Pesos e contrapesos

Sistema de defesa da concorrência criou segurança

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14 de junho de 2009, 9h40

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Apesar de tornar mais lento o processo de concentração e concorrenciais, o sistema de defesa da concorrência formado por três órgãos deu confiança aos empresários. Ao contrário das críticas de que só serviu para burocratizar os procedimentos, o sistema de pesos e contrapesos gerou equilíbrio, já que os processos são analisados do ponto de vista econômico e jurídico por órgãos diferentes, e garantiu duas chances de defesa antes da decisão final do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Os problemas causados pela demora na análise de atos de concentração, como a dificuldade para desligar duas empresas que já se tornaram uma só ou a falência da mais fraca no processo de fusão, estão sendo resolvidos por meio de acordos em que elas aceitam a autolimitação até uma decisão do conselho, como no recente caso da Sadia e Perdigão. As duas empresas decidiram viver separadas até que a incorporação tenha uma resposta do órgãos administrativo.

O professor e especialista Tércio Sampaio Ferraz Júnior, em entrevista à Consultor Jurídico, afirma que esta eficácia do sistema de concorrência foi alcançada ao longo do tempo. O Cade existe desde 1962, época em que não havia concorrência nos mercados nacionais e década em que o governo iniciou o controle de preços, praticamente uma política estatal de cartel. Até o governo aprovar uma nova lei, que não tivesse o foco na área penal, e os empresários se enquadrarem aos padrões de livre concorrência já estávamos na década de 90.

O sistema de defesa da concorrência, de acordo com o advogado, ganhou os holofotes da imprensa e também do mercado a partir de grandes aquisições, como a da Kollynos pela Colgate-Palmolive, e da fusão entre Brahma e Antarctica, para criar a AmBev, negociações que coordenou como advogado. Até então não havia especialistas e esse sistema era praticamente desconhecido e inutilizado.

Tércio Sampaio Ferraz confessa que ele mesmo só descobriu o Cade na década de 70, quando dava aulas de mestrado na PUC-RJ. Um aluno estava pensando em escrever uma tese sobre o Cade. “Sobre o quê?”, perguntou o professor. E foi daí que surgiu o seu interesse pelo assunto. Durante a entrevista, conta que, por questões política, Elizabeth Farina não foi escolhida para ser a primeira presidente do Cade depois de uma reestrutura, no governo Collor. No entanto, era a maior especialista no assunto no país. Antes do atual presidente, Arthur Badin, era Elizabeth que ocupava a cadeira.

Questionado sobre a possibilidade de se recorrer ao Judiciário para contestar o mérito das decisões do Cade, o professor diz que é uma coisa rara, mas acontece e muitas vezes é necessário. Ele não segue a linha dos que acreditam que a Justiça não é competente para analisar problemas técnicos e econômicos ao mesmo tempo. “O Judiciário decide qualquer coisa, até um problema de engenharia”, defende.

No entanto, recorda que a primeira condenação imposta pelo Cade no final da década de 90, por formação de cartel entre CSN, Cosipa e Usiminas está na Justiça até hoje. Elas foram condenadas a pagar 2% do faturamento de cada empresa.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior passou pelo Ministério da Justiça, durante o governo Collor, e foi procurador-geral da Fazenda Nacional durante dois anos. Na iniciativa privada, foi chefe do Departamento Jurídico da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e diretor do jurídico da Siemens. Hoje tem seu próprio escritório.

Leia a entrevista

ConJur — Como o senhor avalia o sistema de defesa de concorrência no Brasil?
Tércio Sampaio Ferraz Júnior — Ele se tornou eficaz ao longo do tempo, com mudanças do mercado, de mentalidade e também de estrutura. Há críticas em relação ao fato de os processos terem de passar por três órgãos: Seae [Secretaria de Acompanhamento Econômico], SDE [Secretaria de Desenvolvimento Econômico] e Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica]. Dizem que burocratiza demais os procedimentos, mas, bem ou mal, funcionou. Ter um sistema de freios e contrapesos criou confiança do empresariado. O equilíbrio criado pelo princípio da divisão dos poderes protege a liberdade individual. Foi assim que os revolucionários da Revolução Francesa pensaram e funcionou durante séculos. A minha intuição diz que também funcionou no caso da concorrência. O Ministério da Economia analisa o caso do ponto de vista da política econômica, a SDE em termos de política governamental e o Cade julga. Antes de chegar ao Cade, a empresa tem duas chances.

ConJur — Como foi criado esse sistema de três pontas?
Tércio Sampaio Ferraz — O sistema triangular surgiu meio por imposições de ordem política. O Cade existe desde 1962. A Secretaria de Acompanhamento Econômico foi criada depois, em cima do antigo CIP [Conselho Interministerial de Preços], que não fazia outra coisa senão ficar acompanhando os preços. E a ideia de uma secretaria voltada para a concorrência nasceu com o governo Collor. Nessa época, quase o Cade foi extinto, porque ninguém sabia muito bem para que ele servia. Eu salvei o Cade fazendo um pergunta muito simples aos economistas: “Vocês vão acabar com o Conselho Monetário Nacional também?”. Ouvi que não, não poderia acabar. Depois dessa discussão, com injunções políticas e perspectivas técnicas, criou-se a Secretaria de Direito Econômico, voltada para a concorrência. No começo, o Cade estava abaixo da SDE. O secretário de Direito Econômico era também presidente do Cade. Depois o sistema mudou.

ConJur — O Cade era subordinado a quem nessa época?
Tércio Sampaio Ferraz — O Cade estava no Ministério da Justiça depois de ter passado pelo Ministério da Indústria e Comércio e pela presidência da República. Eu estava no Ministério da Justiça nessa época.

ConJur — Os últimos presidentes do Cade [Arthur Badin e Elizabeth Farina], reclamam que as empresas primeiro fazem a fusão ou ato da concentração e só depois o Conselho analisa. E quando decide que a fusão não pode ocorrer, recorrem ao Judiciário, que é muito mais lento. Como avançar nessa questão?
Tércio Sampaio Ferraz — São duas queixas ligadas, mas diferentes. O problema gerado pela comunicação e pela demora da resposta do Cade e, em face dessa demora, pela dificuldade de se alterar uma situação que já está consolidada é uma questão que existiu desde o começo, tanto na Lei 8.158/1991, quanto na Lei 8.884/1994, que é a atual. A empresa tem 15 dias a posteriori para comunicar o Cade sobre a negociação. A ideia de a comunicação ser a priori, antes de fazer a fusão ou a concentração, sempre levantou uma espécie de temor de que um dia isso viesse a emperrar a economia nacional. A burocracia não estava preparada. O risco era fazer a comunicação, demorar demais para analisar e não haver instrumentos dentro da lei para lidar com essa situação. Daí surgiu uma “técnica” dos advogados. O pedido era apresentado 15 dias depois e, ao invés de pedir apressamento, o advogado segurava o máximo possível. Dois anos depois, o negócio estava consolidado. A percepção de que isso era inviável e estava levando a um absurdo veio na gestão do Gesner de Oliveira, que ficou na presidência do Cade, de 1996 a 2000.

ConJur — Como essa técnica foi rompida?
Tércio Sampaio Ferraz — O primeiro instrumento foi o uso de Medida Cautelar pelo Cade, que não estava prevista em lei, no caso da Brahma-Antarctica. Outro instrumento foi o Apro [Acordo de Preservação da Reversibilidade da Operação], que foi usado no caso da AmBev e também agora na operação Oi-Brasil Telecom, caso que estou conduzindo. Ao invés de o Cade usar Medida Cautelar, propõe um Apro como forma de a empresa se autolimitar. O primeiro acordo foi feito no tempo do Gesner, para criar um ambiente mais propício a quem fizesse autolimitação. A Medida Cautelar até hoje não é muito usada. Em geral, serve como ameaça, daí a empresa corre e faz o Apro.

ConJur — Quais são os termos desses acordos? Como se faz para proteger uma operação?
Tércio Sampaio Ferraz — Primeiro, as ações empresariais são congeladas do jeito que estão. Uma coisa que dificulta a decisão do Cade é alterar a gerência empresarial. Quando duas empresas se juntam, a boa prática da administração vai dizer, por exemplo, que o mesmo fornecedor seja usado pelas duas, como forma de baratear o custo. Entre as exigências do Apro, está a de não misturar as gerências. Uma tem que ficar livre da outra e, se possível, com um mínimo de interferência, vivendo a sua vida própria, o que é muito difícil. No plano trabalhista aparece muitas vezes um período de salvaguarda dos empregos. Ninguém pode ser demitido e não é possível fechar unidades.

ConJur — Voltando à questão do comunicado em 15 dias, como está a jurisprudência hoje?
Tércio Sampaio Ferraz — A interpretação usual dos juristas era de que os 15 dias úteis se contavam a partir do fechamento jurídico do negócio. E a interpretação que veio pelos economistas que estavam no Cade, na época da presidência de Gesner de Oliveira, foi de que os 15 começavam a ser contados a partir do primeiro instrumento vinculante entre as partes. Isso criou incertezas, mas impediu que uma empresa chegasse direto com um pedido de incorporação, o que seria muito mais difícil de reverter depois. Algum instrumento vinculante teria que ter aparecido antes. Com isso, melhorou-se a eficácia das decisões ao final do processo. A Seae analisa primeiro o pedido. Se observar que há 60% de concentração, por exemplo, avisa o Cade, que vai dar uma Medida Cautelar ou propor um Apro.

ConJur — E quando uma empresa não comunica ou espera mais para fazer a comunicação?
Tércio Sampaio Ferraz — Há a aplicação de multas pesadas pelo Cade, previstas em lei. Além da multa por atraso, há uma multa por enganosidade, daí a empresa é obrigada a informar tudo. O problema é descobrir. A SDE não fica investigando, mas às vezes descobre. Na maior parte das vezes não há provas. Houve um episódio envolvendo a CSN, Cosipa e Usiminas que foi uma coisa ridícula. As três empresas foram ao Ministério da Fazenda conversar com o ministro. Como ele não pôde atendê-las, conversaram com o secretário de Acompanhamento Econômico. Elas estavam planejando o aumento de preços que aconteceria na semana seguinte. As três tinham sido estatais e estavam acostumadas a ir ao ministro pedir a “benção”. Os preços eram parecidos. O secretário disse: vocês estão formando cartel. Elas foram condenadas. Mas nesse caso o problema era que existia a cultura de preços iguais, porque até então era o governo quem determinava, através do Conselho Interministerial de Preços, e por conta da altíssima inflação. Hoje, esse tipo de trapalhada não aconteceria.

ConJur — Por que o Judiciário tem sido acionado pelas empresas, já que se critica o fato de ser tão demorado?
Tércio Sampaio Ferraz — O Judiciário brasileiro é demorado não só para concorrência, mas para tudo. É um problema estrutural do próprio Judiciário, que não tem nada a ver com concorrência. A questão é a seguinte: cai na Justiça e a empresa consegue liminar para bloquear a decisão do Cade. Esse fato tem duas faces. O juiz percebe que há problemas e a liminar fica em vigor durante anos e anos. O caso da CSN, Cosipa e Usiminas dura até hoje. Foi o primeiro caso analisado. O outro lado é que há um despreparo jurídico no Seae e SDE, que acabam cometendo erros formais flagrantes no processo administrativo. Daí, o problema não é mais de Direito da Concorrência, mas de Direito Administrativo.

ConJur — Quais erros são comuns?
Tércio Sampaio Ferraz — No caso CSN, Cosipa e Usiminas houve a maior confusão na instauração do processo. A investigação com relação àquele episódio dos preços era de 1998. A Seae pediu a abertura de um processo de outro caso que aconteceu em 97. As empresas foram condenadas pelo episódio de 98, mas o processo tratava do caso do ano anterior. A acusação não batia com a condenação. Às vezes acontecem erros incríveis como esse.

ConJur — O Judiciário é procurado para avaliar o mérito das decisões do Cade?
Tércio Sampaio Ferraz — É muito raro, mas acontece. Economistas e até autoridades ligadas ao Cade se queixam, dizendo que o Judiciário não poderia rever uma decisão técnica-econômica, porque não tem condições de fazer isso. Não é verdade. O Judiciário decide qualquer coisa, até um problema de engenharia. Claro que ele não é perito, mas vai se basear no que consta da perícia. No geral, entretanto, o que tem sido levado ao Judiciário são questões administrativas. É raro levar uma decisão lá e dizer “foi absurda”. O caso da Nestlé está lá até hoje.

ConJur — Por que?
Tércio Sampaio Ferraz — De um lado por uma questão formal, porque o prazo teria sido rompido. O Cade tem 60 dias, salvo quando ele interrompe para pedir informações, para dar o resultado final. Como ultrapassou, o negócio deveria ser aprovado por decurso de prazo. Essa questão está em discussão ainda. O outro ponto questionado foi de mérito. A Nestlé e a Garoto chegavam, no máximo, a uma concentração de 60% do mercado. O Cade determinou que a Garoto fosse vendida. Quem poderia comprar a Garoto, só poderia ser uma empresa grande. Isto é, a concentração do mercado continuaria. Esse foi o argumento usado para questionar.

ConJur — O tempo do Judiciário é diferente do tempo da Economia? Como é que se chega a um tempo comum para que todas as garantias do Direito e também da Economia sejam contemplados?
Tércio Sampaio Ferraz — Há precariedade na força definitiva de decisões de órgãos administrativos. Por mais que se tenha a impressão de que os conselheiros são quase juízes, não são juízes. Não fazem parte do Poder Judiciário. Então, é impossível cercear o direito de se recorrer à Justiça, como prevê a Constituição. Você sempre tem o direito de ir ao Judiciário. Uma boa ideia seria transformar o Cade numa espécie de promotor junto ao Judiciário, de maneira que o juiz analisasse diretamente as infrações. Para isso, primeiro seria necessário que juízes, promotores e as varas fossem especializados. A estrutura da Advocacia-Geral da União também precisaria ter um corpo só para concorrência, como existe na Procuradoria da Fazenda Nacional. Para que esta estrutura funcionasse, deveria ser criado um processo mais ágil para as questões concorrenciais, com possibilidade de dar liminar imediatamente. Haveria o percurso Seae, SDE, mas a decisão caberia a um juiz. Há 15 anos, apresentei esse projeto ao presidente do Supremo, do STJ, mas nada aconteceu.

ConJur — Quais são as perspectivas em relação à incorporação da Sadia pela Perdigão? O senhor acha que haverá restrições, já que em alguns setores as duas concentram quase 80% do mercado?
Tércio Sampaio Ferraz — Eu vivi esse problema com a AmBev. Esse caso eu só tenho conhecimento pelos jornais. A ideia que passa é que estão dizendo: “Estamos chegando, vamos respeitar a concorrência interna, mas vamos criar a maior empresa do setor para competir lá fora”. Foi exatamente a técnica que usamos no caso da AmBev. Na SDE, sentimos várias vezes uma resistência a esse tipo de argumento. Mas os tempos mudaram, com a crise mundial, talvez o argumento volte a ser apreciado no sentido de que, embora haja uma visão restritiva da concorrência do ponto de vista econômico e jurídico ela não é cifrada apenas em tamanho da concentração, 80%, 90%. Esse é apenas o dado a partir do qual se analisa os efeitos que poderão surgir contra a concorrência. E nem sempre a livre concorrência é afetada, mesmo com grandes concentrações de mercado.

ConJur — Quais argumentos podem ser usados para aprovar uma concorrência com grande concentração no mercado interno?
Tércio Sampaio Ferraz — Se ficar demonstrado num processo que a concorrência internacional é enorme, a concentração no mercado pode ter até 90% aqui no Brasil. Basta demonstrar o seguinte: se a empresa aumentar o preço aqui, o concorrente externo pode entrar no Brasil. Se o governo baixar as alíquotas, o concorrente externo vai entrar. Se a empresa consegue mostrar que, apesar da grande concentração em cifras, 60%, 70%, 80%, não cria barreiras para outros concorrentes nacionais ou para concorrentes de fora e mostra que o objetivo é o mercado internacional, consegue aprovar. Se o caso da Sadia-Perdigão for parecido com esse que acabei de descrever, há chances de ser aprovado. Na pior das hipóteses, com algumas restrições, mas há chances de aprovação.

ConJur — Num momento de crise mundial, o Cade, por influência do governo, tende a ser mais flexível com atos de concentração?
Tércio Sampaio Ferraz — Há uma discussão antiga sobre os padrões jurídicos que guiam as decisões do Cade. Existe uma forte tendência a dizer que o Cade aplica políticas de Estado e não políticas de governo. Políticas de Estado são aquelas cujos fundamentos estão na Constituição brasileira e são dados por princípios básicos: a livre concorrência, a defesa do consumidor. Nos serviços públicos que são privatizados e se tornam regulados há sempre um aspecto concorrencial. Isso forma todo um arcabouço do que se chama política de Estado, porque tem por base o que está na Constituição. Coisa diferente é política de governo, que tende a atender circunstâncias contingentes, como uma crise mundial, por exemplo, num certo momento.

ConJur — E o Cade tem considerado a política do governo?
Tércio Sampaio Ferraz — Em princípio, a tradição do Cade é de não levar em consideração políticas de governo. O governo pode chegar lá e dizer “acho ótima a criação da Ambev”, mas isso não quer dizer que o Cade tenha que se guiar por isso. Nos Estados Unidos, eles são mais flexíveis. Em casos que aqui a gente foi de uma inflexibilidade enorme, lá eles ajeitavam no sentido de proteger a indústria americana, ostensivamente em muitos casos. Na Europa a tradição é um pouco diferente. A lei dos cartéis alemã, que equivale à nossa lei de concorrência e é paradigma para toda a comunidade européia, tem um dispositivo que estabelece que em casos de fusões a empresa pode recorrer ao ministro da Economia. Ele tem competência para, em nome de necessidades de uma política econômica de governo, interferir numa decisão do órgão correspondente ao Cade alemão. Portanto, essa questão ainda está em aberto. No Brasil, há uma postura de resistência a qualquer interferência seja do Legislativo, do governo, dos ministros.

ConJur — Independente da presidência do Cade?
Tércio Sampaio Ferraz Júnior — Independente. Óbvio, se você está vivendo uma crise mundial pode usá-la como argumento, mas não quer dizer que seja um argumento daqueles inapeláveis, que o Cade tem que se submeter. Ele pode se submeter. Vai depender do senso de prudência, do senso de oportunidade, de se perceber a situação. Antes da crise, cuidei de um caso em que a concentração era alta, de mais de 90% no setor de autopeças. No entanto, como na indústria automobilísticas os preços são decididos fora do Brasil, a empresa demonstra que precisa ter 90% do mercado no país para poder concorrer com o Japão, por exemplo. É de interesse do governo que uma empresa desse porte não saia do país. Esse tipo de argumento pode ser usado. Não é bem política de Estado, é política de governo, mas trata de uma questão mais ampla. O interesse internacional e a estrutura desse mercado exigem que haja potências aqui dentro, senão a empresa fracassa.

ConJur — O poder do consumidor direto é considerado nesses casos?
Tércio Sampaio Ferraz — Nos Estados Unidos, há duas tendências. A primeira de que a concorrência tem de ser protegida por ela mesma, como um bem em si mesmo. A outra atrela a concorrência à defesa do consumidor. Essa tendência diz que a concorrência não é um fim em si mesmo. É um instrumento para beneficiar o consumidor. No Brasil, até 2002, vinha prevalecendo a primeira tendência de que a concorrência tem que ser protegida por ela mesma. Até porque tentava-se, a todo custo, criar uma concorrência no Brasil. Se fosse atrelada a outros fatores, ela não ia surgir. A defesa da concorrência era primordial, com a consciência de que ofendia direitos trabalhistas, de que o consumidor poderia sair prejudicado, porque ficaria mais exposto a mudanças de preço. A mudança partiu da Secretaria de Direito Econômico. A ligação da concorrência com a defesa do consumidor vem sendo uma tendência crescente na análise de casos de concorrência desde 2002. E a outra está diminuindo.

ConJur — Como está a situação na área de telecomunicações, com a fusão da Oi com a Brasil Telecom?
Tércio Sampaio Ferraz — Em termos de concorrência propriamente dita a repercussão é muito pequena porque, pela estrutura prevista na Lei Geral de Telecomunicações, as empresas atuam em lugares diferentes. Em termos de telefonia móvel, acontece o inverso. A Oi chegando em São Paulo aumenta a concorrência e os preços podem diminuir. Os problemas podem aparecer em uma perspectiva mais ampla, que é da mudança de tecnologia. Quem tiver primeiro um aparelho que tenha tudo — TV, rádio, câmera fotográfica e ainda faça ligação —– pode sair na frente em relação à concorrência. Mas isso pode ser controlado pela Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações].

ConJur — Quando aconteceu a primeira condenação pelo Cade?
Tércio Sampaio Ferraz — A primeira ação foi no setor de siderúrgica, no caso da CSN, Cosipa e Usiminas. Elas foram condenadas a pagar 2% do faturamento das empresas, por formação de cartel, no fim da década de 90. A lei previa de 1% a 30%. Foi uma condenação tímida e até hoje está no Judiciário. Foi nessa época que as empresas começaram a ter consciência de que a infração contra a ordem econômica era algo importante, para o seu próprio bem, porque a defesa da concorrência é um benefício.

ConJur — Como as empresas brasileiras começaram a lidar com a necessidade de comunicação dos atos de concentração, com a proibição de combinar preços?
Tércio Sampaio Ferraz — Primeiro veio a consciência de que precisavam comunicar os atos de concentração. A mentalidade burocrática pôs isto na lista de deveres: “Bom, tem que fazer isso”. Mas o grande passo desencadeador deste processo foram as grandes fusões e concentrações. A primeira de impacto foi a compra da Kolynos pela Colgate-Palmolive. A segunda, a formação da AmBev. Neste último caso, houve uma mobilização. A imprensa começou a prestar atenção no assunto. A Coca-Cola chegou a fazer um jingle em rádio em defesa da concorrência. A partir desses casos paradigmáticos, a Lei de Defesa da Concorrência ficou assinalada e daí vieram as primeiras condenações por infrações, por cartel.

ConJur — Nessa época, o Cade atuava com o mesmo rigor de hoje?
Tércio Sampaio Ferraz — No começo, o conselho praticamente aprovava todas as concentrações sem dar restrições. Até porque, não causavam grandes impactos. Depois, a partir de 2004, 2005, começou a funcionar a parte da lei que tratava das infrações e das punições de infrações. Isso era mais difícil porque exigia outro tipo de burocracia e de preparo dos funcionários. Uma coisa eram atos de concentração, outra coisa era descobrir a infração ou mesmo os cartéis. Os cartéis custaram a aparecer, porque são difíceis de serem identificados.

ConJur — Quando a lei foi criada existia um mercado a ser regulado?
Tércio Sampaio Ferraz — A primeira lei é de 1962 e não havia mercado concorrencial suficientemente denso para a sua aplicação. Era uma lei que visava um mercado já desenvolvido e funcionando nos moldes neoliberais. O desenvolvimento brasileiro começou em 64, mas demorou a se perceber que a lei já poderia ser usada e dois fatores impediam que funcionasse. Na década de 70 havia formas diretas, ostensivas e não ostensivas, de controle de preços. Como o Brasil viveu durante muito tempo nessa forma de controle, a lei de defesa da concorrência acabou sem eficácia. Os casos maiores demoraram 10, 15 anos para serem resolvidos. O objetivo da lei é ser prontamente aplicada quando houver algum distúrbio concorrencial. Naquela época, também não se controlava os atos de concentração. O mercado desconhecia aquilo. Outro fator que contribuiu para que a lei não tivesse eficácia foi o modo como foi concebida. Era uma lei penal administrativa, acentuando a palavra penal. Ao fazer isso, a interpretação da lei puxava para o Direito Penal e exigia a tipificação das condutas, o que é muito difícil de fazer nesse terreno. Os conceitos eram muito abertos, a lei não trabalhava com uma terminologia precisa. Do ponto de vista penal, acabava não pegando nada.

ConJur — A lei de 62 conseguiu punir alguma empresa?
Tércio Sampaio Ferraz — Ela era inaplicável. Qualquer acusado acabava escapando porque o tipo penal nunca se configurava inteiramente. Vivíamos num regime de controle de importações, apenas aqueles produtos que não existiam aqui e, mesmo assim, se não houvesse um planejamento de desenvolvimento nacional desses produtos. Tudo isso fazia com que a concorrência fosse acanhada para a aplicação de uma lei de concorrência. No final do Plano Collor, com a liberação da maior parte dos preços e abertura dos portos criou-se uma situação nova. As empresas, que a princípio entraram em desespero por medo de competir com estrangeiros, começaram a se desenvolver. Nessa época, participei da elaboração de um projeto de lei para mudar a que estava em vigor, que acabou virando uma medida provisória. Essa MP manteve muitos dispositivos da lei de 62, mas tirou aquele foco penal, o que dava mais flexibilidade na sua aplicação e criou um mecanismo de controle de atos de concentração, que ainda não existia. Em 91, ela foi convertida na Lei 8.158, que começou a funcionar. O Cade ainda era desconhecido nessa época. A Secretaria de Direito Econômico surgiu no governo Collor.

ConJur — A concorrência era um tema totalmente novo para os empresários?
Tércio Sampaio Ferraz — Ninguém entendia muito bem, até porque havia uma mentalidade de controle de preços, controle das importações, a regra da substituição nas importações. Os cartéis foram praticamente criados pelo governo, através do CIP. Não era um mercado livre. Demoramos uma década para começar a entender o que era isso. Nessa época, quando saí do Ministério da Justiça, voltei a ser diretor jurídico da Siemens, uma multinacional que lidava com um mercado livre na Europa não conseguia entender o controle de preços no Brasil. O modelo brasileiro era de uma concepção de intervenção quase total do Estado na economia. Em 1990, no governo Collor, a liberação aconteceu no papel, mas demorou muito ainda para as empresas e os brasileiros se acostumarem com o novo modelo. A mentalidade concentradora era muito forte. Pelos meus cálculos, demorou até o final da década de 90 para alcançarmos mudanças. Foi aí que o Cade começou a se estruturar, junto com a SDE e a Seae.

ConJur — Havia especialistas em defesa da concorrência nessa época?
Tércio Sampaio Ferraz — Não. Nessa fase em que o Cade começou a sua reestruturação, fui atrás de amigos para saber quem poderia ser presidente do conselho. O meu amigo, Roberto Macedo [economista, articulista do jornal O Estado de S. Paulo] disse: tem uma pessoa, que se chama Elizabeth Farina. Ela era a única. Por questões políticas, ela não foi eleita presidente do Cade naquela época. A Elizabeth se tornou uma grande consultora nessa área e acabou presidente do Cade em 90. Nem na universidade havia gente que pudesse entender, quanto mais na burocracia. Hoje existe uma consciência muito maior. O Cade, a SDE, a Seae já têm uma geração de jovens que começou a estudar esse assunto na faculdade. Quando eu estudei, não se falava nisso.

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