de aula da Faculdade de Agronomia da UFRGS, no dia 16 de março de 2000, por duas oportunidades.
Na primeira, ao abordar os benefícios tecnológicos à saúde, disse que:
"os negrinhos da favela só tinham os dentes brancos porque a água que bebiam possuía fluor"
Na segunda, ao falar da cultura da soja, disse que:
"soja é que nem negro, uma vez que nasce é difícil de matar."
Tais manifestações, conforme apuração do Ministério Público Federal (Procedimento Administrativo nº 246/2000) provocada pelo aluno Ronaldo Santos de Freitas, que é negro e estava presente, provocaram constrangimento e indignação em todos os presentes, de forma generalizada.
Ainda segundo a inicial, em reação à denúncia dos fatos ao Centro Acadêmico, que encaminhou carta ao Diretor da Faculdade e ao Chefe de Departamento, o professor, na aula posterior, lançou pergunta dirigida à turma ("Alguma dúvida da aula anterior? Ficou claro?") com nítido olhar intimidatório direcionado ao aluno Ronaldo, tentando evitar que os fatos fossem levados adiante.
O réu admite ter proferido as frases indigitadas.
Quanto à primeira frase, sustenta ter-se utilizado da expressão "negrinhos" sem conotação pejorativa, sendo esta largamente utilizada até mesmo pelos meios de comunicação, especialmente no futebol; isto sem falar no uso doméstico, de modo afetuoso, em relação a seus filhos. Quanto à segunda frase, diz referir-se ao inço da soja, nada mais fazendo do que valer-se de ditado corrente na zona rural, costumeiro em agricultores de origem italiana, com conteúdo positivo, relativo ao vigor da raça negra.
Reafirmou inexistir qualquer intenção discriminatória ou racista, tendo se desculpado ao final da aula. Negou tentativa de intimidação do aluno na aula seguinte, o que seria bastante infantil por sua parte.
A solução deste litígio requer uma avaliação da conduta do professor consoante os deveres decorrentes aos princípios informadores da administração pública, dentre os quais se destacam legalidade, impessoalidade e moralidade.
Como relatado, a sentença não enxergou violação a estes princípios, entendendo inexistir ato discriminatório por parte do professor. A par de censurar veementemente toda forma de intolerância e discriminação, ela não viu na conduta do apelado razão para a condenação, não vislumbrando intuito de humilhar ou menosprezar uma raça ou finalidade discriminatória. A sentença também afirmou que para a caracterização de ato discriminatório é preciso considerar a índole do agente; no caso, a história pessoal e funcional do apelado afastaria índole preconceituosa, tanto que funcionários e alunos depuseram acerca de seu comportamento diante de todas as classes sociais e meios. Valorizou, inclusive, a orientação prestada pelo professor a aluno negro. Segundo a sentença, houve expressão extremamente infeliz, desprovida de intuito discriminatório, em que pese seu potencial ofensivo.
Com a devida vênia, não acompanho esta conclusão. Isto porque, a meu juízo, é inequívoca a violação dos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade quando professor universitário federal se utiliza de expressões com evidente cunho racista, em desatenção à missão do magistério superior federal.
2.1. Legalidade, impessoalidade e moralidade administrativas na docência superior
Os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, na qualidade de normas jurídicas, impõem deveres de conduta à Administração, enquanto instituição, e aos servidores; quanto a estes, de modo geral, alcançando a todos os servidores, e de modo específico, a algumas categorias, dentre as quais aos membros do magistério superior. No caso em apreço, constato violação dos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade, tanto em sua formulação geral, quanto em sua destinação específica a professores.
No âmbito da legalidade, entendida de modo amplo, destaca-se, sem sombra de dúvida, o imperativo jurídico de não-discriminar, presente de modo explícito no texto constitucional (art. 3º, IV, e art. 5º, XLII), bem como em instrumentos internacionais de direitos humanos incorporados ao direito brasileiro (Convenção Internacional para a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial).
A legislação infraconstitucional, por sua vez, registra no artigo 20 da Lei nº 7.716/89 (com a redação da Lei nº 9.459/97) incriminação dos atos de "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". No que diz respeito direto e imediato aos deveres inerentes ao magistério e aos princípios basilares da atividade de ensino, a Lei nº 9.394, de 1996, arrola a preparação para a cidadania (artigo 2º) e o apreço à tolerância (artigo 3º, IV), cujo conteúdo engloba, de modo evidente, a vedação à discriminação racial.
Todos estes instrumentos normativos demonstram, à saciedade, o desrespeito à legalidade na conduta discutida, que reprova com veemência a prática, indução ou incitação à discriminação e ao preconceito de raça, cor e etnia.
O princípio da impessoalidade, por sua vez, se relaciona com o imperativo legal antidiscriminatório. A impessoalidade proscreve tratamento favorecido por parte da Administração a determinada pessoa, precisamente em virtude da igualdade, que é o fundamento da proibição de discriminar. Daí que a impessoalidade também veda "tratamento detrimentoso", na expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 5ª ed., Malheiros, p. 58). A veiculação de expressões racistas por servidor público no exercício de seu múnus de magistério público, portanto, viola a impessoalidade, na medida em que reproduz tratamento detrimentoso à negritude que identifica parcela fundamental da comunidade nacional, sem falar no efeito direto a aluno ali presente.
Todo este quadro fático e normativo faz concluir, por fim, pela violação à moralidade administrativa, entendida seja como expectativa de conduta civilizada e correta do agente público, seja como dever de proceder conforme as exigências da instituição, de acordo com a disciplina interna da instituição e suas finalidades (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 18ª ed., Malheiros, p. 83).
Em suma, os deveres inerentes ao exercício do magistério público, decorrentes dos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa, foram, sem sombra de dúvida, violados pela conduta ora discutida, pelo fato de o professor ter se utilizado, de forma consciente e deliberada, de expressão com cunho claramente racista em sala de aula.
A percepção da gravidade da situação vivida foi claramente expressa pelas conclusões da Comissão Sindicante instaurada para apurar a omissão do então Diretor, Prof. Sérgio Nicolaiewsky, diante do ocorrido em sala de aula – da qual, resultou, inclusive, a imposição de pena de advertência (Portaria nº 3.771/2001, da Vice-Reitoria da UFRGS.
Disse o relatório conclusivo da Comissão, não deixando dúvidas quanto à violação de deveres pedagógicos por parte do apelado:
"1º) não se pode caracterizar como omissão o procedimento realizado pelo Diretor da Faculdade de Agronomia, Prof. Sérgio Nicolaiewsky, por ocasião do episódio que envolveu o aluno Ronaldo Santos de Freitas. Mesmo que a medida tomada não tenha seguido literalmente a letra da Lei, os fatos foram dados a conhecer e houve uma manifestação oficial do Departamento envolvido, sem respaldar a atitude do professor.
2º) tampouco a condução da medida tomada permite perceber uma postura inequívoca em relação a possíveis atitudes e ações discriminatórias no âmbito acadêmico da Unidade em questão. A retórica que circunscreve os aparentes desencontros institucionais – Direção, Departamento, Diretório Acadêmico – parece mostrar uma política institucional e estilos de gestão potencializados por uma cultura pedagógica de naturalização de determinados procedimentos e posturas que, em outros âmbitos da Universidade, são exercidos de forma mais reflexiva e crítica;
3º) o cuidado ético com os alunos que buscam a Universidade para sua formação vai além da oferta curricular e sua materialização didático-pedagógica em sala de aula ou atividades extra-curriculares. Uma cultura acadêmica democrática, que contemple o respeito à diversidade, à pluralidade e ao espírito crítico-reflexivo em relação à ciência e às questões sócio-culturais, são indispensáveis à formação humana dos profissionais, formadores e pesquisadores que cabe à Universidade realizar. Uma afirmação que relacione uma semente invasora e, portanto indesejada, com o negro já é, por si só, desrespeitosa e discriminatória, agravando-se ainda mais quando a solução apontada, em ambos os casos, é o controle pelo extermínio antes de nascer porque depois fica mais difícil. Mesmo que tal afirmação conste do repertório anedótico cotidiano, o que não se justifica no âmbito público e educativo da sala de aula, sua menção em presença de um negro já o discrimina do conjunto e o reduz ofensivamente na sua dignidade de pessoa humana.
4º) a ingenuidade, a contemporização permissiva e a ética corporativa não são os melhores requisitos para o exercício da atividade acadêmica, seja ela docente ou diretiva. No entanto, é no mínimo ingênua a idéia de que o Diretor não é a autoridade política e administrativa máxima da Unidade acadêmica e que, portanto, ele não é a autoridade de que trata o Art. nº 143 da Lei 8.112; como também é permissiva e corporativa a ética institucional que privilegia a contemporização política acima do respeito à dignidade humana daqueles aos quais, como instituição educacional, tem por missão precípua formar.
Nesse sentido, mesmo que, por um lado, as penalidades apontadas pela legislação possam parecer severas, por outro lado, é insustentável do ponto de vista administrativo, político, ético e pedagógico um simples arquivamento do processo. Portanto, a Comissão Sindicante é de parecer que o Professor Sérgio Nicolaiewsky receba aplicação de penalidade de advertência, conforme inciso II, do Artigo nº 145 da Lei 8.112." (grifei)
Não bastasse o divórcio com estes princípios gerais com as diretrizes próprias da Universidade, há que se atentar para os efeitos diretos e imediatos experimentados pelos presentes à sala de aula, mormente pelo aluno Ronaldo.
Colho do depoimento de Ronaldo dos Santos de Freitas, aluno negro presente em sala de aula quando proferidas as frases discutidas:
"que houve um constrangimento geral e a maioria dos alunos olharam para o declarante; que o declarante se sentiu extremamente indignado e discriminado; que o declarante saiu da aula se sentindo depressivo, magoado e desanimado com a faculdade; que alguns colegas em tom de brincadeira passaram a chamá-lo de inço; (…); que na aula seguinte, 15 dias depois, em tom intimidatório, o professor José Antônio olhando diretamente ao declarante, indagou por três vezes: "alguma dúvida";" (fl. 993)
Já o depoimento de Leandro Lima Borella, que estava na sala de aula, registra:
"Depoente: …o professor Costa fez uma comparação com plantas daninhas que ocorrem na lavoura de soja que tem que ser controladas no começo da lavoura. Ele comparou a negros que tem que controlar no começo para não ter problemas depois. Eu não me lembro exatamente as palavras, mas…
Juíza: Houve essa comparação da erva daninha com os negros? Seria nesse sentido?
Depoente: É, essa comparação.
(…)
Juíza: Bom, a frase, especificamente, o Sr. Não recorda? O Sr. Lembra se ele usou algum tom pejorativo, ofensivo quando ele disse essas frases?
Depoente: O tom, realmente, eu não soube interpretar, mas me chocou no momento. Pela questão de eu conhecer o Ronaldo, de eu conviver com o Ronaldo que era um rapaz negro, que é um rapaz negro.
Juíza: Então, o Ronaldo era um negro que estava presente na aula?
Depoente: Estava presente na aula. Então isso chocou não só a mim, mas como outros colegas também.
Juíza: Era o único aluno negro?
Depoente: Era.
Juíza: O sr. Lembra se o professor chegou a pedir desculpas para a turma pelo que ele falou ou pediu, especificamente, para esse aluno?
Depoente: Especificamente para o aluno não, mas ele fez uma retratação no final da aula.
Juíza: Então ele se deu por conta do que ele tinha falado? O sr. Não lembra em que termos ele se retratou?
Depoente: Não, não lembro.
Juíza: Alguma outra vez, esse mesmo professor, manifestou-se dessa forma?
Depoente: Dessa forma, em relação a negros, não.
Juíza: Não?
Depoente: Não. Acredito mais a pobres, mas isso aí foi outra coisa.
Juíza: Mas com relação a pobres então alguma vez ele se…
Depoente: É, eu também não recordo, isso aí foi mais um comentário, eu não presenciei.
(…)
Procuradora da República: Eu só gostaria de perguntar para a testemunha se ele se recorda de ter conversado com esse aluno negro, Ronaldo, se ele comentou o fato, se tinha causado para ele algum tipo de constrangimento ou se tinha ficado ofendido pela situação:
Depoente: Eu conversei com o Ronaldo, o Ronaldo é meu amigo, até eu residi com ele na casa de estudante lá no Agronomia. No momento ele ficou bastante chateado, bastante chocado, assim, pela questão de ele ser negro e ter vindo um comentário desse de um professor no primeiro dia de aula.
Juíza: Foi um sentimento geral da turma? Todo mundo percebeu isso na hora?
Depoente: Alguns, assim, algumas pessoas mais chegadas, que a gente conversa, que a gente tem proximidade, sim. (fls. 1.029-verso a 1030-verso).
Juliana Mazurana, também presente à aula, respondeu que:
"…; que ao ver da depoente tais expressões não precisavam ser ditas para abordar a matéria da disciplina; que a depoente se sentiu chocada com as expressões usadas pelo professor visto conterem conteúdo discriminatório; (…) que no final da aula o professor José Antônio da Costa pediu desculpas pela brincadeira se dirigindo especificamente ao aluno Ronaldo Santos de Freitas; (…) que na aula posterior ao dia 16 de março, o professor José Antônio Costa, se dirigindo mais ao aluno Ronaldo Santos de Freitas, pediu se tinha restado alguma dúvida da aula anterior, se tinha ficado "tudo claro", com o propósito, ao ver da depoente, de intimidar Ronaldo. (…) Pelo que a depoente deduziu, não havia intenção específica do professor José Antônio Costa ofender o aluno Ronaldo Santos de Freitas. Que não é usual no meio agronômico expressões do teor proferidas pelo professor José Costa. Que a depoente não ouviu expressões semelhantes no meio em que trabalha. (fls. 1071-1072)
Outra estudante, também presente, Letícia Grala Dias, referiu:
"…ficou chocada e constrangida com a utilização da expressão pelo professor e colegas da frente se entreolharam. (…) No curso de agronomia havia no máximo 3 alunos negros. Na disciplina ministrada pelo réu, só Ronaldo cursava. (…) No mesmo dia do ocorrido, o professor desculpou-se ao final da aula olhando diretamente para Ronaldo e dizendo algo como desculpa aí o amigo (ou colega). (fl. 1107)
Na contramão disto, o relatório conclusivo da comissão sindicante designada para averiguar o uso de palavras de conotação racista pelo apelado concluiu diversamente, ao sustentar que este, "…no intuito de criar um ambiente mais descontraído no primeiro dia de aula da disciplina AGR07009 Leguminosas de Grãos Alimentícios, ao discorrer sobre um determinado contexto relacionado com a importância e o manejo da cultura da soja, fez uso de expressões coloquiais e de expressões informais usuais no meio rural, relacionadas com a raça negra. A Comissão Sindicante considerou que as expressões usadas pelo Professor José Antônio Costa, embora inapropriadas, não caracterizam discriminação racial no contexto em que foram usadas." (fl. 422).
A avaliação da comissão sindicante acima referida em nada enfraquece o fato de terem sido violados deveres inerentes ao magistério superior. Com ou sem intenção discriminatória, foram utilizadas metáforas e afirmações racistas e classistas em sala de aula, de modo completamente inapropriado e desnecessário, reproduzindo estereótipos e estigmas discriminatórios.
Ademais, a conclusão desta Comissão sindicante, a par de quase nada fundamentada, não infirma a existência de efeito racista, limitando-se somente a afirmar que a intenção visava somente a "criar um ambiente mais descontraído".
Esta conclusão traz à tona indagação sobre a necessidade de intenção discriminatória por parte do agente para a verificação ou não da existência de discriminação racial. Detenho-me no ponto, dada sua relevância jurídica e social, ainda que a fundamentação acima desenvolvida seja suficiente, por si só, para demonstrar a violação dos princípios administrativos por parte do servidor apelado.
 

2.2. Improbidade administrativa e discriminação: utilização deliberada e intencional de expressão racista
No caso concreto, há elementos a reprovar juridicamente a conduta discutida. De fato, o agente do Ministério Público Federal que oficia perante o Juízo Criminal vislumbrou dolo, consignando na denúncia que desencadeou processo penal por crime de racismo que "o denunciado – que realizou mestrado pela UFRGS e doutorado em universidade estrangeira, sendo, ainda, professor concursado de graduação e pós-graduação de Universidade Federal – tinha, como tem, também por isto, a plena consciência de que suas afirmativas são efetivamente preconceituosas em detrimento da raça negra" (fl. 426, grifos no original).
Concordando com a posição ministerial, tenho que fica superada qualquer alegação de não-incidência do artigo 11 da Lei nº 8.429/1992, segundo a qual seria necessária a existência de dolo. De fato, conforme a denúncia penal, houve dolo de expressar frases efetivamente preconceituosas em detrimento da raça negra.
Com efeito, não é crível que indivíduo com o grau de formação intelectual, experiência e histórico funcional tais quais o apelado não perceba o explícito e textual conteúdo racista na expressão utilizada – tanto que ao final da aula preocupou-se em manifestar suas desculpas.
Assim analisados os fatos, não há que se falar em frases desprovidas de potencial ofensivo ou discriminatório, oriundas do meio rural, comuns especialmente entre descendentes de italianos, como lembrou a defesa.
Ninguém duvida do potencial ofensivo e discriminatório de frases que veiculassem, para "tornar mais descontraído o ambiente", ofensas e desqualificações contra categorias profissionais, mulheres ou negros:
"negro bom é negro de alma branca"
"negro é sempre assim: se não faz na entrada, faz na saída"
"juízes, promotores e advogados são que nem pragas: quando infestam sua vida não largam mais"
"lugar de mulher é na cozinha"
"marido, quando não sabe porque está batendo, a mulher sabe porque está apanhando"
"Você sabe como salvar cinco advogados que estão se afogando? R: Não. Ótimo!"
"Por que cobras não picam advogados? R: Ética profissional."
"Como você sabe que um advogado está mentindo? R: Seus lábios estão se mexendo."
"Sabe qual a diferença entre Juízes de Primeira Instância e os de Segunda? Os primeiros pensam que são Deus…. Os outros já têm certeza!!!"
Ninguém sustentaria que pessoa culta e experiente, ao utilizar-se deliberadamente de frases deste jaez, não saiba estar reproduzindo preconceito voltado contra certos grupos da sociedade.
Expressões deste tipo ilustram, na reflexão da filosofia política contemporânea, manifestações de injustiça simbólica, que violam direitos por meio de padrões de representação, interpretação e comunicação (Nancy Fraser, Justice Interruptus: critical reflection on the postsocialist condition, 1997; José Reinaldo de Lima Lopes, O direito ao reconhecimento de gays e lésbicas, na obra A Justiça e os Direitos de Gays e Lésbicas – jurisprudência comentada, 2003).
Tudo isto compreendido, conclui-se pelo profundo equívoco do argumento que invoca finalidades didáticas e pedagógicas para a utilização de expressões com cunho racista. De fato, não faz sentido dizer que, "mesmo que não concorde com ditas comparações, compreendo que, em algumas situações, o professor as utiliza com o objetivo de trazer o estudante para o tema, principalmente porque neste curso existe um grande número de estudantes oriundos do interior, onde são comuns tais comparações".
A circunstância de esta ponderação ter sido trazida por antigo Diretor da Faculdade de Agronomia mostra como o fenômeno da discriminação institucional é forte e disseminado e como os indivíduos tem o dever de evitá-la e repudiá-la, ao invés de reproduzi-la. A instituição faz a discriminação parecer às pessoas como fato natural e aceitável, circunstância que torna mais grave a reprodução desnecessária de expressões com cunho discriminatório racial.
Por fim, a circunstância de ter havido composição para a suspensão do processo penal por racismo aponta para a seriedade dos fatos e, ao contrário de fazer sem sentido a presente ação civil pública, mostra sua propriedade. Até mesmo porque a dimensão institucional onde está imerso o apelado não é apanhada pela ação penal.

3. Dispositivo
Assentada esta fundamentação, tenho que o apelo deve ser provido, para o fim de acolher o pedido inicial, que requer a condenação do apelo nas sanções do artigo 12 da Lei nº 8.429/1990.
Este dispositivo legal enumera as seguintes cominações: ressarcimento integral do dano, se houver; suspensão dos direitos políticos, de três a cinco anos; pagamento de multa civil de até 100 vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios e incentivos fiscais e creditícios, direta e indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário pelo prazo de 3 anos.
Tendo em vista as circunstâncias do caso, onde (1) professor universitário reproduz em sala de aula, de modo ativo, expressões discriminatórias, (2) em desacordo com os princípios que regem a o ensino público federal e o exercício do magistério, (3) com pedido de desculpas e (4) com a suspensão de processo penal por crime de racismo, no qual foram cumpridas as condições acertadas, bem como (5) o caráter pedagógico e reparador de todos os procedimentos instaurados contra o apelado, para si, para a instituição e para os envolvidos, e (6) a desproporção que seria a suspensão dos direitos políticos do apelado, dou provimento ao recurso para o fim de condenar o apelado ao pagamento de multa civil, fixada no valor integral de 1 (uma) remuneração mensal percebida pelos cofres públicos em virtude do desempenho do cargo de professor universitário titularizado pelo apelado, consideradas todas as vantagens e adicionais que recebia quando da ocorrência do fato perseguido nesta ação civil pública, cuja satisfação poderá ser parcelada, a critério do juízo de origem, em até 10 (dez) prestações mensais. Este montante será destinado ao fundo previsto pelo artigo

13 da Lei nº 7.347, de 1985.
Ante o exposto, voto por dar provimento ao apelo.
Juiz Federal ROGER RAUPP RIOS
Relator

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