Direito e deveres

Conceitos dos doutrinadores do Direito sobre o Estado

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15 de junho de 2009, 18h00

Apresento algumas importantes opiniões que retratam o Estado, tendo como exemplo, o posicionamento do professor Dallari (1999, p.100), explicando-nos que “o Estado é a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em um determinado território”. Nesse conceito apresentado, temos a presença de elementos importantes que ajudam a organizar a composição do Estado como a noção de território, a noção de bem comum associado ao elemento povo, e a idéia de poder que, implicitamente, refere-se ao conceito de soberania.

Ressalto também a opinião do professor Miguel Realle (2000, p. 119) que explica o Estado como sendo a sociedade juridicamente organizada, cuja função é satisfazer não apenas as aspirações individuais, como também as coletivas, visando, com isso, a realização do bem comum. Este último acontece mediante a integração dos elementos individuais inseridos no todo social. Alguns outros doutrinadores também consideram o Estado como organismo de ordem ética, como organismo integrador de toda uma sociedade e como organismo participativo e disciplinador da conduta popular.

Com relação à formação histórica do Estado, direciono-me ao comentário do autor Wolkmer[1] que faz uma abordagem acerca do direito da sociedade moderna a partir do século XVII e XVIII, destacando o papel desempenhado pela sociedade burguesa quanto ao seu modo de produção capitalista desenvolvido, tendo a figura do Estado soberano como organização institucional do poder firmado na sociedade durante aquele período histórico. A partir do século XIX, mediante o aparecimento histórico do Liberalismo clássico, houve o surgimento do Estado social burguês substituindo o Estado soberano absolutista, tendo a Revolução Francesa o marco histórico marcado pelas idéias de “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade”.

Posteriormente, surge o Estado imperialista, a partir do final do século XIX e inicio do século XX, que trouxe consigo o capitalismo monopolista-financeiro. Este último é marcado pela constituição, evolução e crise o Estado do bem-estar social, em seu primeiro momento, conciliando os interesses do capital com as demandas sociais.

A partir dos anos 70/90, o autor Wolkmer nos informa que o capitalismo monopolista alcança nova etapa de complexidade e avanço advindo de um processo de flexibilização global do capital internacional, já que é a fase da concentração de corporações internacionais, da formação dos blocos econômicos e da integração de mercados.

Outro aspecto importante relacionado à formação histórica do Estado que enfatizo é com relação ao conceito da doutrina do monismo. Consoante essa doutrina, o Estado moderno detém o monopólio exclusivo da produção das normas jurídicas, sendo o único agente legitimado capaz de criar as leis para adaptar as formas de relações sociais que vão se impondo. Dentro desse conceito, tivemos a contribuição do autor Rudolf von Jhering que retratou em sua doutrina as bases do monismo em fins do século XIX, sendo que o Direito seria um sistema de normas imperativas caracterizadas pela “coação” e garantida pela força organizada do Estado, logo a validade do Direito estaria limitada às prescrições revestidas de sanção estatal.

Em função da submissão do Estado moderno à doutrina do monismo, o autor Luis Fernando Coelho (1986, p. 258) nos explica que o Estado moderno definiu sua competência de produzir o Direito, submetendo-se a este último, ao mesmo tempo em que submete as ordens normativas setoriais da vida social.

Há de se considerar também o papel atribuído pelo Estado moderno a seus órgãos legalmente constituídos, tendo o poder legislativo a incumbência de criar as leis (legislar) e o poder judiciário de decidir (julgar) mediante o uso das leis gerais e abstratas. Dessa forma, percebo que o Estado moderno, em virtude de ter atribuído a seus órgãos suas respectivas funções, consagrou sua legitimidade jurídico-racional presente através na despersonalização do poder, na racionalização dos procedimentos normativos e na associação de uma conduta estatal correta. Logo, a ordem jurídica adquire representação formal mediante as leis escritas.


Além disso, a partir do momento em que o Estado respeita certos direitos de seus cidadãos e limita-se à sua própria legislação, temos o advento do chamado “Estado de Direito”. Segundo Wolkmer (2001, p. 49), “o Estado que se legitima na condição de ‘Estado de Direito’ garante-se como um poder soberano máximo, controlado e regulado pelo direito”, ao passo que o professor José Afonso da Silva[2] (2004, p. 113) nos explica que “o Estado de Direito servirá de apoio aos direitos dos homens, configurando-se como uma grande conquista da civilização liberal”.

Considerando esses importantes conceitos acerca do “Estado de Direito”, cabe ao Estado o dever de estar a serviço da sociedade, garantindo acesso à cidadania, não criando apenas novas leis, mas, acima de tudo, fazer cumpri-las, a fim de que, com isso, possam ser respeitados os valores democráticos.

O contexto histórico do judiciário brasileiro e os conflitos sociais
Durante o período de formação de nossa história política, em que tivemos o primeiro regime colonial, passando para o regime imperial e finalizando com o atual regime republicano, a história do judiciário brasileiro sempre foi influenciada pela presença atuante da supremacia do poder estatal, espraiando seu predomínio sobre as demais camadas populares.

Em virtude de tal dominação, o direito estatal exercido durante aquele momento histórico colonial se apresentava sob condição de superioridade, haja vista que era influenciado pelos princípios e normas advindos da metrópole portuguesa. Dessa forma, a estrutura jurídica se revelava totalmente direcionada aos interesses de uma minoria, isto é, as elites dominantes, contrapondo-se aos anseios da maioria que eram as camadas populares, alijadas do poder.

Uma observação que ressalto é que durante o regime imperial houve o surgimento das normas estatuídas pelo Código Penal e pelo Código Processual Penal, uma vez que ambos os códigos foram concluídos nesse período, porém não avançaram no que tange ao exercício de práticas extralegais, que viessem atender aos objetivos comunitários populares, porque refletia apenas as forças ideológicas dominantes que predominavam a época, ou seja, o Direito do Estado e o Direito da Igreja. Posteriormente, a proclamação da República ocasionou a concretização da estrutura jurídica positivista, fortalecendo a participação e os poderes das oligarquias cafeeiras no cenário político e jurídico brasileiro, ao passo que a maioria da população continuava ausente dos direitos de cidadania.

Destarte, a história do ordenamento jurídico brasileiro sempre trouxe consigo um dualismo, de um lado o direito do Estado exercido pelas elites e setores dominantes, e, de outro, pelo direito das camadas populares, direito este discriminado e excluído da vida jurídica e política do país daquele período.

Analiso também os conflitos sociais. Estes últimos são componentes essenciais de toda e qualquer sociedade humana, visto que nascem de ações sociais desencadeadas pela disputa entre interesses divergentes, envolvendo indivíduos, grupos, organizações e coletividades. Esses conflitos sociais estão caracterizados por conflito individual, por conflito entre indivíduos ou grupos dentro de uma organização e conflito interorganizacional que são aqueles conflitos organizados por organizações e grupos. Esses conflitos ora se apresentam de forma genérica, a exemplo dos conflitos sociais, ora se apresentam de forma especifica, a exemplo dos conflitos étnicos, políticos, etc.

Por outro lado, com o passar dos tempos, o desenvolvimento da sociedade brasileira veio acompanhado de conflitos sociais, haja vista que o progresso econômico observado através do aumento da produção econômica e pela divisão do trabalho não foi estendido para a grande maioria da população, principalmente para aquelas camadas populares, as quais permaneciam não mesma condição social e, por esse motivo, faziam reivindicações por melhores condições de vida. Dessa insatisfação social resultou na eclosão de lutas sociais com o objetivo de que fossem criados “novos” direitos sociais até então ofuscados pelo poder exercido pelas elites dominantes.


É importante esclarecer que alguns desses “novos” direitos só foram conquistados mediante o processo de lutas comunitárias e conflitos coletivos. Esses grupos coletivos se mobilizavam dentro de um ambiente conflituoso, mesmo assim, faziam suas reivindicações por seus direitos, apesar de sofrerem pressão das classes dominantes.

Destaco também que esses conflitos sociais surgidos no cenário social brasileiro foram ocasionados porque tinha o propósito de exigir que aqueles direitos já alcançados e proclamados formalmente pela legislação oficial do Estado fossem cumpridos na prática. Além disso, era necessário que se reivindicasse e reconhecesse aqueles direitos que surgiam das novas necessidades que a própria população criava e se auto-atribuíra, visando pôr fim a “manutenção” da “ordem” social vigente, encaminhando-se para prática de promover a “ruptura” dos valores tradicionais que impediam o progresso social.

Em virtude do advento desses conflitos sociais, a atuação do poder judiciário estava atrelado e submisso a estrutura do poder dominante articulado pelas elites dominantes. O poder judiciário se tornava incapaz de seguir o ritmo das mudanças sociais que começavam ocorrer no cenário social brasileiro, a exemplo do crescimento das cidades e, ao mesmo tempo, de dar soluções contundentes aos conflitos sociais que cada vez mais se espraiavam no cotidiano nacional.

Posteriormente, seria necessário se achar fontes alternativas que viessem dar soluções aos conflitos sociais do país, pelo menos minimizá-los, já que o poder judiciário não atendia a essas expectativas, e cada vez mais estava se desgastando perante as camadas populares. Dessa forma, surgem outros institutos informais, no caso dos juizados ou tribunais de conciliação ou arbitragem[3], que conseguiram com maior rapidez e eficiência substituir o tradicional funcionamento do poder judiciário, sendo que este último estava submisso ao Estado e não absorvia as crescentes demandas sociais geradoras dos conflitos sociais porque simplesmente, na maior parte dos casos ocorridos, deixava de aplicar a lei. Esses institutos informais tiveram uma importante participação, uma vez que tiveram a tarefa de “democratizar” e de “descentralizar” a arcaica justiça brasileira que prevalecia até então, logo seria necessário que esses institutos tentassem aproximar o aparelho estatal do cotidiano daqueles cidadãos brasileiros que estavam excluídos dos valores democráticos. 

Os novos direitos e a busca pela justiça social
O Direito, segundo Miguel Realle (2000, p. 93), “é a expressão da unidade multíplice da sociedade e a garantia do progresso ético e material na manutenção da ordem e da paz”. Concordando com a opinião do autor, penso que o Direito está envolvido por diversos fatores, sejam sociais, econômicos, éticos, culturais, históricos, etc., que explicam o funcionamento de sua dinâmica, visando à promoção do bem comum na sociedade. Com o passar dos tempos, à medida que a sociedade humana evolui, quer seja materialmente, quer seja ideologicamente, o homem desenvolve novos direitos que passarão a fazer parte do cotidiano daquela determinada civilização, isto é, novos valores serão assimilados e muitos funcionarão como regras de conduta a serem cumpridas.

Uma das finalidades do direito é estabelecer a justiça social. Esta tem por objeto buscar o bem comum, estabelecer relações do individuo com a comunidade, respeitar determinados valores como a dignidade, a reciprocidade entre os indivíduos e, acima de tudo, respeito à própria pessoa humana. Esclareço também que o Direito busca estabelecer a formação de governos que respeitem os valores democráticos, a fim de que se prevaleça à regra da maioria. O professor Campilongo nos explica sobre o funcionamento da “regra da maioria” em seu comentário a seguir:

Uma das mais importantes regras de convivência social é a regra da maioria. Ela se identifica com um conjunto de atividades sociais, governadas por regras escritas ou não, estatais ou não, que permite a introdução de inovações e mudanças nos arranjos de convivência em sociedade. Portanto, a regra da maioria é uma prática social- constante, seqüencial e dinâmica-, compartilhada por pessoas do mesmo grupo, da mesma região ou da mesma cidadania (2000, p. 41-42).

Observando a opinião acima, percebo que a “regra da maioria” se estabelece mediante o trabalho coletivo que almeje por mudanças na sociedade, com o intuito de conquistar a cidadania e outros valores democráticos. Infelizmente, o que temos presenciado atualmente é que a “regra da maioria” tem diminuído seu poder de influência perante algumas nações do mundo, tendo em vista que a “regra da maioria” passa a concorrer com outros mecanismos de agregação de interesses, a exemplo do surgimento de novos movimentos sociais que privilegiam os interesses de alguns indivíduos em detrimento da representatividade de uma maioria. Não obstante, a “regra da maioria” ainda é enxergada como uma importante vantagem, a partir do momento em que clama pelo respeito da vontade de grupos sociais que lutam em prol dos valores democráticos e pela justiça social.

Com relação aos novos direitos, em especial aos direitos fundamentais, o autor Ferreira Filho (2008, p. 41) nos informa que eles começaram a ser reconhecidos no mundo com o término da primeira Guerra Mundial, visto que são direitos econômicos e sociais que não excluem nem negam as liberdades públicas, pelo contrário, a elas se somam. Por essa razão, com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, os direitos fundamentais passaram a ser reconhecidos no mundo. Vários novos direitos surgiram, dentro os quais destaco a liberdade pessoal, a proibição às discriminações, os direitos à vida e à segurança, a liberdade de ir e vir, o direito de propriedade, de pensamento e crença religiosa, direito de asilo, a nacionalidade, a liberdade de casar, etc. Devo ressaltar também que os direitos de solidariedade são reconhecidos como sendo um dos principais direitos fundamentais, haja vista que envolve outros importantes direitos que estão associados, tais como o direito à paz, o direito ao desenvolvimento, o direito ao meio ambiente e o direito ao patrimônio comum da humanidade.

Por outro lado, o Estado disponibiliza de instrumentos de controle que visam reprimir e pôr fim aqueles conflitos sociais que porventura ocorram, como também garantir o cumprimento dos direitos fundamentais na sociedade. No caso do Estado brasileiro, este tem a sua disposição os chamados “remédios constitucionais” que são o habeas corpus, mandado de injunção, mandado de segurança, habeas data e a ação popular, já que são meios de proteção postos à disposição dos cidadãos para provocar a intervenção do Estado e das demais autoridades competentes, visando sanar, corrigir as ilegalidades e abuso de poder em prejuízo aos direitos individuais e fundamentais de um modo geral. Assim sendo, Jorge Miranda nos explica que:

Um Estado que se pretenda ser de Direito tem que estabelecer adequados meios de proteção não só para salvaguarda da verdade, da legalidade e da proporcionalidade mas, sobretudo para defesa da dignidade de que é portadora qualquer pessoa, ainda quando passível de sanções e declarada culpada (2000, p. 355).

Concordando com o comentário exposto pelo doutrinador, é dever do Estado garantir os meios de proteção para seus habitantes, a exemplo dos “remédios constitucionais”, a fim de respeitar a dignidade de seus cidadãos. Todavia, cabe a estes últimos a proibição de renunciar totalmente a seus direitos fundamentais, ou seja, nenhum indivíduo pode renunciar a direitos, liberdades e garantias ou a direitos econômicos, sociais e culturais porque todos esses são direitos fundamentais que fazem parte da própria dignidade da pessoa humana e são elementos estruturantes da ordem constitucional. O que é permitido ao titular dos direitos fundamentais é apenas estabelecer um limite temporário do seu exercício ou uma auto-restrição, sem, contudo, prejudicar e restringir o conteúdo essencial daqueles direitos, caso contrário, o titular poderá ser responsabilizado até criminalmente pelo Estado.

Bibliografia:
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 41-42 .

COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. Curitiba: HDV, 1986, p. 258.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 100.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 41.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. t. IV. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 355.

REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2004, p. 113.

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa-Ômega, 2001.

[1] O autor retrata seu posicionamento no capitulo 1: a origem, evolução e declínio da cultura jurídica estatal, de sua obra “Pluralismo Jurídico”, ano de publicação 2001.

[2] Em sua obra “Curso de Direito Constitucional Positivo”, o autor faz uma abordagem acerca das terminologias “Estado de Direito”, “Estado Democrático de Direito” e “Estado Social de Direito”.

[3] Atualmente, esses tribunais de conciliação ou arbitragem são considerados como uma importante alternativa, perante algumas autoridades brasileiras, para desafogar processos que há muito tempo estão estacionados nas prateleiras dos principais tribunais brasileiros e, com isso, melhorar o funcionamento da justiça brasileira.

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