Common law

Juiz não pode decidir diferente dos tribunais

Autor

  • Luiz Guilherme Marinoni

    é professor titular de Direito Processual Civil da UFPR pós-doutorado na Università degli Studi di Milano e membro da comissão de juristas instituída pela Câmara dos Deputados para elaboração do anteprojeto do Código de Processo Constitucional.

28 de junho de 2009, 8h54

O common law costuma ser visto, em boa parte dos países de civil law, como um sistema jurídico diferente, complexo e, sobretudo, completamente desinteressante para os juristas, especialmente para os processualistas. No Brasil, além de não existirem investigações doutrinárias sobre a jurisdição do common law, há lamentável preconceito em relação ao Direito americano. Tenta-se negar a importância dos institutos de common law sem se conhecê-los, surgindo, por conseqüência, alegações mal fundadas sobre o papel do juiz e acerca dos limites da jurisdição. Fala-se de um juiz que cria o direito e de um legislativo que não ocupa o seu espaço, como se o juiz do common law fosse um “ser estranho” e a jurisdição deste sistema pudesse, sem qualquer pudor, adentrar na esfera de poder reservada ao Parlamento.

Além disto, quando se nega a importância do estudo do common law, não se percebe que a separação entre os sistemas de civil law e common law é fundada na tradição destes sistemas, e, por isto, não pode desconsiderar aspectos políticos e culturais que estão à base da suas respectivas histórias e, em particular, os valores que deram origem à common law inglesa e aqueles da Revolução Francesa. Também se esquece que a jurisdição de civil law, durante a história, teve a sua natureza transformada, tendo o constitucionalismo inegavelmente aproximado o sistema de civil law ao de common law.

É preciso atentar para a diferença entre a história do Poder Judicial no common law e a história do Direito Continental Europeu, em especial aos fundamentos do Direito francês pós-revolucionário. Na Inglaterra, ao contrário do que ocorreu na França, o Judiciário não só constituiu uma força progressista preocupada em proteger o individuo e em botar freios no abuso do governo, como ainda desempenhou papel importante para a centralização do poder e para a superação do feudalismo. Aí a unificação do poder se deu de forma razoavelmente rápida, com a eliminação da jurisdição feudal e de outras jurisdições paralelas. E os juízes colaboraram para esta unificação, afirmando o direito de ancestral tradição na nação, sem qualquer necessidade de rejeição à tradição jurídica do passado. Bem por isto não se castrou o Poder Judicial ou se restringiu a capacidade de o juiz decidir, limitando-o à aplicação do produto do Legislativo. Na verdade, o Judiciário chegou a confundir-se com o Legislativo, uma vez que ambos representavam uma só força contra o poder do monarca.

A Revolução Francesa, no entanto, procurou criar um Direito novo, capaz de eliminar o passado e as tradições até então herdadas de outros povos, mediante o esquecimento do Direito francês mais antigo e da negação da autoridade do ius commune. A revolução francesa, como toda revolução, ressentiu-se de forte dose de ilusões românticas e utopias, gerando dogmas como o da proibição de o juiz interpretar a lei. Para a Revolução Francesa, a lei seria indispensável para a realização da liberdade e da igualdade. Por este motivo, entendeu-se que a certeza jurídica seria indispensável diante das decisões judiciais, uma vez que, caso os juízes pudessem produzir decisões destoantes da lei, os propósitos revolucionários estariam perdidos ou seriam inalcançáveis. A certeza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei, ou, melhor dizendo, na própria lei. Lembre-se que, com a Revolução Francesa, o poder foi transferido ao Parlamento, que não podia confiar no Judiciário.

O ponto tem enorme relevância. O civil law não apenas imaginou, utopicamente, que o juiz apenas atuaria a vontade da lei, como ainda supôs que, em virtude da certeza jurídica que daí decorreria, o cidadão teria segurança e previsibilidade no trato das relações sociais. Ora, isto significa que, nos países que não precisaram se iludir com o absurdo de que o juiz apenas poderia declarar as palavras da lei, aceitou-se naturalmente que a segurança e a previsibilidade teriam que ser buscadas em outro lugar, exatamente nos precedentes, ou melhor, no stare decisis.


De outra parte, o fenômeno da codificação, próprio ao Direito francês, não explica a distinção entre o common law e o civil law. Não se pense que o civil law é caracterizado pelos códigos e pela tentativa de completude da legislação, enquanto o common law tem uma característica exatamente contrária, de inatividade legislativa. O common law também tem intensa produção legislativa e vários códigos. O que realmente varia do civil law para o common law é o significado que se atribuiu aos códigos e à função que o juiz exercia ao considerá-los. No common law, os códigos jamais tiveram a pretensão de fechar os espaços para o juiz pensar; portanto, não se preocupam em ter todas as regras capazes de solucionar os casos conflitivos. No common law jamais se acreditou, ou se teve a necessidade de acreditar, que poderia existir um código que eliminasse a possibilidade de o juiz interpretar a lei. De modo que, se alguma diferença pode ser vista entre o civil law e o common law, tal distinção está na ideologia subjacente à ideia de código.

Ademais, o juiz do civil law passou a exercer, com o tempo, papel inconcebível diante da tradição do civil law e tão criativo quanto o do seu colega do common law. O juiz que controla a constitucionalidade da lei obviamente não é submetido à lei. O seu papel nega a ideia de supremacia do Legislativo. O juiz, mediante as técnicas da interpretação conforme e da declaração parcial de nulidade sem redução de texto, confere sentido à lei. A feição judicial da imposição do direito também é clara — ou ainda mais evidente — ao se prestar atenção na tarefa que o juiz exerce quando supre a omissão do legislador diante dos direitos fundamentais.

Ora, isto apenas pode significar, aos olhos dos princípios e da tradição do civil law, uma afirmação do poder judicial com força de direito, nos moldes do que se concebe no common law. No entanto, percebe-se que há, no civil law, preocupação em negar ou obscurecer — ou talvez tornar irrelevante — o papel que o neoconstitucionalismo impôs ao juiz. Há completo descaso pelo significado da nova função judicial. Não há qualquer empenho em ressaltar que o juiz, no Estado constitucional, deixou de ser um mero servo do Legislativo. A dificuldade em ver o papel do juiz sob o neoconstitucionalismo impede que se perceba que a tarefa do juiz do civil law, na atualidade, está muito próxima da exercida pelo juiz do common law. É exatamente a cegueira para a aproximação destes juízes que não permite enxergar a relevância de um sistema de precedentes no civil law.

Embora as decisões, no sistema do civil law, variem constantemente de sinal, trocando de sentido ao sabor do vento, isto deve ser visto como uma patologia ou como um equívoco que, lamentavelmente, arraigou-se em nossa tradição jurídica. Supôs-se que os juízes não devem qualquer respeito às decisões passadas, chegando-se a alegar que qualquer tentativa de vincular o juiz ao passado interferiria sobre o seu livre convencimento e sobre a sua liberdade de julgar.

Trata-se de grosseiro mal entendido, decorrente da falta de compreensão de que a decisão é o resultado de um sistema e não algo construído de forma individual e egoística por um sujeito que pode fazer valer a sua vontade sobre todos que o rodeiam, e, assim, sobre o próprio sistema de que faz parte. Imaginar que o juiz tem o Direito de julgar sem se submeter às suas próprias decisões e às dos tribunais superiores é não enxergar que o magistrado é uma peça no sistema de distribuição de justiça, e, mais do que isto, que este sistema serve ao povo.

Como é óbvio, o juiz ou o tribunal não decidem para si, mas para o jurisdicionado. Por isto, pouco deve importar se o juiz tem posição pessoal, acerca de questão de Direito, que difere da dos tribunais que lhe são superiores. O que realmente deve ter significado é a contradição de o juiz decidir questões iguais de forma diferente ou decidir de forma distinta da do tribunal que lhe é superior. O juiz que contraria a sua própria decisão, sem a devida justificativa, está muito longe do exercício de qualquer liberdade, estando muito mais perto da prática de um ato de insanidade. Enquanto isto, o juiz que contraria a posição de tribunal superior, ciente de que a este cabe a última palavra, pratica ato que, ao atentar contra a lógica do sistema, significa desprezo ao Poder Judiciário e desconsideração para com os usuários do serviço jurisdicional.


É chegado o momento de colocar ponto final ao cansativo discurso de que o juiz tem a liberdade ferida quando obrigado a decidir de acordo com os tribunais superiores. O juiz tem dever de manter a coerência e zelar pela respeitabilidade e pela credibilidade do Poder Judiciário. Além disto, não deve transformar a sua própria decisão, aos olhos do jurisdicionado, em obstáculo que deve ser contornado mediante a interposição de recurso ao tribunal superior, mediante inescondível violação dos direitos fundamentais à tutela efetiva e à duração razoável do processo.

Como é evidente, diante de casos distintos o juiz não precisa decidir de acordo com o tribunal superior. Cabe-lhe, nesta situação, realizar o que o common law conhece por distinguished, isto é, a diferenciação do caso que está para julgamento. Do mesmo modo, os tribunais podem deixar de decidir de acordo com decisão já prolatada, ainda que diante de caso similar, quando têm justificativa para tanto e desde que procedendo à devida fundamentação do motivo pelo qual estão alterando a sua primitiva decisão.

Como se vê, o juiz não perde a liberdade por estar submetido ao que já decidiu ou às decisões dos tribunais superiores. Cabe-lhe, com a devida justificativa, alterar a sua anterior decisão, ou, demonstrando a diversidade do caso que lhe foi submetido, não aplicar a decisão do tribunal superior. A proibição só atinge a possibilidade de decisão, ainda que fundamentada, diversa a do tribunal superior. Mas isto por uma questão puramente lógica, ancorada na própria estrutura do sistema de produção de decisões.

Frise-se que não há poder que não tenha responsabilidade pelas suas decisões. Contudo, é pouco plausível que alguém possa justificar a sua responsabilidade quando decide casos iguais de forma desigual. Porém, embora a praxe tenha constatado que nada adianta a lei quando o cidadão não sabe o que esperar dos juízes, a única preocupação da doutrina tem sido a de demonstrar que, apesar de ter se tornado evidente que o juiz presta a tutela jurisdicional indo muito além da mera aplicação da lei, isto não significa negação do principio da separação dos poderes. Ou melhor, não há coragem para denunciar que, diante da variedade das decisões e das interpretações da lei, é necessária uma elaboração teórica capaz de garantir a segurança, a previsibilidade e a igualdade. A doutrina do civil law cometeu pecado grave ao encobrir a necessidade de um instrumento capaz de garantir a igualdade diante das decisões, preferindo preservar um dogma ao invés de denunciar a realidade e a funesta conseqüência dela derivada.

A segurança e a igualdade, postuladas na tradição do civil law pela estrita aplicação da lei, está a exigir, num modelo transformado pelo constitucionalismo, o sistema de precedentes, estabelecido para tutelar a segurança no ambiente do common law, em que a possibilidade de decisões diferentes para casos iguais nunca foi desconsiderada e, exatamente por isto, fez surgir o princípio, inspirador do stare decisis, de que os casos similares devem ser tratados do mesmo modo (treat like cases alike).

Embora deva ser no mínimo indesejável, para um Estado Democrático, dar decisões desiguais a casos iguais, ainda não se vê reação concreta a esta situação da parte dos advogados brasileiros. A advertência de que a lei é igual para todos, que sempre se viu escrita sobre a cabeça dos juízes nas salas do civil law, além de não mais bastar, constitui piada de mau gosto àquele que, perante uma das Turmas do Tribunal e sob tal inscrição, recebe decisão distinta a proferida — em caso idêntico — pela Turma cuja sala se localiza metros mais adiante, no mesmo longo e indiferente corredor do prédio que, antes de tudo, deveria abrigar a igualdade de tratamento perante a lei.

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