Disputa financiada

Projeto do fisco permite execução administrativa

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9 de maio de 2009, 8h35

A penhora administrativa de bens pelo fisco pode se tornar realidade. Desde o mês passado, a ideia da Receita Federal de procurar e bloquear bens de contribuintes devedores antes mesmo de um processo judicial tramita como projeto de lei na Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei 5.080/09, recebido no Congresso no dia 20 de abril, tramita em caráter conclusivo pelas comissões, o que significa que, se aprovado, não terá de ser votado no Plenário da casa. Clique aqui para ler o projeto, que tramita em conjunto com outras duas propostas de lei ordinária — clique aqui e aqui para ler —, e uma de lei complementar — clique aqui para consultar.

A proposta, que altera a Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80), dá às fazendas federal, estaduais e municipais a possibilidade de bloquear valores em contas bancárias e investimentos financeiros, bens móveis e imóveis e até o faturamento de empresas e pessoas físicas que tenham débitos inscritos em dívida ativa. Por meio de um novo cadastro interligado com os órgãos de registro público, o chamado Sistema Nacional de Informações Patrimoniais dos Contribuintes (SNIPC), os fiscos poderão buscar e ordenar o bloqueio, por exemplo, de automóveis nos Detrans, de imóveis nos cartórios e de investimentos em bolsa de valores. O sistema ainda está em fase de implantação.

Na prática, a intenção é tirar da fase judicial a busca de valores que possam satisfazer as futuras execuções fiscais, como explica o procurador-geral da Fazenda Nacional, Luís Inácio Lucena Adams. “Quando não forem localizados bens que satisfaçam o crédito tributário, a execução nem será ajuizada, o que desafoga o Judiciário”, explica. Isso porque, de acordo com a lei atual, só pode haver constrição de bens com uma ordem judicial nesse sentido. Como as dívidas demoram para ir ao Judiciário — em média quatro anos — e mais ainda para serem cobradas na Justiça — os processos costumam tramitar por até 12 anos —, o adiantamento da fase de apresentação de garantias resolveria o principal problema das execuções: o de saber se o devedor tem condições de satisfazer o crédito. “A duração das ações na Justiça deve cair para cinco anos ou menos”, diz o procurador-geral.

Os números justificam a iniciativa. Citando o relatório Justiça em Números, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça, a Fazenda aponta que, em 2005, a média de casos tributários novos resolvidos foi menor que 50%, sendo que as ações em primeira instância aumentaram 15%, onde a taxa de congestionamento já é de 80%. O mesmo relatório mostra que as execuções fiscais respondem por nada menos que metade dos processos judiciais em andamento no país. Todo esse volume responde por uma recuperação anual de créditos menor que 1% do estoque da dívida ativa da União, de R$ 600 bilhões, por exemplo. Incluídas as cobranças ainda na fase administrativa, o valor do crédito federal sobe para R$ 900 bilhões.

Com a possível mudança, assim que o débito for inscrito na dívida ativa, o devedor terá 60 dias para quitar ou parcelar o valor, ou para apresentar bens que garantam a dívida. Entram na lista valores em dinheiro, depósitos bancários ou mesmo seguro-fiança — ideia que não estava na proposta original da Fazenda Federal, mas que foi introduzida quando chegou ao Congresso. Se não houver depósito, a Fazenda fica autorizada a penhorar o valor equivalente, o que deve ser feito por um oficial fazendário.

Até mesmo a chamada exceção de pré-executividade — argumento apresentado pelos advogados ao juiz principalmente quando já existe comprovação do pagamento do débito e que pode extinguir a execução logo no início do processo — foi apropriada pelo fisco. Antes de depositar as garantias, o contribuinte pode alegar motivos para que a cobrança seja extinta, conforme o artigo 7º do PL. “A contar da notificação, o devedor poderá arguir, no prazo de 30 dias, fundamentadamente, sem efeito suspensivo, perante a Fazenda Pública, o pagamento, a compensação anterior à inscrição, matérias de ordem pública e outras causas de nulidade do título que possam ser verificadas de plano, sem necessidade de dilação probatória”, diz o texto.

Garantida a dívida, o fisco terá 30 dias para ajuizar a execução e o Judiciário, mais 90 dias para decidir se os bens vão continuar bloqueados. Ativos financeiros, porém, só podem ser retidos pela Fazenda em até três dias depois da inscrição na dívida ativa e ficam parados por, no máximo, dez dias. O fisco tem então mais três dias para ajuizar a execução e o juiz, mais sete para manter ou não o bloqueio. No caso de imóveis, o prazo para a decisão da Justiça aumenta para quatro meses.

Se para o fisco as mudanças resolvem um problema, para os contribuintes, criam interrogações. “O contraditório na fase administrativa é marcado pela dificuldade de o contribuinte se defender e por abusos e arbitrariedades”, diz a advogada Creuza de Abreu Vieira Coelho, do escritório Campos Mello, Pontes, Vinci & Schiller Advogados. Segundo ela, é comum haver erros e falta de informação nos autos de infração do fisco e nem sempre existe a possibilidade de defesa.

“Quando o valor do débito é informado na DCTF [Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais, da Receita Federal], o lançamento é considerado feito e não há sequer espaço para contestação na Receita. O valor em aberto vai direto para a dívida ativa”, protesta. Isso significa que, para contestar, o contribuinte teria que depositar a garantia. Em casos diferentes, antes de o débito ser inscrito, o questionamento na Receita passa pela Delegacia Tributária da Região, uma espécie de primeira instância, e pode chegar ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, tribunal paritário com sede em Brasília.

Na visão da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), no entanto, a Justiça já entendeu que lançamentos feitos em DCTF — declaração obrigatória para as empresas — são autodeclarações consideradas como confissões de dívida, como explica o procurador-geral Luís Inácio Adams. “Essas situações podem ser solucionadas pela exceção de pré-executividade antecipada”, diz.

Outro problema apontado por Creuza Coelho com a apropriação de procedimentos judiciais na fase administrativa é que o fisco não analisa discussões quanto à constitucionalidade de leis, o que ocorre na Justiça. “No caso da cobrança de um tributo inconstitucional, a empresa teria que disponibilizar bens sem poder contestar”, afirma. Além disso, sem a garantia, empresas que concorrem em processos licitatórios ficariam sem certidão negativa de débitos emitida pelo fisco, documento exigido em disputas por contratações públicas ou mesmo privadas.

A própria proposta de alteração da Lei de Execuções Fiscais já viola a Constituição, na opinião de Fernando Zilveti, professor de Planejamento Tributário da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas. “O Judiciário é quem dá a última palavra. Constrição de bens sem determinação da Justiça é suprimir a esfera judicial, o que a Constituição não autoriza”, diz. O professor cita o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que diz: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Segundo Zilveti, a proposta da Receita se baseia em um modelo previsto ainda na Constituição do Império, em que as decisões administrativas criavam a chamada “coisa julgada”. “Isso funciona na Alemanha, onde existe um tribunal de finanças paritário, desvinculado do Executivo e do Judiciário e, portanto, imparcial”, explica. Para ele, a ideia da Receita não se alinha com as Constituições republicanas brasileiras posteriores a 1891, em que é o Judiciário quem dá a última palavra em tudo. “A constrição preparatória causa lesão antecipada.”

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