Cálculo de danos

Pela regulamentação do valor da reparação moral

Autor

  • Mirna Cianci

    é procuradora do estado professora e coordenadora da Escola Superior da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo

13 de junho de 2009, 8h45

A objeção histórica à reparação do dano moral, entre vários fundamentos, teve como principal argumento a dificuldade de valoração do correspondente em pecúnia. Termo que Aguiar Dias(1) retratou como a impossibilidade de rigorosa avaliação em dinheiro; a imoralidade da compensação da dor com o dinheiro e a extensão do arbítrio concedido ao juiz, ao mencionar a corrente negativista.

Diante desse enfoque, admitiu a doutrina, aqui representada na lição de Pizarro apud Clayton Reis (2) que “não se trata de alcançar uma equivalência, mais ou menos exata, própria das questões de índole patrimonial, senão de brindar com uma satisfação ou compensação ao danificado, imperfeita, por certo, pois não apaga o prejuízo e nem o faz desaparecer do mundo dos atos reais, mas satisfação, enfim.”

A divergência na utilização dos critérios legais ou exclusivamente o recurso ao arbitramento judicial, que tem sido motivo de notáveis divergências doutrinárias e jurisprudenciais, tem origem na total falta de regulamentação da reparação por dano moral, desde a sua oficialização pela Constituição Federal de 1988.

Na seara objetiva do direito das obrigações, as consequencias de direito patrimonial são expressamente previstas, de modo que o contratante tem pleno e prévio conhecimento do risco assumido pelo inadimplemento ou pelos danos causados.

Não há nenhum fundamento que justifique, na compreensão do sistema civil, a ausência de previsão legal acerca dos critérios de quantificação dos danos morais, que gera insegurança no mundo jurídico, tornando a ação indenizatória por dano moral uma verdadeira loteria (3).

Aliás, à míngua de regulamentação, os critérios existentes têm sido defendidos das mais diversas formas, ora pela aplicação subsidiária das legislações especiais e dos dispositivos do Código Civil, preexistentes à Constituição Federal, todos evidentemente insuficientes à universalidade do dano moral, ora pela criação de critérios próprios, de pena, de verificação da situação econômica das partes, etc., que também, são inábeis à valoração pretendida, porque, em regra, não se aplicam à generalidade dos casos.

Antonio Jeová dos Santos (4) menciona com acerto que “não é difícil supor que, em não havendo uniformidade em casos similares, um e outro tribunal carregarão a pecha de serem generosos ou avarentos quando fixam a indenização por dano moral. Isso, numa visão maior. Filtrando esse dado, já que os tribunais são compostos por Câmaras julgadoras, não é difícil supor que certa Câmara se utilizará de um dado critério, enquanto outra, baseada em diversos fundamentos, estabelecerá para mais ou para menos o ressarcimento do dano moral”.

De modo contrário à resistência ao denominado tarifamento, porque a adoção de critérios abstratos estimula a discricionariedade, Carlos Edison do Rego Monteiro Filho (5) aborda o tema com extrema lucidez ao afirmar que a doutrina tem considerado a fórmula do arbitramento judicial com a simples recomendação de bom senso ao julgador. “Diz-se, e talvez aqui se verifique unanimidade nestas fórmulas, que o juiz deve arbitrar o valor da reparação prudentemente; que deve se valer de critérios de razoabilidade; que deve, neste mister, atuar com moderação; que o valor atribuído à vítima deve ser proporcional a seu sofrimento; que tal montante seja suficiente para cobrir-lhe a extensão do dano, mas que não lhe seja fonte de lucro, de enriquecimento, etc. Ora, do que é que está se falando? O que significa cada um destes modelos de razoabilidade? Impõe-se, de pronto, uma constatação fundamental: essas teses servem a todos os tipos de raciocínio. Moldam-se a todo tipo de valor que o magistrado haja por bem arbitrar. Causa, insista-se, enorme perplexidade o fato de cada uma destas fórmulas justificar o arbitramento de qualquer quantia. Utiliza-se do mesmo prudente arbítrio do juiz para determinar valores que vão de 1 a 10 mil salários mínimos” (6).


Como forma de evitar os abusos que se verificam em fixações exacerbadas ou irrisórias, o Superior Tribunal de Justiça tem admitido, considerando negativa de vigência ao artigo 159 do Código revogado e 186 do atual diploma civil, o reexame de julgados no que se refere ao valor fixado a título de dano moral.

Reconheceu aquele Tribunal que o valor da indenização por danos morais está sujeita ao seu controle, admitindo que “este entendimento, aliás, foi firmado em face dos manifestos e frequentes abusos na fixação do quantum indenizatório, no campo da responsabilidade civil, com mais ênfase em se tratando de danos morais, pelo que se entendeu ser lícito ao Superior Tribunal de Justiça exercer o respectivo controle”.

Assim procedendo, criou verdadeira “tabela”, o que se pode concluir pela reiteração de julgados que conferem valores aproximados a casos análogos entre si, resultado de verificação elaborada em estudo efetuado na analise de 5 mil decisões judiciais, mediante estatística de valores e casos mais frequentes, como os destacados na minuta do PLS 334/2008 que tramita no Senado, já com Parecer favorável do Relator, Senador Alvaro Dias.

Não é um tarifamento rigoroso que se verifica, mas há franca tendência a uma limitação de valores aproximados, especialmente em casos mais frequentes, como os de morte, abalo de crédito, dano à honra, ofensa à liberdade e os demais aqui destacados.

Essa conduta do Superior Tribunal de Justiça despertou a atenção na medida em que, se aquela Corte considerou possível rever valores porque excessivos ou irrisórios, por certo o fez sob alguma base, um parâmetro capaz de conduzir a essa análise. Melhor: ninguém poderia considerar determinado valor exagerado ou irrisório senão por conta de valor que considere razoável.

Pois bem, a análise de nada menos que 3 mil acordãos, ao longo de 5 anos de jurisprudência do STJ, e, no seguir do tempo, mais 2 mil acórdãos, pesquisa finda em final de 2008, numa leitura estatística, tornou-se possível concluir que foi de fato adotada uma tabela de valores e critérios, posto que estes se repetem em casos similares e nos tipos mais frequentes, com significância.

Melhor: foram localizados os casos mais frequentes, ou seja, os que mais tem sido demandados por dano moral (morta, lesão corporal, ofensa à liberdade, ofensa à honra por abalo de crédito ou de outras espécies e descumprimento de contrato). Em cada um desses casos, foi verificada a faixa de valores que tem sido considerada e os critérios de aumento e diminuição. Por exemplo, no caso de abalo de crédito, o tempo em que perdurou a negativação e assim por diante; a existência de outras anotações, entre outros.

Assim, o PLS 3334/2008 não traz valores ou critérios aleatórios, é fruto da atual realidade jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça. Com todas as críticas que se possa fazer à regulamentação, exsurge a sua necessidade como medida de Justiça, pois as disparidades que se verificam nos tribunais locais e que, por questão de dificuldades no juízo de admissibilidade, não chegam ao STJ, acabam se perpetuando.

E não são apenas disparidades de valores, são, principalmente, de critérios. Vamos a alguns exemplos:

Modelo altamente ilustrativo da injustiça que resulta da falta de critério para a indenização por dano moral pode ser verificada no episódio do denominado massacre do Carandiru, que ocasionou a morte de 111 detentos no interior do presídio.

Inúmeras ações reparatórias foram movidas pelos familiares dos mortos, sendo certo que as circunstâncias do episódio são idênticas para todos os envolvidos e as vítimas e familiares tinham condições análogas. Pois bem, as indenizações variaram desde o equivalente a 8/30 de um salário mínimo, até 500 salários mínimos (7) e foram todas essas ações julgadas pela Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Houve um caso em que sequer foi reconhecido o direito indenizatório (8).

Não cessam aí as disparidades. É possível localizar inúmeros casos na jurisprudência, como por exemplo inundações, em que vizinhos recebem valores absolutamente diversos entre si, não obstante o mesmo evento tenha sido o causador da dor moral com idênticas consequencias; casos em que o valor da perda de um ente familiar foi inferior à perda de um animal de estimação e assim por diante. Se a vítima tiver acesso à mídia então, aguarde, o valor da indenização será absurdo, não obstante se verifique menor em casos muito mais graves, que não lograram exposição pública.


Muito difícil explicar a um leigo, destinatário da norma, que a sua dor, ocorrida por evento idêntico ao de outro, vale menos!

Ouvi de um deles, certa ocasião, que, ao ver-se indenizado em valor equivalente a 20 salarios mínimos por conta de inundação que sofreu em sua residência e seu vizinho, em identicas circunstâncias, receber valor equivalente a 300 salários mínimos, a seguinte observação: "eu devia ter contratado o advogado dele!" A isso respondi que não foi esse o problema. O que ocorreu foi o seguinte. Ambos apostaram na loteria. Os dois poderiam perder, ganhar ou ganhar valores diferentes. Prevaleceu a ultima hipótese.

Traduzindo: a Ação de indenização por dano moral é, no atual sistema, uma loteria! A regulamentação com ado~~ao de critério e valores é questão de Justiça e só não interessa a quem queira ver perpetuadas essas disparidades.

Por essa e outras razões aqui trazidas, urge a concretização da regulamentação da indenização por dano moral, ratificando situação de fato existente (jurisprudência dominante do STJ) e, mais que isso, conferindo segurança jurídica ao tema, tão repleto de conceitos vagos e de indeterminação.

Finalmente, a regulamentação do valor da reparação moral contribui, e em muito, com a efetividade do processo, tão perseguida pelas atuais reformas processuais, pois a concessão de valores dentro dos parâmetros legais por certo inibira a atividade recursal e servira de fundamento objetivo à atuação das cortes.

Referências

1. Da Responsabilidade Civil, página 737
2. Avaliação do Dano Moral, página 136
3. Apenas para exemplificar, o II TACSP, em determinada oportunidade elegeu valor equivalente ao número de meses em que a vítima trabalhou na empresa, multiplicado por seu salário, como regra de indenização, numa fixação sem precedente de qualquer ordem (Ap. 575.463-00/4, de 18.4.00 – Rel. Juiz Moura Ribeiro)
4. Ob.cit., página 169
5. Ob.cit., página 144/5
6. O Tribunal de Justiça do Maranhão condenou determinado Banco a pagar a indenização equivalente a US$ 3,08 milhões em dezembro de 1993, em razão de abalo de crédito. No Estado do Pará, na mesma época, indivíduo sofreu condenação de US$ 77,172 em razão de atropelamento e morte de menor (menção de Clayton Reis, obra citada, p. 142, notas 47 e 48).
7.  A exemplo: 8/30 de um salário mínimo: REsp 285.684-SP, DJU 17.5.02 – Rel. Min. Milton Luiz Pereira; – 12 salários mínimos – AC 246.297-1/2, de 23.4.96 – Rel. Des. Corrêa Vianna; – 70 salários mínimos – AC 17.243-6/00 – de 12/98 – Rel. Des. Jovino de Sylos; – 100 salários mínimos – AC 262.804.1/5, de 11.3.97, Rel. Des. Cauduro Padin; AC 243.364-1/7, de 9.4.06, Rel. Des. Pires de Araújo; AC 224.506-1/7, de 2.5.95, Rel. Des. Correia Lima; AC 55.007-5/8, de 10.6.02, Rel. Des. Prado Pereira; AC 54.926-5/4, de 14.2.00, Rel. Des. Coimbra Schmidt; AC 240.630-1/01, de 16.10.96, Rel. Des. José Santana; AC 250.092-1/1, de 20.05.96, Rel. Des. Afonso Faro; AC 279.291-2/5, de 15.12.97, Rel. Des. Albano Nogueira, AC 25.068, de 04.02.99, Rel. Des. William Marinho; EI 085.398-5/7-01, de 15.8.01 – Rel. Des. Ricardo Lewandowski; AC 103.193-5/9-00, de 22.8.01 – Rel. Des. Teresa Ramos Marques; 200 salários mínimos – AC 272.243-1/2, de 15.9.97 – Rel. Des. Oliveira Prado; AC 107.164-5/6-00, de 30.8.01, Rel. Des. Eduardo Braga; 250 salários mínimos: AC 9659-5/0, de 18.3.98, Rel. Des. Gonzaga Franceschini. 300 salários mínimos: AC 109.373.5/4-00, de 24.9.01 – Rel. Des. Prado Pereira; 500 salários mínimos AC 21.561-5/1, de 18.6.98, Relator Des. Lineu Peinado.
8. TJ-SP – AC 268.836-1/4, de 2.6.97 – Rel. Des. Albano Nogueira

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