Avanço e desafio

Carta do Equador é intercultural e pedagógica

Autor

  • Catherine Walsh

    é professora principal e diretora do Doutorado de Estudos Culturais Latinoamericanos da Universidad Andina Simon Bolívar com sede no Equador

27 de junho de 2009, 5h03

Desde sua formação até o presente, os Estados nacionais de nossa América do Sul se basearam numa pretendida homogeneidade e unidade, que permitiu, por um lado, manter a dominação econômica, política, social e cultural, e, por outro lado, estimular os interesses do capital e mercado. Por isso, são realmente históricos e fundamentais os atuais esforços de transformar esta estrutura institucional, sacudi-la de seu peso colonial, (neo) liberal e imperial e re-fundá-la “desde baixo” para que realmente reflita e represente a diversidade de povos, culturas, processos históricos e formas de conceber e exercer o direito, a autoridade e a democracia; para promover o “bem viver” para todos.

Não surpreende, desta forma, que, para a sociedade equatoriana, similar ao caso boliviano, o debate sobre o caráter do futuro Estado tenha sido um dos mais polêmicos e difíceis de resolver. Certamente, isto se deu por causa da própria natureza das Cartas em discussão, as memórias e histórias que despertam, os nacionalismos que provocam, os medos que estimulam e a ameaça que representam para a estrutura institucional e o poder estabelecidos. Mais que isto: pela maneira que as novas Cartas de ambos os países desestabilizam a hegemonia da lógica, domínio e racionalidade ocidentais. Ou seja, a maneira que põem no centro do repensar e refundar outras lógicas e racionalidades — não umas lógicas e racionalidade a mais — que dão um giro total à monoculturalidade e uninacionalidade fundantes e ainda vigentes.

Exploraremos, aqui, alguns dos elementos que marcam este “giro” na nova Constituição equatoriana e seus pontos de contraste e comparação com a nova Carta Política boliviana.

Para além da inclusão…
Um dos elementos mais importantes de ambas as Constituições, sem dúvida alguma, é a superação do multiculturalismo. As reformas dos anos 90- —tanto no Equador e na Bolívia quanto em outros países da região — mostraram uma tendência em direção ao que poderíamos denominar “constitucionalismo multicultural” ou “multiculturalismo constitucionalista”. Ao reconhecer aos povos indígenas — e, em menor medida, aos povos afrodescendentes de Colômbia e Equador — e outorgar-lhes direitos especiais, estas reformas se instituíram numa nova forma política de inclusão.

Sem negar sua importância — resultado, em grande parte, das lutas históricas destes povos frente a Estados excludentes —, devemos compreender claramente a dupla intenção destas políticas, bem como suas limitações. Refiro-me à intenção de não somente responder a demandas históricas, mas também a apaziguar e cooptar a resistência, incorporando-a (por meio de políticas de inclusão e direitos “étnicos” e “especiais”) à institucionalidade e estruturas estabelecidas. Nesta dupla intenção, encontramos sua própria limitação: o reconhecimento e inclusão dentro da mesma estrutura tradicional (uni nacional e monocultural) do poder, permitindo-a manter-se intacta e, inclusive, fortalecida. Sem dúvida, estas reformas são “cimentos” para o neoliberalismo multicultural, a nova lógica multicultural do capitalismo multi/trans/nacional.

Em todo caso, não se sugere a eliminação de direitos específicos indígenas e afros, porque são estes direitos que permitem viver a diferença e particularidade coletiva e ancestral, menos ainda se busca rechaçar a inclusão. O que põe em observação, em realidade, são os propósitos e perspectivas que orientam tal inclusão, aceitando que — sem outras mudanças profundas — a inclusão de direitos “étnicos” e “especiais” traz pouca novidade para uma refundação do Estado e sua transformação radical.

Eis, aqui, a importância e debate das novas constituições equatoriana e boliviana. Refiro-me, particularmente, às propostas e esquemas de refundação, que permitem que a transformação não se dê relativamente só aos povos ancestrais — sua inserção e inclusão — mas também às sociedades em seu conjunto. Ao distanciar-se do modelo de Estado neoliberal ocidental — que favoreceu certos grupos, interesses e modos de vida sobre outros — e ao construir modelos distintos sustentados no “interculturalizar” e “plurinacionalizar”— modelos, estes sim, descolonizadores — estas novas Cartas Políticas abrem caminhos históricos. Dificilmente se volta atrás. E, por isto mesmo, são vistas como controversas, porque as mudanças que colocam ou formulam não impactam somente indígenas, camponeses e afrodescendentes, mas também os setores branco-mestiços, incluindo aqueles que historicamente estão no poder.

Vejamos alguns dos elementos-chave na refundação equatoriana e sua relação e diferenças com as formulações constantes na carta boliviana.

Elementos chave do “interculturalizar” equatoriano
Até pouco tempo, a reforma constitucional no Equador — não muito distinta da Bolívia — era pensada a partir da perspectiva do que poderia o Estado (ou a Assembléia Constituinte) fazer pelos povos e nacionalidades indígenas e, em menor medida (em grande parte, pela hegemonia social e política do movimento indígena), pelos afrodescendentes. A nova Carta equatoriana dá uma reviravolta nesta perspectiva, pois põe em cena a forma que tais propostas, demandas e perspectivas destes povos poderiam contribuir ao trabalho de repensar o Estado para o conjunto dos equatorianos. Desafia, assim, a uninacionalidade e a monoculturalidade vigentes e a estruturação social-colonial que ambas reproduzem e mantêm.

Sem dúvida, a nova caracterização do Estado como intercultural e plurinacional (art. 1º) e o reconhecimento do caráter ancestral dos povos e do território (art. 4º) são avanços. Mais que enumerar as mudanças desta índole, o que interessa é analisar brevemente o “interculturalizar” da nova Carta Política. Não me refiro, contudo, ao esforço que a Constituição faz em enunciar e nomear “interculturalidade”, mas ao seu propósito de construí-la e gerá-la. Cabe recordar, também, que, no contexto equatoriano, o conceito de interculturalidade nasceu nos anos 80 como princípio ideológico do movimento indígena e de seu projeto político; portanto, mais que a simples interrelação, aponta à transformação estrutural e institucional, social e política. O Estado Plurinacional sempre foi concebido como central para esta transformação.

Analisar o “interculturalizar” implica entender a maneira que a nova Constituição ressalta lógicas, racionalidades e modos sócio-culturais de viver historicamente negados e submetidos; a maneira pela qual faz com que estas lógicas, racionalidades e modos de viver contribuam de forma substancial e decisiva a uma nova construção e articulação — a uma transformação — societal e estatal. Aqui, como veremos, não desaparece a diferença: ela é constitutiva, em termos igualitários e equitativos, da transformação e refundação.

Exploraremos o “interculturalizar” em relação a quatro exemplos concretos: 1) a pluralização da ciência e do conhecimento; 2) os direitos da natureza; 3) o sistema jurídico; 4) o “sumak kawsay” ou “ bem viver”.

Ciências e conhecimentos
A nova Constituição equatoriana faz uma importante mudança de lógica ao reconhecer que o conhecimento não é singular ou único (art. 57 e arts. 385-388). Ao falar de conhecimentos científicos e tecnológicos e suas relações com os conhecimentos ancestrais — entendendo também os ancestrais como tecnológicos e científicos — a proposta constitucional pretende superar a única versão hegemônica na definição da “ciência”. Por sua vez, esta mudança conceitual e de compreensão da ciência dá bases para um sistema educativo distinto que — desde a escola à universidade — poderia desafiar e pluralizar o atual modo dominante de conhecimento ( vinculado a expansões políticas, geográficas, econômicas e, inclusive, culturais) com suas disposições ocidentais; ou seja, a partir da centralidade do pensamento europeu e norte-americano.

Na Carta equatoriana, os saberes ancestrais têm o status de “conhecimento”; sua relevância e importância não são somente para os povos indígenas ou afroequatorianos, mas também para todos, pois são parte de uma nova construção articuladora de conhecimentos em plural. Além disso, ao vincular os conhecimentos com o “sumak kawsay” ou “bem viver”, a proposta assume e põe em consideração uma lógica de vida integral em que o “conhecer” se entrelaça com o “viver”. Demonstra, assim, que o “bem viver” não somente é social e econômico — como acontece com o “viver bem” na Constituição boliviana — mas também incorpora um novo conjunto de conhecimentos que amplia as formas de entender e interpretar o mundo.

As Cartas equatoriana e boliviana também se diferenciam em outros sentidos relacionados aos campos do conhecimento e da educação. Por exemplo: no caso da boliviana, se faz referência também a conhecimentos em plural e sua geração e divulgação orientadas ao desenvolvimento integral da sociedade (art. 91) e, no entanto, se estabelece uma distinção de ordem metodológica entre “os conhecimentos universais” e os “saberes coletivos das nações e povos indígenas originários camponeses”, dando a impressão, desta forma, da superioridade científica dos primeiros sobre os segundos.

Com relação à educação, a Constituição boliviana oferece, em contrapartida, alguns pontos críticos de “interculturalização” que a equatoriana não contém. Por exemplo, ao assumir a educação intracultural, intercultural e plurilíngue em todo o sistema educativo (algo que a equatoriana propõe com muito menos afã e precisão). Também aponta à “descolonização”, à “consciência social crítica na vida e para a vida” (art. 80) e ao desenvolvimento da consciência plurinacional como objetivos educativos, entendendo que a mudança de consciência é fundamental parra os projetos de interculturalização e plurinacionalização e para a refundação mesma.

Direitos da natureza
A consideração da natureza — ou Pachamama — como sujeito de direitos (art. 10) e o reconhecimento de seu direito à existência e reparação, por ser “onde se realiza a vida” (art. 71) é outro exemplo de “interculturalizar” da Carta equatoriana. Reconhecer a natureza como parte integral da vida e não somente como bem de uso controlado por seres humanos superiores a ela — lógica cartesiana — é interculturalizar a lógica e racionalidade dominantes, abrindo-as a outros modos de conceber e viver.

A partir de uma filosofia ou cosmovisão indígena, a “Pachamama” é um ser vivo — com inteligência, sentimentos, espiritualidade — e os seres humanos são elementos dela. A natureza, tanto no conceito de “bem viver” quanto no de “bem estar coletivo” dos afrodescendentes (conceitos similares, mas não idênticos por suas diferenças históricas), forma parte de visões ancestrais enraizadas na harmonia integral entre seres humanos e natureza, uma harmonia que a sociedade ocidentalizada perdeu e destruiu.

A nova Constituição boliviana não parece assumir o mesmo distanciamento da lógica ocidental que a equatoriana. Ainda que, por exemplo, ambas considerem a água como direito humano (art. 20 na boliviana e art. 12 na equatoriana) e, nisto, se verifica uma mudança de racionalidade, não têm a mesma paridade em suas conceptualizações de natureza. A Carta boliviana dá ao Estado e à população a responsabilidade de proteger e conservar os recursos naturais e o meio ambiente, perpetuando, assim, a lógica cartesiana que posiciona o homem “sobre” a natureza. De fato, não existe — em meu entendimento — outra constituição na América Latina ou no mundo que pretenda “pensar com” as concepções indígenas e afros da mãe-natureza, como faz a equatoriana.

Não se deve esquecer, é claro, que o mesmo “pensar com” é percebido pelos setores dominantes como uma ameaça à ótica racionalista, à estabilidade econômica e ao controle social. Tal perspectiva se expressa com freqüência na mídia nacional equatoriana. “Pachamama convertida em titular de direitos — pobre Pachamama incluída no baile do poder — será a mãe de todos os conflitos”, escreveu, recentemente, um editorialista, ressaltando que esta titulação vai contra a empresa privada, os municípios e as obras nacionais, e fazendo evidente, portanto, sua oposição-e o motivo dela- a este “interculturalizar”.

O campo e sistema jurídicos
O campo jurídico também abre possibilidades de “interculturalizar”, ainda que, neste ponto, o assunto se torne ainda mais complexo, pois não somente requer uma mudança de lógica, mas também exige uma “reengenharia” do sistema legal.

Ao reconhecer a justiça indígena como “regime especial” (art. 171), a nova Carta equatoriana obtém um avanço. O objetivo não é, pois, simplesmente alcançar o reconhecimento de um sistema jurídico ou jurisdição indígena; isto pode converter-se em pouco mais que um pluralismo jurídico “subordinado”, ou seja, o reconhecimento de um regime “especial” inferior e subordinado ao sistema “ordinário”. Aqui está o problema.

Assinalar que a “lei estabelecerá os mecanismos de coordenação e cooperação entre a jurisdição indígena e a jurisdição ordinária” é abrir a possibilidade de uma interpretação intercultural das leis, ou seja, um “interculturalismo” jurídico (não somente um pluralismo), proposta que Xavier Albó argumentou para o caso da Bolívia e da América Latina faz alguns anos.

Com relação aos sistemas jurídicos, a Carta boliviana parece ser mais avançada. O Estado boliviano não somente garante a justiça plural (art. 116) e a jurisdição indígena , mas também lhes dá igual hierarquia (art. 180). Além disto, e quase com a mesma linguagem que a equatoriana, assinala que “uma lei determinará os mecanismos de coordenação e cooperação entre a jurisdição indígena originária camponesa com a jurisdição ordinária” (art. 193). A esta coordenação se acrescenta a jurisdição agroambiental, instância que não existe no caso equatoriano. Assegurando que esta cooperação não fique somente no enunciado, a Constituição boliviana oferece uma base concreta para esta coordenação, dentro do Tribunal Constitucional Plurinacional, com “representação paritária entre o sistema ordinário e o sistema indígena originário camponês” (art. 198).

O “sumak kawsay”
O último exemplo é o do “sumak kawsay” ou “bem viver”, ao qual se referem na Bolívia como “viver bem” (em aimará: “suma qamaña”). O conceito de “sumak kawsay” é o eixo transversal que atravessa a Constituição equatoriana, e, sem dúvida, seu marco fundamental. Como diz o preâmbulo, “decidimos construir uma nova forma de convivência cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o bem viver, o sumak kawsay”. Desta maneira, a nova Carta questiona e transgride os modelos e práticas da política neoliberal, incluído aquele conceito de bem-estar enfocado no indivíduo e o individualismo alienante do “ter”, que fragmenta e debilita a sociedade.

Em várias partes da Constituição — e especificamente no capítulo segundo, dos “direitos do bem viver”(arts. 12-83), na regulação do desenvolvimento (particularmente arts. 275-277) e na regulação do bem viver — a proposta da nova Constituição assume o bem viver com relação a vários eixos-chave: a água e alimentação, a cultura e ciência, a educação, o habitat e moradia, a saúde, o trabalho, as pessoas, os direitos das comunidades, povos e nacionalidades, os direitos da natureza, a existência ou vida, a economia, a participação e controle social, a integração latinoamericana e o ordenamento territorial, entre outros. É o conceito articulador e integrador do bem viver- que enlaça os seres humanos com seu entorno — o qual move e sustenta o “interculturalizar” no contexto da Carta equatoriana.

O bem viver abre possibilidades de conceber e gerir a vida de uma maneira “outra”, não alternativa, mas sim distinta, concebida a partir de uma diferença ancestral e seus princípios, mas pensada para a sociedade em seu conjunto.

Esta possibilidade de um novo contrato social, enraizado na relação e convivência ética entre humanos e seu entorno, se formula com a finalidade de desafiar a fragmentação e promover a articulação e “interculturalização”. Abre a possibilidade de tecer uma nova identificação social, política e cultural de país que aceite as particularidades histórico-ancestrais, que tome distância do capitalismo e seu arquétipo eurocêntrico-norteamericano de sociedade. Assim, aponta à necessidade, cada vez mais urgente e crítica, de não simplesmente sobreviver, mas sim de “conviver.” Certamente, a Carta boliviana tem intenções similares com sua incorporação do conceito de “viver bem”. Este, contudo, é desenvolvido principalmente em relação à organização econômica do Estado (art. 307) e não como eixo transversal e abarcador que ajude a definir — a partir de uma nova interculturalização — aspectos não somente econômicos, mas também sociais, políticos e epistêmicos do Estado e da sociedade.

Apesar de tudo, em ambas as Constituições, há avanços- antes inconcebíveis- que abrem caminho para uma transformação profunda do Estado e da sociedade. Estas transformações não pretendem sobrepor uma lógica distinta, ainda que com o intento de plurinacionalizar (a boliviana poderia ser interpretada como mais forte neste sentido), mas sim conseguir que as lógicas, práticas e modos de viver se interrelacionem e interpensem. Neste sentido, um problema presente em ambas as Cartas é a subordinação da diferença dos afrodescendentes.

A diferença afro
Ao pensar o “interculturalizar” a partir da relação entre as filosofias e práticas de vida indígeno-ancestrais e as ocidentais ou branco-mestiças, as novas Constituições contribuem àquilo que Frantz Fanon definiu, há mais de meio século, como “o tratamento da não-existência dos filhos da diáspora africana”.

Em ambas as Cartas, é mais que evidente que as diferenças afroequatorianas e afrobolivianas permanecem à margem da ação e da construção da “interculturalização”.

Na Constituição boliviana, há somente três artigos que explicitamente se referem aos afrobolivianos: 3º, 32 e 100-II. O artigo 3º reconhece os afrobolivianos como “comunidades” (não como povos ou nações). Por outro lado, o artigo 32 fala de “povo afroboliviano” e afirma que este desfruta dos “direitos econômicos, sociais, políticos e culturais reconhecidos na Constituição para as nações e povos indígenas originários camponeses”; subordina, assim, seus direitos aos dos indígenas. Finalmente, o artigo 100. II protege saberes e conhecimentos por meio do registro de propriedade intelectual, salvaguardando os direitos intangíveis das nações e povos indígenas originários camponeses, comunidades interculturais e afrobolivianas. Não há outra referência à existência de povos afros, a seus saberes ancestrais ou às diferenças com relação aos povos e nações indígenas.

A Carta equatoriana reconhece mais os afros que a boliviana, mas repete o mesmo erro da Constituição de 1998, ao conceber os direitos coletivos como direitos das “comunas, comunidades, povos e nacionalidades indígenas” (art. 57 da nova Carta) e estender sua aplicação aos afroequatorianos. Para isto, a nova Carta inclui — como artigo aparte (art. 58) — o seguinte enunciado: “para fortalecer sua identidade, cultura, tradições e direitos, se reconhecem ao povo afroequatoriano os direitos coletivos estabelecidos na Constituição (…)”

Desta maneira, ambas as Constituições perpetuam aquilo a que Félix Patzi se refere como “estruturação social-colonial”, descrito por Silvia Rivera Cusicanqui como “colonialismo interno” e definido por Aníbal Quijano como “colonialidade do poder”. Ou seja: uma estrutura ou matriz de poder que permite a classificação hierárquica de identidades sociais (com os negros no patamar mais baixo) e o submetimento sistemático de alguns grupos a outros. Dentro do mundo andino, esta estrutura ou matriz historicamente fez desaparecer os povos afrodescendentes. E, ainda agora quando podemos presenciar sua visibilização, esta, contudo, os subordina aos povos, nacionalidades ou nações originárias indígenas.

Avanços políticos e desafios vindouros
Em conclusão, o realmente inovador das novas Constituições equatoriana e boliviana não é tanto a introdução de novos elementos, mas sim o intento de construir uma nova lógica e forma de pensar sob parâmetros radicalmente distintos.

Enquanto a boliviana parece centrar-se mais no esforço da “plurinacionalização”, a equatoriana aposta em maior medida na “interculturalização”, deixando o “plurinacional” como pouco mais que um enunciado. Sem dúvida, esta é uma de suas debilidades, pois sem uma prática e política concretas, o plurinacional perde força ante a uninacionalidade estabelecida. Ademais, sem o estabelecimento e desenvolvimento estrutural do plurinacional, o intercultural facilmente fica reduzido ao campo das relações interpessoais, sem a transformação social e política às quais aponta o conceito na significação que lhe dá o movimento indígena. Por isso, ambos são complementos necessários, cúmplices de uma re-imaginação e uma re-fundação, caminhando em direção a um novo “sumak kawsay” ou bem viver, o dever-ser do Estado Plurinacional e Intercultural equatoriano.

Ao esforçar-se pelo “interculturalizar” (não a inclusão das referências à interculturalidade, das quais existem 16, mas sim a construção intercultural), a Constituição equatoriana aponta para a construção de um Estado e sociedade onde a diferença é constitutiva, e a interculturalidade, projeto central. Aponta, assim, ao reconhecimento das raízes milenares e às lutas sociais frente a toda forma de dominação e colonialismo; à Pachamama como parte vital da existência e à necessidade urgente de uma nova forma de convivência para alcançar o “bem viver”.

Desta maneira, se introduzem e antecipam lógicas e formas que não pretendem substituir ou impor, mas sim fomentar enlaces entre os conceitos e práticas ancestrais e os conceitos e práticas que nos tem regido desde a formação da República, projetando aos primeiros como componentes não somente das comunidades indígenas e afros, mas também da construção de uma nova sociedade. Por isso, e ainda que muitos equatorianos não entendem assim, a nova Carta tem um aspecto não somente interculturalizador, mas também altamente pedagógico. Eis aí seu avanço e seu desafio.

[Tradução: César Augusto Baldi, é mestre em Direito pela ULBRA-RS, doutorando pela Universidad Pablo Olavide (Espanha) e chefe de gabinete no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.]

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    é professora principal e diretora do Doutorado de Estudos Culturais Latinoamericanos da Universidad Andina Simon Bolívar, com sede no Equador

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