Penhora do salário

A penhora sobre bens ressalvados representa abuso

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1 de maio de 2009, 7h30

Independente do seu valor, o salário – assim como os títulos remuneratórios que lhe são equiparados na Constituição – por terem declarada natureza jurídica alimentar – têm a proteção necessária da lei – reserva legal remissiva–, e esta nunca prescinde da interpretação sistemática. É o que exclui a possibilidade de que a legislação possa ser entendida como restritiva da garantia constitucional, criando exceções.

Razões de ordem empírica, como a de satisfazer a credor diante de devedor melhor remunerado, ou proprietário de residência valiosa, não pode descambar na conhecida divisa de um imperador fiat justitia pereat mundus – faça-se a justiça ainda que o mundo acabe –. Levada ao grau superlativo, ela significa justiça nenhuma. De que serviria o sentimento de justiça provindo do caos? Nada pode ser justo se destrói a ordem que o justifica. Hegel já fez a retificação necessária: fiat justitia ne pereat mundus – faça-se a justiça para que o mundo não pereça.

A garantia da incolumidade do salário é uma regra civilizatória, tornada absoluta progressivamente, acompanhando os séculos da lenta construção jurídica garantidora do trabalho. Por isso mesmo, a relativização dessa garantia, e sua consequente infringência por autoridades públicas, pode caracterizar o tipo penal do abuso de autoridade. No caso de juízes, também o desvio delituoso no exercício da jurisdição.

1 – Um fenômeno estabelecido
Desde as duas décadas finais do Século XX, estabeleceu-se no Brasil um fenômeno típico do que hoje se chama economia emergente.

Ex-empregados – especialmente aqueles que sacaram os depósitos do FGTS, ou ganharam pecúlios por acidente, ou indenizações–, funcionários públicos e artífices aposentados procuraram estabelecer pequena atividade empresarial, na medida do capital que dispunham, seja para fugir ao desemprego – no primeiro caso – seja para complementar seus ganhos – nos demais.

Na verdade, a lista é muito grande: inclui até executivos cujas especialidades desapareceram com a mudança da tecnologia, intensa nestes dias; agricultores que venderam seus minifúndios inviáveis diante do agronegócio; prestadores de serviço que viram surgir oportunidades no inexorável processo de terceirização implantado nos serviços administrativos públicos e na segmentação do processo industrial; enfim, são tantos os casos que terminam num alentado rol de etc.

Em comum, todos esses casos supõem o domínio de um modus faciendi aprendido a mais das vezes na prática profissional anterior, e que é know how. Além disso, uma identidade de objetivo unifica todas as iniciativas visando a um estabelecimento próprio: a esperança de ganhos razoáveis ou mesmo substanciais que sempre compuseram o imaginário pequeno burguês europeu e da middle class nas Américas – mas ele é antigo e inspirou o mercantilismo e o colonialismo com suas buscas de riquezas nos Confins do mundo.

Um incentivo formidável veio do estupendo sucesso de muitos inovadores, que começaram com os mesmos propósitos limitados, nos chamados fundos de garagem, e chegaram ao patamar dos milionários. A área da informática reúne os maiores exemplos a respeito.

Porém, segundo estatísticas que os órgãos de classe das nominadas microempresas divulgam, assim como as entidades institucionais que lhes dão apoio, o fracasso é – infelizmente – a regra. O percentual daqueles que encerram seus negócios em um ano é avassalador.

O grau de incerteza que predomina é de tal modo grande que atrai a ideia mais próxima do sortilégio, como uma loteria, independente do mérito e da dedicação dos novos empreendedores. Um movimento da ‘grande economia’ basta para fazer prosperar ou esmagar o pequeno negócio.

A tudo isso se soma a economia informal que, segundo especialistas, muitas vezes – variando em época ou lugar – supera aquela gerada pelo emprego formal.

A corrupção generalizada nos serviços públicos, consentida no Brasil do Século XXI como endemia, inseparável do ato de governar, também colabora em larga margem: a apropriação do que é público como se fosse privado por funcionários corruptores e corrompidos cria um superávit através de ganhos ilícitos, em tal monta que exige um processo clandestino para lavar o dinheiro, dito sujo pela sua origem. Uma das formas mais conhecidas para obter o clean money consiste em montar negócios fictícios, para o que são recrutados testas de ferro que figuram como empresários e empregadores, sem nunca tê-lo sido, na definição da lei. E há gente inocente instrumentalizada pela escória, emprestando seus nomes e documentos ou figurando como prepostos ou empregados (falsos).

Todos esses traços indeléveis têm de ser considerados diante de outro fenômeno, que se reveste da auréola de redentor, mas é tanto ou mais nefasto: a iniciativa de impor uma ordem jurídica intervencionista e autoritária, segundo a qual um severo e reto Direito supostamente corrigiria a desordem econômica, com suas distorções aqui descritas. É o mito do Direito redentor.

À maneira dos romanos, tão sintéticos em suas proposições, poderia ser sustentado que uma recta justitia non retro. Para se obter uma justiça exata não é preciso retroceder.

Esse mito de restabelecer o justo pensado como aquilo que decorria – no passado – de papéis sociais muito claros e estáveis, sob definições legais simplistas é necessariamente retrógrado. Não enfrenta e não entende a atual fase da pós-modernidade econômica – sepultura do engodo de um progresso harmônico, propiciado pela política do desenvolvimentismo planejado –, que sucedeu as sociedades agrária e industrial, no turbilhão havido desde que foi estabelecido o há décadas o conceito de um terceiro mundo, afinal subvertido pela globalização.

A iniciativa dos que se arriscam com grandes esperanças e escassas possibilidades de êxito, é o fenômeno que gera – depois do fracasso – reivindicações trabalhistas por parte daqueles que, involuntariamente, foram chamados a participar do risco, sem o saber (ou, sabendo-o, sem poder evitar), pois pretendiam apenas ter um trabalho e um salário regulares.

Ainda que abalados com esse quadro, os magistrados trabalhistas – dentro de sua competência estrita – não podem querer produzir uma jurisdição às marteladas, para parafrasear Nietzsche (por certo, categorizado para agir assim no âmbito da Filosofia).

2 – O foco
É bem possível que este pequeno artigo jamais precisasse ser escrito, mas ele não o é por superfluidade.

Em Direito, como se sabe, há sempre alguém descobrindo a quintessência da verdade. Surge com ela a impressão de que afinal brotou o impensado até agora, o novo-original-genuino, e existem aqueles que sustentarão a boa nova sob pretextos, ainda que delirantes e assistemáticos, nos seus bons propósitos redentoristas.

Em Direito, não se pode pensar assim, sob pena de legitimar bravatas (como “nunca antes na história deste país…”). A história não começou com o registro de atitudes individuais compensatórias ou retificatórias, e – particularmente – não se pode entender que a História do Direito possa ou deva recomeçar assim. Não é uma atitude que delimita as quadras históricas; são essas quadras, nos momentos de suas transformações, que estabelecem novos comportamentos.

O voluntarismo redentorista antes encobre do que revela realidades que se impõem sem considerá-lo.

3 – O caso
Mesmo feitas ressalvas quanto ao propósito, este breve artigo, ainda assim, jamais precisaria ser escrito… não fosse a descoberta de que surgiram núcleos na magistratura dispostos a sustentar (mal, com certeza, por que baseados no empirismo) seus atos de penhora de salários. Naturalmente, nos casos de executados pertencentes àqueles grupos caracterizados no tópico 1 deste texto.

Isso veio à luz depois que o Tribunal Superior do Trabalho, reagindo a essa tendência, mas com grande moderação, editou a seguinte Súmula 153:

Mandado de Segurança. Execução. Ordem de penhora sobre valores em conta salário. Art. 649, IV. do CPC. Ilegalidade.

 “Ofende direito líquido e certo decisão que determina o bloqueio de numerário existente em conta salário, para satisfação de crédito trabalhista, ainda que seja limitada a determinação percentual dos valores recebidos ou a valor revertido para fundo de aplicação ou poupança, visto que o art. 649, IV, do CPC contém norma imperativa que não admite interpretação ampliativa, sendo a exceção prevista no art. 649, § 2º, do CPC espécie e não gênero de crédito de natureza alimentícia, não englobando o crédito trabalhista.”

A lei n. 11.382/06, que inseriu muitas alterações no CPC, sofreu veto presidencial nos dispositivos que permitiam a penhora salarial (de 40% do recebido acima do valor de 20 salários mínimos) e de parte do bem de família (acima de 1000 salários mínimos), art. 649 do CPC, § 3º, e art. 650, parágrafo único. O argumento para o veto foi o de que haveria a quebra do caráter absoluto da impenhorabilidade nesses casos, contrariando a tradição jurídica do país que havia atribuído valor dogmático irrestrito à proteção integral – do salário e do bem de família.

A par disso, poderia ser acrescentado que a vinculação ao valor do salário mínimo, como indexador, está proibida na Constituição (art. 7º, inciso IV, in fine; Súmula Vinculante do Supremo nº. 4). Além das razões históricas invocadas, os dispositivos vetados eram também inconstitucionais.

Não há um e meio, dois ou mais salários mínimos para o efeito de criar índices de reajuste, de atualização monetária, de pisos remuneratórios profissionais, de alçadas judiciárias, etc. Máxime, para parâmetro de penhora.

O que há é um salário mínimo, como limite inferior admissível para remunerar o trabalho e os demais títulos a ele equiparados (por terem natureza alimentícia declarada), conforme art. 100, § 1º-A, da Constituição, e art. 649, inciso IV, do CPC, na redação da lei n. 11.382/06.

No dispositivo mencionado, a Constituição dispõe que:“Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado.”

Já o CPC arrola as seguintes hipóteses:“Os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal”.

Embora exista alguma perplexidade injustificável, a incidência percentual de alguns ganhos sobre o salário mínimo (como os adicionais de insalubridade) é plenamente válida. Nesse caso, não há indexação. O que recai sobre a unidade do minimum minimorum não cria nenhum índice. Simplesmente, a lei assegura que os adicionais exemplificados tenham também uma medida mínima, pois simplesmente não existe remuneração abaixo do salário mínimo.

Assim, uma coisa é ‘base de incidência’; outra coisa é vinculação a índices de salário(s) mínimo(s), para qualquer fim (indexação).

Em resumo, o que existe é o salário mínimo uno; salários mínimos – sejam quantos forem – não existem na nossa legislação, salvo se existir inserção constitucional.

Com o veto presidencial ficou claro que não cabe estabelecer uma ressalva de medida quantitativa às garantias de proteção do salário e do bem de família, não importa o seu valor. Argumentos de ordem sociológica ou econômica não podem ser opostos à vedação da lei, para relativizá-la. Eles já foram apreciados pelo legislador; o veto aborda tais aspectos explicitamente. Além disso, as vedações são auto executáveis na sua inteira amplitude, em qualquer dos sistemas legislativos ocidentais.

Sob outro enfoque, resta saber se os títulos equiparados a salários, nos termos do que foi indicado na Constituição e no CPC, formam numerus clausus. O rol é taxativo ou exemplificativo ?

Conquanto as regras legais proibitivas sejam self executing e taxativas, pois visam a excluir a realização de determinado ato jurídico, observa-se neste caso que o rol é enumerativo, pela razão específica de ser necessariamente incompleto.

Isso porque existe um universo vastíssimo em títulos que equivalem a salário embora tenham nomen juris diverso, por questões de morfologia, história ou regionalismo linguístico. E as designações futuras com novos nomes ainda se apresentarão à interpretação evolutiva. A etimologia mais aceita de salário é a de que ele derive de sal, usado como moeda em tempos imemoriais. Desde então não cessou a invenção de novos nomes, sem vínculo com aquele radical.

Um exemplo que é contemplado na própria lei ocorre no caso do pequeno agricultor que trabalha em uma lavoura, na criação de animais ou na extração, quando há cessão de terra, insumos ou financiamento por terceiro (parceria agrícola). O ganho (comumente chamado de “quarta”, “terça” ou “meia”), seja in natura ou in specie, tem natureza salarial. É o que diz o art. 96, § 4º, do Estatuto da Terra (lei n. 4.504/64).

Esse ganho, no entanto, não está arrolado nem no art. 100, § 1º-A, da Constituição, nem no art. 649 do CPC. Mas é salário ex vi legis.

A penhora pode recair sobre todas as outras rubricas não relacionadas como sendo de impenhorabilidade absoluta pro labore, participação remuneratória societária, rendimentos financeiros obtidos de aplicações (inclusive a salarial) ou dos títulos de renda equiparados, direitos autorais, rendimentos de patente (incluindo os da sua cessão), aluguéis ou arrendamentos, etc, ressalvado sempre ao executado provar em embargos à penhora que sua subsistência e a de sua família dependem de algum desses ganhos, pois então a natureza jurídica de alimentos ficará constatada, caso a caso, por verificação judicial. Essa é a legítima exegese praeter legem e não contra legem ou ultra legem.

4 – O abuso
Como se observa no item antecedente, a penhora sobre bens jurídicos ressalvados na Constituição ou no CPC configura abuso, por infringir frontalmente as vedações do Direito Positivo.

Por isso, o TST foi moderado em sua súmula: excluiu de pronto a penhora na conta-salário, pois em tal caso a presunção juris tantum da origem do depósito está manifesta.

Já a penhora sobre títulos, bens e valores não relacionados expressamente, não se apresenta a priori como abuso, pois não se estabelece a aludida presunção, posto que seja dado ao executado provar em embargos que está presente a natureza jurídica salarial-alimentar do ganho ou o uso do bem de família (quando tais fatores não puderam ser conhecidos no ato da determinação da penhora, e que por isso afastam a intencionalidade de penhorar numerário ou coisa em que a incidência daquele ato constritivo é vedada).

A Lei nº. 4.898/1965 tratou do abuso de autoridade ao estabelecer para a configuração do tipo o critério bastante amplo de qualquer atentado (“Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado”…).

E a lei n. 6.657/79 acresceu ali uma alínea “j” : “aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”.

No que mais interessa aqui, é bem de ver que a Constituição – declarando que o trabalho é um bem jurídico protegido – garante que seu produto também o seja, posto que a relação de emprego constitui-se num contrato bilateral, o que estabelece um corolário. Se a cidadania é universal e livre, o salário é a contrapartida indispensável para quem trabalha, disponível em regra só por quem realizou o labor. Não existe, no caso, qualquer aproximação com a prestação alimentícia por quem a deve, posto que o juiz pode determinar o desconto (e mesmo a penhora) por razões e procedimentos afeitos unicamente ao Direito de Família, sob seus fundamentos específicos, que não se transmitem para as execuções em geral. As analogias em direito têm suas regras no quanto é cabível. Analogia legis não existe na hipótese examinada. Não há texto de lei que a permita ou determine. Analogia júris é inaplicável pela especificidade dos regimes jurídicos (fundamento do débito; regras processuais constritivas, garantia constitucional contra o abandono), configurando a prestação alimentícia como uma particularização, uma espécie específica.

Logo, a execução judicial que se faça sobre salário consiste numa forma de expropriação, que remete ao confisco banido pela Constituição, e se mostra resultante do abuso de autoridade.

Aqui se vê, com bastante clareza, que a finalidade da execução não é aquele da divisa “faça-se a justiça ainda que o mundo pereça”. É verdade que podem ocorrer fraudes, dissimulação de ganhos, etc, mas a própria lei trata extenuadamente disso e dá a solução. Não é preciso que se cometa o abuso na execução, invertendo a lógica do sistema, para que o desesperado devedor tenha que provar: o depósito em sua conta-salário é, de verdade… salário.

Fica claro que a atitude pró-penhora ampla não se trata de uma interpretação jurisprudencial aceitável que tenha substrato cognitivo e possa ser reposta por outra – num julgamento recursal –, mas de uma consumação delitiva preconcebida no seu modus operandi e visando a um resultado doloso específico, enquadrado na definição de qualquer atentado, formador do tipo penal. Tão grave como o cometimento da penhora de salário é o fato de que, para intentá-lo, é necessário o exercício bastante perturbado da jurisdição, contra todas – absolutamente todas – as legítimas características do devido processo legal. Daí o TST haver concluído acertadamente em sua súmula que há um direito líquido e certo passível da proteção pelo mandado de segurança, quando a conta salário é penhorada.

5 – O limite
O direito inglês instituiu pela primeira vez, em lei de 1701 (Act of Settlement), o preceito romano quam diu se bene gesserint (enquanto bem se conduzirem) ou simplesmente quam bene gesserint, como um limitador da garantia dos juízes, desde que lhes foi dada a independência de julgar, arrancada ao rei plenipotenciário.

A Constituição Americana repete essa limitação ao exercício da magistratura, reproduzindo-a em latim, no seu art. III, seção 1.

Sob variadas formulações idiomáticas (during good behavior; tant qu’ils comporterant bien), esse é hoje um preceito ocidental que tende a se universalizar, tal a força do seu convencimento. Não se concede o poder politicamente independente de julgar quando sobrevém o abuso, que sempre insulta o Direito, mesmo com supostas intenções benfazejas.

A moda de penhorar tudo o que o Oficial de Justiça encontre pela frente passará. Ela se mostra acanhada na formulação e nefasta ao sistema, pela intencionalidade. O reconhecimento das vedações legais absolutas, que excluem o que precisa ser absolutamente protegido, é indispensável e forma mesmo o alicerce do bem se conduzir.

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