Ilegitimidade passiva

Responsabilidade do exequente na extinção da execução

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12 de maio de 2009, 4h09

Uma das mais marcantes tendências da moderna processualística é a preocupação com a efetividade da prestação da tutela jurisdicional e o modo como deve ser associada à celeridade do processo, desfazendo-se mitos que apenas tornavam o processo um instrumento burocratizado como um quase-fim em si mesmo.

O processo não é um fim em si mesmo. É a percepção de sua instrumentalidade que levou a uma nova concepção do modo como as normas que o regulamentam devem ser interpretadas, sempre sob a orientação lançada pelo disposto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Sob tal perspectiva, plenamente sincronizada com os anelos de um processo eficiente, capaz de atender aos anseios da sociedade quanto a entrega da prestação jurisdicional, ressalta a aplicabilidade do artigo 574 do Código de Processo Civil, até hoje muito mal-compreendida e quase não utilizado ou invocado pelos jurisdicionados, embora seu enunciado apresente-se estável, já que não sofreu qualquer alteração desde que fora concebido originariamente pelo legislador de 1973.

O artigo 574 do CPC estatui a responsabilidade do exequente pela execução infundada. Reza que o credor deve ressarcir ao devedor os danos que este sofreu, quando a sentença, passada em julgado, declara inexistente, no todo ou em parte, a obrigação que deu lugar à execução.

O primeiro empecilho a ser arredado para a boa compreensão e aplicação desse dispositivo, cuja eficácia tem sido obstada exatamente porque mal-compreendido, é a correta apreensão da mens legis quando se refere a sentença passada em julgado que declara ser inexistente, no todo ou em parte, a obrigação que deu lugar à execução. A menos que se compreenda corretamente essa proposição, não será possível dar ao artigo 574 do CPC a eficácia intencionada.

O primeiro passo dessa tarefa exegética consiste em perceber que o artigo 574 insere-se no contexto das execuções e que nestas não há juízo de mérito quanto à obrigação objeto da execução. Já por aí se pode perceber que o legislador, conquanto bem-intencionado, confundiu conceitos jurídicos relevantes, os quais devem ser resgatados pelo intérprete da lei para não deixar a norma esvaziar-se de seu conteúdo preceptivo.

Assim, se é certo que na execução não há sentença de mérito quanto à obrigação exequenda — as hipóteses de extinção da execução, elencadas no artigo 794, mesmo quando pronunciadas pelo juiz de conformidade com o artigo 795 do mesmo codex, não contemplam juízo de mérito sobre a existência da obrigação objeto da execução —, igualmente correto é que o artigo 574 encontra-se, topologicamente, vinculado à própria execução. Por isso, não prosperam os argumentos de que o comando nele inscrito somente teria aplicabilidade nos casos em que: 1) a obrigação exequenda fosse declarada inexistente, no todo ou em parte, em sede de embargos à execução; 2) houvesse reforma da sentença condenatória que deu origem à execução; 3) a obrigação fosse declarada inexistente, no todo ou em parte, em ação autônoma, que constituiria prejudicial externa à própria execução.

O rechaço é mesmo simples e lógico.

Na primeira hipótese, se a eficácia do artigo 574 do CPC estivesse subordinada à declaração de inexistência, expressa e específica da obrigação que deu origem à execução, na sentença que julga os embargos do devedor, então, força convir, o comando está fora do lugar onde deveria localizar-se. Com efeito, os embargos do devedor são objeto de disciplina específica, a eles devotando o Código de Processo Civil todo o Título III do Livro II (arts. 736 a 747). Avulta a natureza dos embargos, de ação incidental à execução, que se extingue por meio de sentença (art. 740).

Ora, o artigo 574 localiza-se no primeiro capítulo do Título I do Livro II, sob o qual o Código de Processo Civil dispõe sobre as partes na execução. Logo, afigura-se forçada a interpretação de que diz respeito à sentença proferida nos embargos à execução (ou do devedor, como queiram). Trata-se de disciplina pertinente à execução em si mesma.


Mas como no processo de execução não se conhece de matéria de mérito, não se pode pretender que o juiz enfrente a questão da existência ou não da obrigação em que se lastreia a execução. Aliás, é até mesmo incabível tal arguição.

A razão disso é direta e objetiva. De acordo com o artigo 568 do CPC, podem ser sujeitos passivos na execução o devedor, assim reconhecido como tal no título executivo (inc. I); o espólio, os herdeiros ou os sucessores do devedor (inc. II); o novo devedor, que assumiu, com o consentimento do credor, a obrigação resultante do título executivo (inc. III); o fiador judicial (inc. IV); o responsável tributário, assim definido na legislação própria (inc. V). Destarte, força convir, o artigo 568 estabelece que a legitimidade passiva coincide com a legitimidade material. Por outras palavras, legitimado para sofrer ou responder à execução forçada é aquele contra quem existe uma obrigação inadimplida.

Isso significa que a declaração de ilegitimidade passiva outra coisa não faz se não reconhecer que não existe dívida, ou melhor, que a obrigação exequenda não vincula a parte apontada como devedora. Vale dizer, se o executado é declarado parte ilegítima é porque não é devedor, e se não é devedor, é porque não existe, pelo menos em relação a ele, a obrigação que lastreia a execução.

Assim, dizer que o executado é parte ilegítima significa declarar a inexistência da obrigação exequenda relativamente a ele, pois é impossível dizê-lo parte ilegítima e ao mesmo tempo reconhecer a existência da obrigação exequenda como relação jurídica capaz de vinculá-lo ao credor exequente.

Decorre daí a desnecessidade de ação própria ou de embargos à execução para obter um provimento extintivo da execução fundado na inexistência da obrigação exequenda, pois esse pronunciamento judicial pode ser obtido por meio de exceção de pré-executividade cujo fundamento seja a ilegitimidade passiva, matéria de ordem pública que, ao reconhecer e declarar a ilegitimidade passiva, não só decreta a extinção da execução por ser o exequente carecedor da ação executiva, como também reconhece a inexistência de vínculo obrigacional (toda obrigação é relação jurídica que junge ao menos duas partes, credor e devedor), já que a legitimidade em sede de execução confunde-se com a legitimidade material (v. por todos Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil: vol. IV, pp. 118 et passim).

A segunda hipótese não vinga porque se a sentença que deu origem à execução ainda não passou em julgado, mas pode sofrer reforma capaz de expungir da ordem jurídica o título executivo judicial, não cai sob a égide do artigo 574 do CPC, mas, sim, sob a regência do artigo 475-O, inciso I, do mesmo codex, a responsabilidade do exequente pelos prejuízos que, com a execução, vier a sofrer o executado.

A terceira hipótese não é de todo incompatível com a aplicabilidade do artigo 574, mas também não constitui a única hipótese de sua incidência. A ação pendente, capaz de emascular o título executivo com base no qual foi aparelhada execução, pode acarretar para o credor a responsabilidade prevista no artigo 574, caso seja julgada em favor do devedor, declarando a inexistência, total ou parcial, da obrigação exequenda.

Vale lembrar que a execução desenvolve-se por conta e risco do credor. Assim, se não há segurança plena quanto a existência do crédito, no sentido de que pode ser atacado pelo suposto devedor e este pode obter um provimento judicial que lhe seja favorável, pode o credor antecipar-se e, antes de promover a execução, buscar a declaração de existência plena da obrigação que vincula o devedor por meio da ação própria, cuja sentença transitada em julgado constituirá, ao lume do que dispõe o artigo 475-N, inciso I, título executivo judicial. No entanto, se o credor, a despeito da incerteza material quanto à existência da obrigação, ainda assim, fundado apenas em uma certeza meramente formal, propõe a ação executiva, corre os riscos inerentes à sua decisão, caso dela defluam prejuízos para quem não é devedor.


Por outro lado, não há dúvida de que a responsabilidade do credor, decorrente da aplicação do artigo 574 do CPC, é do tipo objetiva. Isto significa que não há necessidade de se investigar se agiu com dolo ou culpa. Basta o fato de ter aparelhado execução em face de quem não encaixa em qualquer das hipóteses previstas no artigo 568 do estatuto de ritos para que a execução seja extinta por ilegitimidade passiva, o que, por sua vez, equivale a declarar a inexistência da obrigação em relação ao executado. Essa ilegitimidade passiva, frise-se, em sede de execução, traduz a ausência de obrigação.

Assim, se aquele que foi apontado como devedor não figura no título executivo, então esse título não o obriga, mas a outra pessoa, de modo que a execução não pode prosperar com fulcro na ilegitimidade passiva. A ilegitimidade aí reflete a situação negativa de direito material: a inexistência da obrigação.

Ressalte-se, é absolutamente impossível acontecer de a parte ser ilegítima e a obrigação existir em face dela. Se é ilegítima é porque em face dela não há obrigação, do contrário seria legítima.

A conclusão a que se chega é que sempre que a execução for extinta por ilegitimidade passiva é porque não existe a obrigação contra o suposto devedor. E se não existe a obrigação, logo, a execução é manifestamente infundada. Sendo infundada a obrigação, incide a regra do artigo 574 do CPC para responsabilizar o exequente a ressarcir ao executado os prejuízos que este sofreu com a execução aparelhada contra si. Trata-se de argumento lógico, bem construído, a que os lógicos denominam soundness.

Resolvida a questão exegética sobre a aplicabilidade do artigo 574 do CPC, cabe agora investigar como se opera a cobrança da indenização nele prevista, ou seja, como torná-lo eficaz em harmonia com a moderna processualística.

Embora o Código não contenha previsão expressa no bojo do próprio artigo 574, a solução, mais uma vez, provém da interpretação sistemática, a qual conduz à aplicação analógica de outros dispositivos cuja disciplina é análoga à do artigo 574.

Em primeiro lugar, não há nada que vede a aplicação analógica de normas processuais. O fato de o Código de Processo Civil, ele mesmo não dispor sobre essa possibilidade, não inviabiliza o recurso a essa técnica de integração normativa.

Segundo, as normas do processo penal, que instrumentalizam a aplicação de um direito material muito mais restritivo do que fazem as normas do processo civil, admitem expressamente a aplicação por analogia (CPP, art. 3º). Assim, constituiria um absurdo terrificante permitir interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito no processo penal e não permiti-los no processo civil.

Acede as regras inscritas no artigo 4º da LICC, segundo as quais, também expressamente, o intérprete e aplicador da lei deve recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito sempre que a lei for omissa sobre ponto a respeito do qual deva decidir.

Sobreleva, contudo, a norma prevista no artigo 126 do próprio Código de Processo Civil, de acordo com a qual o juiz não se exime de decidir quando haja lacuna na lei, devendo fazê-lo com recurso à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. Esse dispositivo, embora povoe o Livro I do Código de Processo Civil, que disciplina o processo de conhecimento, aplica-se aos processos de execução ex vi do artigo 598 do mesmo codex.

Fixados esses parâmetros hermenêuticos integrativos e reconhecida a ausência de disciplina específica sobre como deve ser aplicado o artigo 574, isto é, como se deve proceder para apurar e cobrar os danos ocasionados pelo credor que promoveu execução contra quem não era devedor, a solução provém, até com relativa facilidade, do recurso à analogia, uma vez que se depara no próprio Código de Processo Civil situações absolutamente análogas. São aquelas previstas no artigo 475-O, incisos I e II, bem como no artigo 811, caput e parágrafo único.


Deveras, o inciso I do artigo 475-O, a exemplo do artigo 574, estatui a responsabilidade objetiva do exequente, ali em sede de execução provisória, que deverá indenizar os danos que o executado tiver sofrido, caso a sentença seja reformada. Já o inciso II do artigo 475-O, reforça que a reforma da sentença que deu lugar à execução provisória implica o dever de se restituir as partes ao estado anterior, devendo os prejuízos ser liquidados nos mesmos autos.

Disposição semelhante está prevista no artigo 811, caput e parágrafo único. Com efeito, o requerente de medida cautelar responde pelos prejuízos que provierem de sua execução ao requerido, nas hipóteses elencadas no caput do artigo. O parágrafo único do mesmo dispositivo de lei determina, por sua vez, que a liquidação desses prejuízos deve ser feita nos mesmos autos da ação cautelar.

Aí estão, pois, os norteamentos analógicos que orientam a aplicação do artigo 574 do CPC. Tanto o artigo 475-O, incisos I e II, quanto o artigo 811, caput e parágrafo único têm em comum com o artigo 574 uma medida de caráter executiva com potencial lesivo para aquele contra quem será executada. No primeiro caso, a diferença é apenas de certeza. O artigo 475-O, incisos I e II disciplina a responsabilidade do exequente na execução provisória, enquanto o artigo 574 dispõe sobre a responsabilidade do exequente na execução definitiva. Aquele porque havia um título que pode deixar de existir. Este porque, na verdade, nunca teve título contra quem apontou como executado. É, pois, mais grave a responsabilidade na hipótese do artigo 574. O mesmo ocorre entre o artigo 811 e o artigo 574. No primeiro, o requerente da medida cautelar tem em seu favor um provimento judicial que o legitima a executá-la. Desaparecendo, no entanto, essa causa legitimadora, porque sobreveio uma das situações previstas no caput do artigo 811, corre para ele a responsabilidade prevista no parágrafo único do mesmo artigo. Já o segundo, aparelha execução em face de quem vem a ser declarado parte ilegítima para ocupar o polo passivo, havendo nessa declaração o reconhecimento, ainda que implícito, de que não possuía qualidade para sofrer ou sujeitar-se à insurgência do exequente.

Como o direito de ação é subjetivo público e potestativo, deve o exequente responder pelos prejuízos que sua ação ocasionou ao executado declarado parte ilegítima para a execução. A liquidação dos prejuízos deve processar-se perante o próprio juiz que decidiu a execução, e nos mesmos autos desta, invertendo-se os polos, por aplicação, também analógica, do 575, II, do CPC (competência absoluta horizontal funcional), pois ninguém melhor do que o próprio juiz da execução infundada para liquidar e decidir, em sede de incidente de liquidação por perdas e danos, o valor a ser indenizado.

Esse incidente deve processar-se de conformidade com as disposições do Capítulo IX do Livro I do CPC, iniciando-se por provocação da parte interessada, que especificará o modo de liquidação pretendido e a natureza dos prejuízos sofridos. Tratando-se de danos materiais, há de se operar a liquidação por artigos, permitindo-se o contraditório e a ampla defesa. Tratando-se, no entanto, de danos morais, decorrentes da execução, como a inscrição do nome do executado nos cadastros dos órgãos de proteção ao crédito (Serasa, SPC, etc.), força convir provam-se in re ipsa, sendo suficiente a demonstração da inscrição para caracterizar a ocorrência do dano. Nessa hipótese, a indenização deve ser liquidada por arbitramento.

Como conclusão, a extinção de ação executiva fundada na ilegitimidade passiva do executado implica a incidência do artigo 574 do CPC, liquidando-se os prejuízos nos próprios autos em que se processou a execução, sujeitando-se aos prazos prescricionais previstos no Código Civil, acarretando a inércia do interessado a prescrição da pretensão reparatória, desnecessária a propositura de ação própria para tal fim.

Autores

  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

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